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A luta por uma educação emancipadora e questionadora da ordem

5 EDUCAÇÃO POPULAR E HISTÓRIA LOCAL: CRUZANDO CONCEITOS

5.2 História local e Educação Popular: concepções comuns

5.2.3 A luta por uma educação emancipadora e questionadora da ordem

A prática educativa oficial estabeleceu-se historicamente por um sectarismo e por um caráter conformador das situações de exploração e buscou travar, constantemente, uma luta na tentativa de formar cidadãos convictos de seus deveres sociais, com uma identidade que lhes é imposta através de ideologias e símbolos nacionais. Esses elementos foram forjados por uma colonialidade eurocêntrica e que objetivam a transformação de homens, mulheres, crianças e idosos em sujeitos passivos, mantendo a ordem das coisas, escondendo os conflitos sociais sob o tapete da harmonia e da homogeneização dos indivíduos.

Nesse sentido, o Ensino de História, enquanto campo de saber oficial, a princípio, pode parecer ingênuo e desinteressado, mas o conhecimento da história pode e tem sido utilizado, na maioria das vezes, como uma forma de controle e de dominação social a partir da transmissão de conteúdos escolares propositalmente selecionados para fortalecer a identidade dos cidadãos que se pretendem formar. Nesse sentido, manter a ordem já estabelecida é um dos objetivos do Estado nas sociedades estruturadas em segmentos sociais antagônicos. Para isso, o conhecimento da História tem se apresentado como uma das formas de controlar os sujeitos mais pobres, criando uma falsa noção de paz e estabilidade entre os grupos sociais, que sustenta a exploração da mão de obra para o processo de produção de bens. Segundo nos coloca Chesneaux (1995 p. 28-29),

Nas sociedades de classe, a história faz parte dos instrumentos por meio dos quais a classe dirigente mantém seu poder. O aparelho de Estado procura controlar o passado, simultaneamente, no nível da política prática e no nível da ideologia [...]. As classes dirigentes e o poder do Estado freqüentemente apelam ao passado de modo explícito: a tradição, aí incluídos os seus componentes culturais específicos, a continuidade e a história são invocados como fundamentos do princípio de sua dominação.

É o que Fontana (1998) chama de legitimar a ordem estabelecida. Ele afirma que, desde o início do surgimento da História, sua principal, porém não única função social é a de manter o controle da situação, de dominar o outro. Para isso, ela se utiliza de vários meios, como a genealogia, os poemas, as fórmulas rituais, os provérbios, entre outros, como elementos de legitimação do poder. Ainda segundo Fontana (1998, p. 15),

Desde os começos, nas manifestações mais primárias e elementares, a História tem tido sempre uma função social – geralmente a de legitimar a ordem estabelecida –, ainda que tenha tendido a mascará-la, apresentando-se com a aparência de uma narração objetiva de acontecimentos concretos. Na prática educativa recente, o Ensino de História buscou manter a ordem estabelecida através da evidência dos atos dos heróis nacionais ou da importância do sentimento de nação, com o incentivo ao culto das comemorações cívicas. Dessa forma, a História esteve, ao longo dos tempos, associada diretamente ao poder, ao ato de controlar os sujeitos, conforme nos coloca Falcon (1997, p. 61): “História e poder são como irmãos siameses – separá-los é difícil; olhar para um sem perceber a presença do outro é quase impossível”.

Como extensão dessa perspectiva de história conformadora, constituiu-se, em nosso país, um ensino e uma educação que impõe uma docilização dos sujeitos, a partir de uma razão ou norma moral de validade universal, que conforma uma cultura como inferior e ignorante e exalta um saber intelectual, imposto como superior, verdadeiro e absoluto. Nesse contexto, a História é uma disciplina que atua diretamente na manutenção das memórias, pois é ela que exalta ou omite os fazeres de sujeitos e grupos sociais que são ensinados nas escolas. E, essa materialização da imposição de ideias através da História tem ocorrido na área do ensino, principalmente na Educação Básica, etapa na qual estão inseridos sujeitos em processo de formação intelectual.

