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CAPÍTULO II Jornal República, um espaço de luta e construção de sentidos.

2.4. Outras também escrevem

A associação de mulheres, em geral professoras, em atuação em jornais e revistas, bem como em atividades literárias, pode ser presenciada em diferentes regiões do Brasil desde a primeira metade do século XIX. Possivelmente, Antonieta tenha sido a primeira mulher negra a escrever nos jornais da capital, no início do século XX. Nos jornais pesquisados, encontramos com frequência poesias e crônicas escritas por Delminda Silveira e Maura de Senna Pereira, respectivamente. Questionamo-nos se haveria

232 Ao consultar a literatura local percebemos a presença de mulheres atuando como professoras, escritoras, bem como jornalistas na Capital como em outras cidades do interior do Estado desde a segunda metade do século XIX.

141 características comuns entre essas escritoras. Se suas trajetórias se cruzaram e em quais momentos.

Delminda Silveira nasceu em Desterro (Florianópolis), a 16 de outubro de 1854. Foi professora de português e francês no Colégio Coração de Jesus, uma das principais instituições de ensino da capital. Delminda escreveu para vários jornais locais, no início, usando o pseudônimo de Brasília Silva, mais tarde, passou a usar o próprio nome. Escreveu também no República, por longo período e na companhia de outras mulheres. Publicou as obras Lises e Martírio, Cancioneiro, Passos Dolorosos e Indeléveis

Versos.233 Solteira e sem filhos, Delminda faleceu em 12 de março de 1932.

Outra figura feminina importante para a imprensa foi Maura de Senna Pereira. Esta também nasceu em Florianópolis, a 10 de março de 1904 e faleceu no dia 21 de janeiro de 1991. No início da década de 20, Maura e Antonieta chegaram a dividir alguns espaços, foram alunas da Escola Normal Catarinense e integraram o Centro Catarinense de Letras. Segundo Luciane Fontão, Maura e Antonieta militaram pela Liga do Magistério, chegando a compor uma das gestões da entidade, a primeira ocupando o cargo de diretora e a segunda de secretária.

Nas páginas do jornal República, onde Maura foi também colunista, e responsável pelo caderno Domingo Literário, percebe-se certa tensão entre ambas. Na edição do

República de 18 de outubro de 1931, uma semana antes de Antonieta dar início à sua

trajetória nas páginas da folha, Maura publicou o conto Negrinha, de Monteiro Lobato, extraído da obra do mesmo autor publicada em 1920.234 O fato de Maura ter publicado o conto dias antes da entrada de Antonieta no corpo de redatores da folha leva a várias interpretações, uma delas, a de provocação, atitude de mau gosto, visto que as memórias de um passado escravista ainda se fazia presente naquela sociedade.

A partir desse momento, o que se vê nas páginas seguintes traduz uma disputa velada por espaço, passando primeiramente pelas bandeiras de luta que cada uma defendia. Maura, por meio do movimento feminista e como uma das redatoras da revista

Brasil Feminino publicava com frequência notícias sobre o movimento e entrevistas com

233

Ver também: http://www.catalogodeescritoras.ufsc.br/catalogo/delminda_vida.html acessado em: 15/06/2013.

234 Luciane Fontão também fez referência ao fato em seu estudo: FONTÃO, Luciene. Nos passos de

Antonieta. Escrever uma vida. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Literatura. Centro de

142 mulheres militantes pela causa feminina, desta forma, afirmava-se como uma das principais representantes deste movimento na capital e no estado.235

Na edição de 14 de agosto de 1932, a matéria, intitulada A mulher americana conquista terreno palmo a palmo, apresentava a entrevista que Maura realizou com a poetisa chilena, Alice Lardé de Venturino. Ao discutir sobre o papel das poetisas naquele país, Alice destacou a importância de se pensar a atividade destas mulheres para além da poesia, valorizando a atividade delas em inúmeras ocupações como educadoras, cientistas, romancistas, novelistas, escultoras, pintoras e humanistas. Chamava atenção para a necessidade de homens e mulheres caminharem juntos por outros terrenos, como a ciência. O que se buscava evidenciar era o papel político dessas mulheres na sociedade.

