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A “Música Universal” de Hermeto Pascoal e as peculiares interpretações de Márcio

No documento Márcio Bahia e a "Escola do Jabour" (páginas 140-164)

Capítulo 2. Estudo Interpretativo

2.6 A “Música Universal” de Hermeto Pascoal e as peculiares interpretações de Márcio

Iremos abordar agora um grupo de músicas cujas principais características são as misturas entre os elementos musicais (estilísticos, rítmicos, estéticos) e as performances mais pontuais ou específicas de Márcio em determinadas composições que não foram abordadas nos grupos anteriores de análise. Para contextualizar e definir o que chamamos aqui de “Música Universal”, podemos iniciar citando, com certo distanciamento e olhar crítico, o texto escrito por Aline Morena encontrado no Site oficial de Hermeto Pascoal, que definem os “princípios” da chamada “Música Universal”. Deixando à parte as ideologias ou alguns discursos que criam uma certa “mística” ou “religiosidade” em torno da música de Hermeto Pascoal, o que nos interessa nesse texto são algumas frases que definem o que eles, dentro do próprio grupo, consideram como sendo “Música Universal”.

40Artigo publicado no XXIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Natal – 2013. Nome do artigo: Ilha das Gaivotas – a interpretação de Marcio Bahia no grupo de Hermeto Pascoal, (CASÀCIO, 2013).

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Segundo Aline Morena: “´Música Universal` é misturar sem preconceitos”. (MORENA, 2008). Essa frase reflete, na prática, a complexidade e riqueza de elementos contidos na performance de Bahia. Estão presentes em algumas músicas, características que vão, desde trechos escritos (que aproximam a bateria da percussão erudita), mesclados com levadas ou padrões rítmicos construídos sobre uma melodia, até ritmos brasileiros misturados com polirritmias ou sobreposições de “camadas” rítmicas (executadas pelos quatro membros do baterista). Segundo o pianista André Marques: “a principal característica da ´Música Universal` são as misturas (...). As polirritmias também estão sempre presentes na maioria dos arranjos” (MARQUES, 2014). Outra frase que tanto Aline Morena, quanto o próprio Hermeto citam várias vezes em entrevistas para definirem a “música universal” é: “Tudo é Som”. Podemos interpretar essa frase recorrendo ao uso de timbres inusitados ou não convencionais inspirados nos sons da natureza tão presentes na música de Hermeto, como exemplo os latidos de cachorros e silvos de cigarras no disco Hermeto Pascoal & Grupo de 1982, gritos de papagaios no Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca, de 1984, cacarejar de galos e galinhas no Brasil Universo, de 1985, zumbidos de abelhas e zurros de jumentos no Só não toca quem não quer, de 1987, canto de pássaros diversos no CD Festa dos

Deuses, de 1993. Isso se reflete na performance de Bahia, na medida em que a exploração

timbrística do instrumento bateria e a expansão disso para o uso de recursos extras (como o Jererê, por exemplo), são elementos muito presentes em sua performance. E uma última frase que podemos citar retirada do manuscrito de Aline Morena é: “a teoria tem que estar a serviço da prática” (MORENA, 2008), o que ilustra as horas de prática feitas no Jabour durante esse período de doze anos.

Entretanto não é nossa intenção reproduzir o discurso pronto exposto pelos integrantes do grupo, nem todavia entrar no mérito das questões relacionadas ao que seria a “Música Universal” proposta por Hermeto. Apenas tomaremos como empréstimo o conceito êmico “Música Universal” utilizado pelo próprio grupo para organizarmos as músicas que contêm as misturas rítmicas e as performances mais pontuais e específicas de Bahia em algumas composições que não estiveram presentes nas análises anteriores. O que de fato podemos aceitar é que: Hermeto traz para sua música todo um arsenal de elementos musicais baseado em sua própria experiência de vida (o forró, o regional de choro, o jazz, as inovações do grupo Quarteto Novo, entre outros) e mistura tudo isso livremente, sem se preocupar com

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definições e fronteiras de estilos. Da mesma maneira, Márcio Bahia se coloca no grupo com todas suas características e peculiaridades provindas de seu histórico de vida, como a percussão erudita, seus estudos no jazz e na música brasileira, sua atuação no rock e seus recursos trazidos da percussão popular. Para ilustrar, vejamos o que descreve o pesquisador Luis Costa-Lima Neto sobre Hermeto:

Hermeto é, de fato, criador de uma linguagem bastante pessoal, no qual às harmonias dissonantes do jazz, misturam-se ritmos e melodias populares, freqüentemente do nordeste brasileiro, região onde o músico nasceu, em 1936. No entanto sua linguagem é multidirecional, contendo também elementos que são comuns à música erudita contemporânea, como poliacordes, polirritmias, uso não convencional de instrumentos convencionais e exploração de ruídos e novas possibilidades tímbricas através de um arsenal percussivo variado, constituído de objetos sonoros os mais diversos (NETO, 1999, p.4)

Podemos ainda citar uma frase de Hermeto Pascoal, contida também na dissertação de Neto:

Nem eu mesmo consigo explicar o trabalho que faço. Porque não faço um só tipo de coisa. (...). Uma apresentação minha é a possibilidade de encontro com várias músicas, da clássica ao coco, de todos os universos. (PASCOAL apud NETO, 1999)

Veremos abaixo alguns trechos de músicas em que encontramos as misturas citadas acima, nas quais entrelaçam-se elementos como: ritmos brasileiros diversificados; métricas distintas em compassos compostos, simples e mistos; interpretações livres e improvisações; trechos escritos para os instrumentos com aproximações com a música erudita; texturas e densidades construídas pela sobreposição de camadas rítmico melódicas; e ainda, a presença de um arsenal timbrístico incomum, incluindo os ruídos e instrumentos inusitados. Enfim, vejamos algumas composições de Hermeto em toda sua complexidade sonora, rítmica, harmônica e melódica, e sobretudo, como se comporta a bateria de Márcio Bahia dentro desse contexto. Segundo a pesquisadora Lúcia Pompeu de Freitas Campos:

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Tanto no repertório gravado quanto nas partituras editadas, compassos em cinco e sete são freqüentes. A utilização desses compassos aliada à hibridização dos ritmos provoca uma linguagem rítmica ao mesmo tempo complexa e assimilável, porque transforma a tradição sem perder seus princípios. Hermeto incorporou toda uma tradição musical brasileira e expressa-a em toda sua obra, não como mera repetição, mas como uma tradição viva, em constante transformação (CAMPOS, 2002). Como bem definiu o músico Mané Silveira (flautista e saxofonista da Orquestra Popular de Câmara), ao referir-se a Hermeto Pascoal: “Por mais que sua música se torne complexa, ele nunca perde a referência da festa de rua”. ( SILVEIRA apud CAMPOS, 2002)

Vamos começar com a música A Taça do álbum Hermeto Pascoal e Grupo. A primeira parte da música é uma valsa com uma interpretação de bateria que se aproxima de um Jazz Walts (RILEY, 1994), com a condução no prato, baseando-se na cadência e nas acentuações feitas pelo piano:

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Apenas como referência, vejamos abaixo uma levada básica de Jazz Waltz retirada do Livro The Art of Bop Drumming de John Riley:

Figura 90: Levada de Jazz waltz retirada do livro The Art of Bop Drumming de John Riley (RILEY, 1994, p.58)

Na segunda parte da música ocorre uma interessante sobreposição, na qual a melodia (escrita inclusive no lead sheet enviado por Jovino) continua em ¾ e a bateria entra em um baião em 2/4, deslocando suas células entre os compassos (cross-rhythm):

Figura 91: Transcrição da parte B da música A Taça, contendo a melodia, a bateria e os acordes.

Depois dessa parte, há uma ponte em que a bateria para e o piano e a flauta fazem linhas complemetares, enquanto um Bell (sino), toca no primeiro tempo do compasso de ¾. Após dezesseis compassos de “ponte”, a música retoma com a bateria construindo uma linha que se aproxima do maracatu (em 4), sobrepondo-se a melodia (em 3). Discutindo um pouco mais sobre os reagrupamentos, podemos dizer que, enquanto a melodia está em 3, o ciclo da

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bateria se completa de 2 em 2 compassos, ou seja, seis tempos. Porém esses seis tempos não são divididos em 3 + 3, mas sim 4+ 2. Vejamos abaixo os quatro primeiros compassos dessa sobreposição:

Figura 92: Transcrição da segunda exposição do tema A da música A Taça, com reagrupamento rítmico

Após o trecho A em maracatu, a música volta para o tema B e segue para os Solos em baião. Nesse trecho há um pequeno aumento no andamento da música.