Porém, essa imposição sempre encontrou e, ainda hoje, encontra resistências e forças que buscam a liberdade e a conscientização do seu estado de explorados para, a partir de então, lutar contra essa situação de exploração. Segundo Freire (1987, p. 12) é “[...] a conscientização, que lhe possibilita inserir-se no processo histórico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na busca de sua afirmação”. A conscientização, citada por Freire, é um elemento característico da Educação Popular, pois ela parte do princípio de que os sujeitos para superarem a opressão a qual são submetidos, precisam ter consciência da realidade na qual estão inseridos, o que se dá a partir de um processo educativo crítico; concepção que permeia também a História Local, pois quando os alunos investigam os espaços de suas vivências, podem compreender melhor o mundo, comparar seu lugar a outros lugares, questionar as diferenças sociais e culturais nos diversos espaços sociais, além de investigar os motivos de injustiças de perto.

Compreendemos então, que o professor de História deveria ser formado para atuar nessa direção, de se perceber como sujeito histórico e contribuir para que os alunos, mediatizados pelo mundo em que vivem, também se percebam como tal e possam assumir esse papel na sociedade. É uma nova prática, na qual ensinar História ganha um significado

diferenciado, pois precisa dar sentido à prática pedagógica a partir do cotidiano dos alunos, na perspectiva de construção de uma escola-cidadã. Compartilhamos da ideia de que a escola é, por um lado, reprodutora, a partir do momento em que trabalha com os conhecimentos produzidos e acumulados pelo mundo científico, por outro lado, ela é transformadora, a partir do momento em que promove uma apropriação crítica do conhecimento escolar, pois seu objetivo é a melhoria de qualidade de vida da sociedade global (PENTEADO, 1994).

Convergindo nessa direção, na prática educativa mais atual, o Ensino de História tem buscado abrir seu leque de possibilidades para a incorporação de saberes que questionam a ordem estabelecida, o que se pode explicar, entre outros motivos, pela pressão dos movimentos sociais ou mesmo pela maior participação dos professores nas discussões acerca da definição do currículo escolar; interferindo diretamente nele, uma vez que a legislação tem permitido sua flexibilização.

Esses movimentos contra a imposição educacional têm surgido ao longo da história, alguns são silenciados e esquecidos, mas outros se impõem e mantêm-se como perspectiva emancipadora de educação, como é o caso da Educação Popular, bastante discutida e concretizada em muitos espaços. E a História Local que vem buscando efetivação da sua prática educativa; uma vez que já existe uma legislação que a vislumbre, mas que, com exceção do Ensino Fundamental nos anos iniciais, sua concretização ainda é incipiente e suas experiências têm se resumido a casos isolados, como talvez seja este.

Para essa efetivação da História Local na prática, consideramos importante que ela se faça levando em consideração os pressupostos da Educação Popular, que se caracteriza como uma concepção educacional que busca romper com a dominação política, social e cultural por valorizar a participação das classes populares na construção constante da história. Uma perspectiva pedagógica que, assim como a História Local, desvela aos educandos que eles, segundo Freire (1987, p. 16):

[...] pouco sabem de si, de seu “posto no cosmos”, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás no reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura. Ao instalar-se na quase, senão trágica descoberta do seu pouco saber de si, se fazem problemas a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.

Assim como a História Local, a Educação Popular é um fazer político e pedagógico pautado na pergunta, na problematização constante, no sentido de inconclusão da história e no permanente movimento de busca, de libertação, na dignidade de viver de todos pode respaldar a postura teórica que envolve a História Local, impedindo assim que esta caia nas armadilhas

do localismo e da fragmentação da prática pedagógica, afastando-se da perspectiva de ensino do local apenas pelo local.

Cada libertação, cabe destacar, resulta de uma síntese, de uma ação concreta, pautada na reflexão. Uma busca que apresenta respostas mais consistentes quando não se realiza apenas pela ótica da história universal, mas quando proporciona o diálogo entre as vivências locais e as escalas mais gerais, partindo da primeira para a segunda, uma interação entre o conhecimento e a ação, pois entendemos que o local é o espaço de atuação dos sujeitos históricos, e é nele e a partir dele que conhecemos o mundo. A partir da investidura nessa prática pedagógica, o aluno tem a possibilidade de ampliar seu leque de conhecimentos e suas percepções políticas e críticas, conforme nos coloca Schmidt (2007, p. 233):

Esse trabalho pode também facilitar a construção de problematizações, a apreensão de várias histórias lidas a partir de distintos sujeitos históricos, das histórias silenciadas, histórias que não tiveram acesso à História. Ela favorece recuperar a vivência pessoal e coletiva dos alunos e vê-los como participantes da realidade histórica, a qual deve ser analisada e retrabalhada, com o objetivo de convertê-la em conhecimento histórico, em autoconhecimento. Desta maneira, podem inserir-se a partir de um pertencimento, numa ordem de vivências múltiplas e contrapostas nos espaços nacional e internacional.