Um pouco antes, na edição do República do dia 17 de janeiro de 1932, na seção

Domingo Literário Maura publicou uma edição especial intitulada Poetisas Brasileiras,

com a colaboração de algumas escritoras de diferentes regiões, dentre as quais Delminda Silveira, de Santa Catarina; Gilca Machado, do Rio de Janeiro; Alzira Freitas, do Rio

Grande do Sul; Palmira Wanderley, do Rio Grande do Norte; Ida Souto Uchoa, de Pernambuco e Ide Blumenschein, de São Paulo. As temáticas dos poemas publicados giraram em torno do amor, da saudade, da vida, da morte e da natureza.

Delminda Silveira e Maura de Senna Pereira chegaram a ocupar cadeiras na Academia Catarinense de Letras. A primeira foi convidada somente em 1931, aos 77 anos de idade, quando já possuía um número significativo de obras publicadas, além de inúmeras contribuições na imprensa.236 A segunda, conforme nota publicada no

República, em 25 de novembro de 1930, tomou posse em “sessão solenne de 29 do

corrente, que se realisará às 20 horas, na Assembléia Legislativa, para a posse da senhorita Maura de Senna Pereira”.237

Mesmo publicando crônicas nos jornais, nenhum escrito de Antonieta foi encontrado vinculado ao caderno literário e, mesmo tendo publicado o livro Farrapos de Idéias em 1937, que reunia suas crônicas jornalísticas, Antonieta não chegou a fazer parte da Academia em Florianópolis. Não sabemos nem se chegou a receber convite. Anos mais tarde, Antonieta foi homenageada e fez parte da Academia de Letras do município Biguaçu, vizinho a Florianópolis.

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Maura de Senna Pereira compunha a redação da revista ao lado de Júlia Lopes de Almeida, Adelaide de Castro Alves Guimarães, Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça e Maria Eugênia Celso. Jornal

República de 21 de fevereiro de 1932, p.03.

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Aos 77 anos por volta de 1931.

143 Apesar de terem a mesma formação profissional, de cultivarem o gosto pela Literatura e de terem dividido os mesmos espaços, escrevendo muitas vezes para os mesmos jornais, isso não significou que essas três mulheres tenham dividido também o mesmo ideário, fato este que se pode observar analisando seus discursos. Nestes, observa- se a construção de diferentes representações sobre a mulher e o feminino.

Na literatura local, Delminda se insere num grupo conhecido como românticos tardios, ao lado de Duarte Paranhos Schutel, Júlia da Costa, Horácio Nunes, João Silveira de Souza, entre outros. Escrevia poemas que versavam sobre temas como a fé, a caridade, o amor, a saudade, a pátria, a mulher/mãe, figura sagrada, como se pode observar em dois de seus poemas, o primeiro publicado no jornal O Elegante e o segundo no A Pátria:

Entre botões de rosas desbrochantes No próprio lar a vi, meiga, singela, Ellas vão-se, ellas vem de(ilegível) Pelos filhinhos ternos rodeada,

D’auroras e doçura embriagadas Lembrava a Virgem Mãe immaculada Ao sol abrindo as azas palpitantes No santuario de gentil capella.

Sobre a relva acintilam diamantes Oh! nunca eu vira da Madona bella Rubis, topázios, verdes esmeraldas, Copia mais pura e fiel esculpturada, E as borboletas vôam fascinadas Nem, jamais, sobre altar, emmoldurada De flôr em flor, ligeiras, inconstantes. De diamantes, em preciosa tela. Assim, no peito, a rubra flôr humana Louras crianças de rosadas faces, Abre da esperança que a engana Celestes cherubins ledos, vivaces, Aos sonhos de dulcíssima illusão Lhe davam beijos, lhe atiravam flores. Mas como as borboletas irrisadas E ella sorria o céu azul fitando, Vão se também as illusões douradas N’esse sorriso que, a divinizando, Espinhos só restando do coração! Fáz da mulher o anjo dos amores. Indeléveis238 Mãe239

Em Delminda, a ruptura com os padrões normativos vigentes pôde ser percebida muito mais em suas atitudes, do que propriamente no conteúdo de seus escritos. Nestes, a mulher assume papel de mãe, virgem imaculada, exemplo de meiguice e docilidade, representações tanto do comportamento quanto do modelo idealizado de mulher. É verdade que sua escrita, fartamente divulgada nos jornais locais, entre o final do século XIX e o início do XX, deu importante visibilidade à mulher. Delminda representava uma figura feminina respeitável em uma sociedade conservadora, servindo de inspiração e modelo para outras mulheres de seu tempo e além dele.