Para finalizar a música, há um “Coda” em baião, em que o andamento aumenta ainda mais e no final os instrumentos fazem um improviso coletivo sobre um Vamp em G7 #5, até que a música acaba.

Figura 93: Levada de baião no trecho final da música A Taça

Iremos agora fazer alguns breves comentários sobre algumas músicas do repertório, sem nos ater muito em detalhes ou transcrições, com o objetivo de construir uma visão panorâmica desse tipo de performance de Bahia dentro do período analisado.

Uma outra música que, de modo geral, se aproxima da A Taça é a música Era para

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baião (e que também aumenta o andamento na parte dos solos), encontramos uma interpretação bem mais livre, mais densa (com mais notas) e mais complexa do que em A

Taça. Para começar, o tema “A” dura cinco compassos de três tempos, o que completa um

ciclo de 15 tempos, os quais não necessariamente seguem a métrica do compasso de três. A melodia segue esse ciclo de quinze tempos e é quase toda formada por colcheias, sobre a qual a bateria desenvolve uma complexa linha que também não se completa de três em três tempos, mas sim em quinze. Porém a parte B e C se aproximam mais do baião, mas com uma interpretação mais solta do que na música A Taça, se aproximando da “segunda inversão” rítmica discutida anteriormente, na qual Márcio utiliza muito o recurso do Four Way

Coordination na sua performance.

Encontramos também esses reagrupamentos na música Ilza na Feijoada, na qual o tema principal se completa em 14 tempos e a bateria não toca 7+7, mas sim 4+4+4+2, promovendo uma mistura de frevo com baião, num andamento extremamente rápido.

Outras duas músicas que têm essa característica, principalmente em relação à primeira parte da música Era para ser e não foi, é a música Peixinho (do mesmo álbum

Brasil, Universo) e a música Viagem do álbum Só não não Toca quem não Quer. Nessas duas

músicas a bateria tem uma interpretação mais “livre” baseando-se na melodia, sobre a qual Márcio cria densas linhas de bateria utilizando todo o instrumento. Podemos levantar um tema pertinente ao tipo de interpretação encontrada nas três músicas citadas acima: a presença da improvisação permeando toda a performance de Bahia, já que durante toda a música o intérprete está criando “em tempo real” e sua linha de bateria não está baseada nem em ritmo brasileiro, nem em alguma “levada” construída sobre a métrica do compasso. Nessas três músicas (Peixinho, Viagem e Era pra ser e não foi), o tempo todo Márcio interage com a música de forma livre, criando um “contracanto” tanto em relação aos outros instrumentos, quanto internamente, pela “orquestração” das notas por toda a bateria. Sobre a “orquestração” e o Four Way Coordination presente nas performances de Bahia, podemos citar a autora Ingrid Monson, a qual considera que a interação interna entre os quatro membros do baterista é “tão polifônico quanto aquele que se estabelece entre o baterista e os outros instrumentos do conjunto”41 (MONSON, 1996, p. 52).

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Portanto, podemos considerar que a improvisação no grupo de Hermeto transcende o conceito normalmente utilizado no Jazz, segundo o qual a improvisação ocorre dentro de um chorus sobre o qual um instrumento solista executa seu improviso. Podemos considerar que a improvisação está presente desde o processo composicional até as interpretações das músicas que permitem maior liberdade de criação. Em entrevista cedida para a pesquisa de Tato Taborda, Jovino Santos aponta:

A nosso ver, a improvisação em Hermeto deve ser compreendida não apenas no contexto da interpretação, mas também no nível composicional e estético. Pois Hermeto é um músico que tem como uma de suas principais características, a busca sistemática e alegre do inusitado, da surpresa. E essa característica marcante vai se refletir tanto na sua atuação como intérprete, como também, na de compositor. Como dizia aos seus músicos: "é necessário compor e escrever como se fosse improviso, e tocar improvisado como se fosse escrito. (SANTOS apud TABORDA, 1997)

Um outro fator relevante que podemos comentar são as diferenças entre as gravações feitas em estúdio e as performances “ao vivo”. Nos concertos de Hermeto Pascoal e seu grupo, a improvisação e a liberdade nas performances é maior. Ou como descreve Márcio Bahia:

A medida em que a gente vai tocando ao vivo, a gente vai aperfeiçoando; nunca fica igual ao Cd, vai melhorando, vai amadurecendo. A gente gravava o arranjo mais fechadinho, mas a hora que levava isso para o palco, a coisa ia ficando mais solta, mais legal (BAHIA, 2013).