Nesse sentido, a História Local e a Educação Popular têm como ponto de referência o território e suas territorialidades/temporalidades, de onde partem as ações práticas dos indivíduos e da coletividade na direção do entendimento do todo, do mundo, na descoberta do outro, que é igual, mas que é também diferente. De acordo com Bourdin (2001, p. 13):

[...] é na escala local, na do bairro, da cidade ou da microrregião que alguns problemas da vida diária podem ser regulados, por exemplo, os que se referem à organização dos serviços públicos. A solidariedade e a sociabilidade podem se desenvolver dentro de redes muito dispersas, mas são muitas vezes mais fáceis de criar quando se apóiam na vizinhança. Enfim, o quadro local pode servir para se organizarem grupos muito unidos, ou coalizões para a ação.

Dessa forma, a dominação é superada pelo conhecimento e reconhecimento de si mesmo enquanto sujeito histórico e pela importância de seus fazeres políticos, sociais e culturais, fatores transformadores da realidade social e que são camuflados pelo Estado e pelos grupos dominantes como ignorantes e sem importância. O conhecimento de si e de seu espaço possibilita a organização coletiva dos sujeitos e de espaços de socialização e solidariedade que fortalecem a luta popular pela melhoria de sua qualidade de vida, da superação das injustiças e do respeito a sua cultura, configurando novas modulações, onde:

Nessas modulações, a história local pode viabilizar uma outra escrita para a História do Brasil, pondo em xeque a própria construção da categoria Brasil como unidade territorial, política, nacional. Nesse ponto, a história local emoldura, na sua narrativa, outros lugares de ação para sujeitos situados nas margens de certos lócus de exercício de poder, ostentados por uma escrita da história comprometida com a fundação de uma consciência nacional. (GONÇALVES, 2007, p. 182).

Essa nova escrita considera as diversidades, respeita os vários sujeitos e suas especificidades locais, mesmo fazendo a relação com o currículo comum previsto por lei, a relação entre História Local e Educação Popular localiza os sujeitos em seus espaços sociais; descontruindo a falsa ideia de homogeneidade brasileira que descaracteriza as várias culturas existentes ao longo do extenso território nacional. A esse respeito, Fernandes (2005, p. 380), converge para o que defendemos quando afirma que: “Apesar da renovação teórico- metodológica da História nos últimos anos, o conteúdo programático dessa disciplina na escola fundamental tem primado por uma visão monocultural e eurocêntrica de nosso passado”, o que se caracteriza como um elemento de colonização educativa.

Nesse contexto, uma prática educacional que considere os alunos como sujeitos; suas heterogeneidades e diferenças como elementos essenciais para compreender as relações sociais dos mesmos, é um fazer necessário para a escola enquanto instituição que produz conhecimentos, aspecto abordado e defendido pela Educação Popular e que é apontado por Esteban (2007, p. 14):

O reconhecimento da heterogeneidade, que caracteriza o cotidiano escolar como aspecto produtivo, evidencia a necessidade de se aprender a conviver democrática e solidariamente com as diferenças, tomando-as como aspectos indispensáveis ao permanente processo individual e coletivo de produção de conhecimentos.

A partir dessa perspectiva do Ensino de História Local pautado na Educação Popular, o aluno pode se perguntar: por que minha história não é contada nos livros didáticos? Por que existem sujeitos que são submetidos a outros? Por que os que mantém a ordem estabelecida buscam continuar constantemente no poder? Estes e outros questionamentos aproximam os alunos de um posicionamento crítico da realidade, insere-os socialmente como cidadãos críticos, configurando a escola como uma instituição efetivamente cidadã, o que pode culminar em um questionamento essencial. Como superar essa realidade de desigualdade entre os sujeitos?