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Jornal O elegante, 15 de abril de 1923, p. 01. 239 Jornal A Pátria, 19 de fevereiro de 1931, p.02.

144 Maura de Senna Pereira contribuiu ativamente na imprensa local com a escrita de crônicas e poesias, algumas delas veiculadas no República, onde publicou por mais tempo. Maura também publicou para os jornais O Atalaia, O Elegante, e a Folha Nova, entre outros. Em seus artigos, estão presentes a militância pela causa feminista e pelas temáticas que giravam em torno do trabalho feminino, da educação das mulheres e de um tema polêmico na época, o divórcio.240 Este último, uma experiência vivenciada por Maura, que ao divorciar-se não encontrou mais espaço na sociedade local e passou a viver os últimos anos de vida no Rio de Janeiro. Maura de Senna Pereira assumiu uma postura mais progressista frente à luta das mulheres e buscou fugir da tríade mulher- esposa-mãe, moldada pelos valores da moral católica.241

Já Antonieta de Barros, em suas crônicas, mostrava uma preocupação maior com as questões do cotidiano, escrevendo sobre temas diversos, mas em especial sobre a mulher e a educação. Seus textos tinham forte apelo moral, refletiam seu papel de educadora. Sua escrita era refinada e fundamentada nos valores humanistas. Enquanto nos escritos de Maura de Senna Pereira, a bandeira feminista estava bem definida, em Antonieta ela parece um tanto quanto confusa, pois ela manifestava um feminismo ambíguo e por vezes contraditório.

Ainda em nossas pesquisas no jornal República, encontramos um número significativo de matérias em que os temas eram ora o movimento feminista, ora questões ligadas ao tema, a exemplo da matéria publicada na primeira página intitulada O feminismo na Roma Antiga. Nesta, percebe-se a tentativa de desmistificar o papel de, submissão das mulheres na antiguidade, comparando as atitudes de certas figuras femininas à luta das mulheres por seus direitos no século XX. Buscava-se também, construir um sentido de continuidade no processo de luta das mulheres. A valorização do papel social de figuras femininas foi uma das táticas elaborada por mulheres escritoras no sentido de buscar reivindicar o papel da mulher na história.

O feminismo, que provoca atualmente na Europa tantas discussões e críticas, pró e contra, não constitui absolutamente idéia nova. Já Aristhóphanes, em uma das suas comédias, apresenta Prassagora, que, num diálogo com seu

240 Observamos que em um determinado momento, nas edições do República do ano de 1933, Maura acrescentou o sobrenome Lamotte, acreditamos que este era seu nome de casada, preferiu não omitir sua condição civil. No ano seguinte seu nome desapareceu das páginas do República, provavelmente pela sua partida para o Estado do Rio Grande do Sul com seu marido.

241 Com seu primeiro marido, mudou-se para o Rio Grande do Sul onde viveu por quase uma década. Após divorciar-se, no início da década de 1940, partiu para o Rio de Janeiro, onde viveu boa parte de sua vida ao lado do seu segundo marido, o escritor e professor Almeida Cousin.

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marido, expõe o seu programa ultra-radical de gôverno feminino. O poeta grego teve em vista combater, com a formidável arma do ridículo, as exagerações da demagogia ateniense, na qual as mulheres tinham importante papel. (...).

É hoje um juízo inteiramente eliminado o que fazia crer, outr’ora, que nos períodos áureos da antiga Roma, a mulher vivia em condições de inferioridade. (...)

Recordemos a ação exercida por Venturia mãe de Coriolano; por Cornélia, mães dos Grachos; por Sempronia cúmplice de Catilina, o conspirador. A essa enumeração poderiam ser acrescentados dois outros nomes: o de Lívia, mulher e inspiradora do imperador Augusto, e o de Agripina, que durante algum tempo dominou o filho, Nero.242

A matéria havia sido publicada também no Jornal do Comércio no Rio de Janeiro e foi reproduzida na primeira página do República. Outra nota publicada no República e intitulada de, O Papel Feminino, afirmava que:

A importante missão social da mulher parece desdobrar-se em nossos tempos, a medida que a sociedade vai se civilizando.