Assim, conforme as músicas ficavam cada vez mais internalizadas, maior a liberdade na interpretação e maior a presença da improvisação. Podemos pensar então que a improvisação é uma forma de apropriação e de aprofundamento das formas de interpretação, havendo cada vez mais liberdade de criação sobre a execução de cada música. Essas discussões sobre as improvisações presentes na música de Hermeto, são bem ilustradas na história abaixo contada por Márcio:

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No segundo show, no Planetário da Gávea no Rio de Janeiro, a esteira da caixa escapou e eu a levei para o camarim para arrumar. Aí, quando a gente foi entrar para tocar, Hermeto olhou para mim e disse: -´Entra lá só com a caixa e faz o que você quiser´. Só com a caixa, sem tripé, sem nada. Aí entrei com a caixa na mão, botei no meio das pernas e gritei, toquei na esteira, falei com a esteira, batuquei com a mão, toquei com a baqueta, fiz o “escambal”. E eles não entravam nunca. Mas ele fez isso de propósito para me obrigar a pensar, isso logo no segundo show (BAHIA, 2013)

Para resumir, podemos notar que a improvisação transpassa todo o processo criativo de Hermeto, desde a composição, a criação dos arranjos, até a performance de todos os músicos do grupo. Segundo Luis Costa-Lima Neto:

Mais do que a capacidade de criar novas melodias a partir de um esquema harmônico x, y ou z, a improvisação para Hermeto é garantia de organicidade e fluidez musical, e mais do que um recurso estilístico, tem status existencial: "quem não improvisa neste mundo, no outro será improvisado"(H.P). Para Hermeto, a improvisação será o alfa e o ômega de todo o seu processo de criação, antecedendo e sucedendo a escrita musical, que ele domina e utiliza, mas que nunca é tomada como ponto de partida (NETO, 1999).

Voltando então às análises musicais, podemos dizer mais uma vez que o que mais se destaca nas performances de Márcio dentro desse grupo de músicas, além da liberdade de criação, é a riqueza de elementos musicais, às vezes todos misturados em uma só música. Não podemos generalizar seu “estilo” dizendo por exemplo que Márcio toca mais “aberto”, ou é especialista em tocar grooves ou ritmos específicos, ou em ler partituras e executar exatamente o que está escrito, ou ainda em tocar compassos ímpares. Márcio traz tudo isso reunido em suas performances e essa é sua principal característica.

Ainda dentro da “música universal” discutida anteriormente, notamos também em algumas músicas no repertório, um caráter “world music42”, que nos remete a outras culturas, como por exemplo a música Rainha da pedra azul que traz uma atmosfera moura (árabe) ou

42 Segundo Keith Negus (1999), “a world music é um fenômeno no qual há uma ´reterritorialização` da música,

que sai de um lugar específico e passa para um espaço mais ´global`, seguindo a idéia da globalização e de um mundo mais unido e ´universal` (NEGUS, 1999).

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Espanhola, ou ainda a música Irmão Latinos que lembra a música cubana. A bateria da música Rainha da pedra azul inicia com uma linha na caixa em semicolcheias no compasso 6/8 só tocada na Introdução. Na parte A da música, a bateria para e resta somente uma linha de percussão que nos remete às castanholas da música flamenca. A bateria só retoma aos 2:02´ com uma linha em 9/8 nos tambores. Vejamos os dois primeiros compassos da bateria da introdução da música Rainha da Pedra Azul juntamente com o ritmo do piano:

Figura 94: Dois primeiros compassos da Introdução da música Rainha da Pedra Azul

A última música que gostaríamos de citar, nesse contexto dos compassos compostos ou com subdivisões ternárias (6/8, 12/8) e das misturas e sobreposições rítmicas, é a Canção

no paiol em Curitiba. Essa música começa com um tema ad libtum tocado pelo saxofone

enquanto o piano faz uma série de arpejos bem livres e o baixo marca os repousos da melodia. A bateria entra aos 2:00´ numa levada em que as mãos fazem uma condução baseada no rudimento “Paradiddle Duplo”, formado por dois grupos de seis notas cada (DEDEDD EDEDEE), divididos entre o chimbal e o aro, enquanto o bumbo toca de quatro em quatro colcheias (mínimas) formando uma polimetria (3 sobre 4) em relação às quatro semínimas pontuadas do compasso 12/8. Há ainda um caxixi que subdivide a pulsação “tripla” do compasso de 12/8, em quatro partes, formando ainda uma outra polirritmia dada pela sobreposição da condução da bateria (em três) e da levada do caxixi (em quatro). Vejamos abaixo os quatro primeiros compassos da música Canção no Paiol em Curitiba:

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Figura 95: Transcrição dos quatro primeiros compassos da música Canção no Paiol em Curitiba

Voltando às músicas do primeiro álbum, Hermeto Pascoal e Grupo, podemos citar duas músicas muito importantes no âmbito da “universalidade” da música de Hermeto: Cores e Briguinha de Músicos Malucos no Coreto.

Na música Cores novamente encontramos uma forma e um arranjo muito complexos e cheio de nuances, variações e misturas. Ela começa com sons de cigarras e a primeira exposição do tema é dividida entre o saxofone soprano, o violão e a flauta baixo, enquanto o piano faz os acordes com arpejos bem livres, sem pulsação definida (ad libtum). Antes de entrar a bateria, há uma “ponte” onde voltam as cigarras e entra um “sino” junto com a cúpula do prato fazendo apenas algumas notas. Só aos 2:31´que entra a bateria com uma levada que é feita por uma baqueta na pele e outra no aro. O chimbal marca o tempo enquanto o bumbo é tocado no segundo e quarto tempos. A melodia segue em notas longas e, a partir do sétimo compasso, inicia um ciclo de semínimas pontuadas que dão uma intenção de três sobre quatro (cross- rhythm).

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Figura 96: Transcrição dos oito primeiros compassos da música Cores, do álbum Hermeto Pascoal e Grupo, de 1982

Na parte B da música entra um baião e depois um frevo muito próximos aos já transcritos anteriormente (portanto não o faremos novamente). O que nos chama atenção são dois trechos da bateria que aparecem logo após o frevo. O primeiro é quando a bateria faz uma condução no prato em colcheias (sem a primeira nota) e o bumbo e a caixa tocam uma tercina de semínima divididas entre eles, criando tanto uma polimetria em relação ao tempo do compasso (3 contra 2), como também uma intenção de dois sobre três que gera, se considerarmos as notas feitas pelo bumbo em relação aos quatro tempos do compasso, uma outra polimetria de 3 contra 4:

Figura 97: Levada de bateria da música Cores contendo sobreposição de camadas, polirritmia e polimetria

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Figura 98: Ostinato de bateria da música Cores

Trataremos agora da performance de Bahia na música Briguinha de Músicos Malucos

no Coreto. Nessa música, há uma espécie de cânone, em que cada instrumento entra em uma

parte diferente do compasso, sobrepondo camadas da música só que deslocadas, cada um tocando sua linha em tempos diferentes. Como explica Jovino em entrevista:

Hermeto fez um arranjo super complexo, mil acordes, com uma melodia que ele escreveu no bombardino, com um contraponto do saxofone e quando a música estava pronta ele pegou e começou a mexer, ou seja, eu tocava a minha parte e ao invés de eu começar no primeiro tempo do compasso, eu começava por exemplo 1tempo e meio depois, a bateria 2 tempos depois, o baixo dois tempos e meio e o saxofone três tempos depois. Ou seja, a gente estava fazendo a nossa parte, só que tudo deslocado. Então as coisas não estavam mais alinhadas de forma vertical. Então, a música Briguinha de Músicos é muito importante porque ela traz essa ideia de um reescalonamento dos ataques da música (SANTOS, 2014).

Como vimos, Hermeto muitas vezes pensa nos arranjos fazendo sobreposições de camadas rítmico melódicas, nas quais surgem as polirritmias, polimetrias, ilusões rítmicas, reagrupamentos e deslocamentos. No livro Rhythmic Illusions, o autor denomina esse processo que ocorre na música Briguinha como displacement43 (deslocamento):

É quando um “padrão” inteiro é movido para frente ou para trás por um certo número de subdivisões. Ainda será o mesmo padrão em termos de ordem e estrutura da nota mas estará em um lugar diferente no compasso” (HARRISON,2013, p.7).

Na música Fazenda Nova, também encontramos uma sobreposição de camadas rítmico-melódicas. A música inicia com um sampler de um porco em 7/8 fazendo um

No documento Márcio Bahia e a "Escola do Jabour" (páginas 140-164)