• Nenhum resultado encontrado

1. A MATERIALIDADE NO SUJEITO DO INCONSCIENTE

1.2. A materialidade do sujeito

Jacques Lacan, em um momento avançado de sua teoria, alegou não poder abrir mão de sua posição, e esta seria a de materialista dialético (1971/2019). De fato, o psicanalista francês nunca abriu mão de pensar o sujeito em uma relação dialética com o desejo. No entanto, isso não situa Lacan como marxista — e ele próprio nunca agregou nenhuma nomeação para si além da de psicanalista. Levando isso em conta, consideramos que sua apropriação se deva à uma leitura de um materialismo dialético torcido para dentro do sistema de pensamento proposto por Freud. Assim, se Lacan se apropriou do conteúdo da teoria marxista realizando recortes de sua forma, ele a fez funcionar ao seu modo dentro da

psicanálise, convertendo seu recorte teórico em um objeto presente numa pintura surrealista que produz diferentes imagens na percepção de quem a olha.

Seu trabalho opera pelo seguinte caminho: se o lucro funciona enquanto causa em uma sociedade capitalista, o sujeito detém uma causa material denominada por Lacan como objeto a. Porém, se Marx define o lucro enquanto o excedente da produção da relação de exploração no trabalho (1883/2013), Lacan não define o objeto a somente como excesso, mas também como falta. Para esclarecer melhor como compreendemos o funcionamento do que Lacan nomeia objeto a, recorremos à obra de Georges Bataille10 — em seu trabalho dedicado à

análise do funcionamento social, pelos destinos não produtivos do excedente em nossa sociedade. Bataille inclui em seu trabalho uma um constructo próprio à psicanálise, incluindo o modo como a experiência infantil valora os dejetos produzidos pelo corpo, dessa forma, aquilo que é tido como resto também é considerado na experiência inconsciente. Em sua obra denominada “A noção de despesa” (1967) afirma:

A variação das formas [de despesa] não acarreta alteração alguma dos caracteres fundamentais destes processos cujo objetivo é a perda. Uma certa excitação, cuja soma se mantém ao longo das alternativas numa estiagem relativamente constante, anima as coletividades e as pessoas. Sob sua forma acentuada, os estados de excitação, que são assimiláveis a estados tóxicos, podem ser compreendidos como impulsos ilógicos irresistíveis, no sentido de rejeição dos bens materiais ou morais que teria sido possível utilizar racionalmente (em conformidade com o princípio do equilíbrio das contas). Às perdas assim realizadas encontram-se ligadas – tanto no caso da “rapariga perdida” como no da despesa militar – a criação dos valores improdutivos dos quais o mais absurdo, e ao mesmo tempo que engendra maior avidez, é a glória. Completada pela degradação, a glória, sob formas sinistras ora fulgurantes, não parou de dominar a existência social e continua a ser impossível empreender seja o que for sem ela, ao mesmo tempo que ela é condicionada pela prática cega da perda pessoal ou social. (Bataille, 1967/2005, p. 47)

Nas palavras escritas por Bataille conjuram-se excedente e perda, e é nesta relação intrínseca que Lacan situará a experiência do desejo humano. Assim, o que denominamos materialidade do sujeito em relação à sua causa diz respeito a uma experiência que se vê intimamente atrelada ao nosso convívio social e ao funcionamento do nosso tempo histórico. Portanto, ainda que autores como Cabas (2009) defendam que o sujeito da psicanálise seja estrutural e independente dos fluxos na história, temos de marcar nossa posição em relação à sua materialidade. Justamente pela noção de sujeito não ser sinônimo de indivíduo, não há

10 Ao considerarmos que Bataille e Lacan foram contemporâneos, cogitamos a possibilidade de que este tenha sido lido por Lacan, mas não referenciado.

separação entre o seu funcionamento e as formas de engendramento de satisfação em nossa sociedade. Essa concepção nos lança o desafio de não nos desvincularmos de um tema, simplesmente por ele ser identificado como tal a partir de um determinado período histórico, como no caso das drogas.

O fato é que pensar o sujeito em sua causa material, proposta traçada pelo psicanalista lacaniano Jésus Santiago11 (2001), não diz respeito a pensar em seus direitos sociais, nem em

sua participação enquanto cidadão, ou seja: representação pequeno-burguesa dentro da vida pública. Também não diz respeito às elucubrações de um ser que venha a emergir após uma revolução proletária ou do fim da exploração do homem pelo homem. O desafio metodológico consiste em trabalhar o sujeito do inconsciente enquanto o substrato das relações sociais, da mesma forma que o lucro opera enquanto substrato da relação de trabalho. Acreditamos que tais elementos nos permitem uma visada original sobre o nosso objeto de pesquisa.

Considerar a materialidade do sujeito no que toca a questão das drogas diz respeito a levar em conta o que está em causa no excesso e na perda que, não raramente, surgem de modo tão caricato na experiência de um usuário de drogas. Essa caricatura pode representar nada menos que um adensamento de um modo como o desenvolvimento econômico e social opera. Isso envolve um paradoxo de criação e destruição que se alojam na ambição moderna de realização social, bem como apontado por Berman (1982/2007) em relação aos grandes sonhos arquitetônicos que modernizam de cima para baixo, impulsionados pelo ideal que preenchiam o vazio de um futuro, e às vanguardas artísticas do final do século XIX e início do século XX que clamavam pela destruição, buscando se desvencilhar do próprio passado.

Esse é o mesmo período no qual se insere a criação da psicanálise. Onde a tradição começava a tropeçar, um jovem Freud almejava um mundo em que a desaceleração das tristezas vividas pudesse dar lugar a um homem-máquina pronto a construir o futuro. Tal sonho viria a se converter em pesadelo, para que só então, pudesse se dar a invenção da psicanálise.