De antiga vencida pelos caprichos do senhor, passa hoje a usufruir as regalias em igual nível do homem. Após essa primeira vitória que se deve ao cristianismo, começa ela a desempenhar funções sociais e políticas. (...)

Mas é nos próprios cargos públicos, comerciais, administrativos e parlamentares que o feminismo está conquistando terreno.

A mesma nota foi publicada na primeira página do República e foi assinada simplesmente por M.M. Parece não ter sido a reprodução de uma matéria publicada em outros jornais, o que nos levou a especular se estas seriam as iniciais do nome do possível autor ou autora, ou uma estratégia utilizada por autores já conhecidos do público. O fato é que a atitude indica certa preocupação em expor-se à opinião pública. Para nós, chamou- nos atenção o interesse e a abertura dada pelo jornal para a discussão sobre o tema.

Um aspecto interessante que pode ser notado é a heterogeneidade na escrita destas mulheres, em termos de linguagem e identidade feminina. Heloísa Buarque de Hollanda acena para uma questão importante ao se questionar se “existe uma linguagem feminina?” Segundo a autora, a pergunta vem,

geralmente marcada por um desejo de valorizar e potencializar o “lugar obscuro” onde se origina e mesmo se constrói esta linguagem que se oporia às leis implacáveis da racionalidade masculina ocidental. Por outro lado, as diferenças e marcas próprias das formas e dos temas recorrentes na “escrita feminina” são, em sua maioria, facilmente verificáveis num exame da produção literária artística. É inegável que os discursos marginalizados das mulheres (assim como dos diversos grupos “excluídos” ou “silenciados”), no momento

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em que desenvolvem suas “sensibilidades experimentais” e definem espaços alternativos ou possíveis de expressão, tendem a produzir um contradiscurso, cujo potencial subversivo não é desprezível e merece ser explorado. Contudo, as noções de “linguagem feminina” ou mesmo de “identidade feminina”, enquanto construções sociais, exigem a avaliação das condições particulares e dos contextos sociais e históricos em que foram estruturadas.243

O estudo por nós desenvolvido não buscou analisar as possibilidades de construção de uma escrita feminina, mesmo porque, compartilhamos do pensamento de Hollanda quanto à necessidade de um estudo mais aprofundado sobre as condições sociais e históricas em que essa escrita foi elaborada. Também desconfiamos desta escrita feminina, produzida de um lugar obscuro, e com base em uma suposta essência feminina, pelo risco de incorrer em uma leitura reducionista, em que as experiências destas mulheres estariam representadas como um corpo ausente, preferimos apostar muito mais na verve de seu contradiscurso.

A presença de mulheres escrevendo assiduamente para jornais e revistas de educação é fato inegável. Entretanto, não encontramos no período pesquisado o que se poderia chamar de uma imprensa feminina, ou seja, jornais ou revistas de propriedade de mulheres, ou ainda, que as tivessem como diretoras, redatoras chefes ou gerentes administrativas. Ainda segundo Hollanda:

A importância da imprensa feminina do século XIX na formação de uma literatura e de um ensaísmo femininos vem sendo reconhecida pelos estudos da área e constitui uma forte tendência da pesquisa sobre a mulher na literatura.244

A autora evidencia ainda que, diante de portas fechadas e da resistência masculina, algumas mulheres em diferentes Estados fundaram seus próprios jornais e Academias Femininas de Letras.245 Em Florianópolis, como vimos anteriormente, as primeiras tentativas de inserção dessas mulheres no pequeno universo das letras locais foram bloqueadas pelo machismo e pelo preconceito racial. Para se inserir, buscaram meios alternativos como a colaboração na criação de um espaço que também as acolhesse, através da associação com outros escritores, políticos e intelectuais. A desigualdade no campo intelectual entre homens e mulheres foi tema recorrente nas crônicas de Antonieta, em sua crítica este atraso era justificado pelas relações

243

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Os estudos sobre mulher e literatura no Brasil: uma primeira avaliação. In: COSTA, Albertina; BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992, p.59. (grifos do autor).

244

Ibidem, pp.69-71. 245 Idem.

147 paternalistas e machistas, como pelos poucos investimentos, por parte dos governantes, na educação das mulheres, como veremos mais adiante.