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Freud: álcool, tabaco e cocaína

2. DROGAS E PSICANÁLISE NO PRELÚDIO DO SÉCULO XX

2.2. Freud: álcool, tabaco e cocaína

As cartas entre Freud e Fliess (apud Masson, 1986)27 compõem um material riquíssimo

para o estudo do desenvolvimento das ideias psicanalíticas, mas não só. Os diversos e relatos e menções que Freud faz sobre o uso de substâncias em sua rotina são extremamente interessantes quanto exemplo de um homem de seu tempo. Deste modo, nós acessamos

menções ao uso de álcool que são exemplares de como a substância tinha um caráter duplo para a rotina de um médico vienense no final do século XIX. Uma narrativa curiosa feita pelo pai da psicanálise diz respeito ao uso recreativo de álcool e tabaco, ainda que no contexto de trabalho, como podemos ver na carta de 10 de março de 1898:

Meu seminário foi particularmente animado este ano; até um assistente de Erb o frequentou. Durante o período de interrupção involuntária em que a universidade esteve fechada, continuei a dar aulas em meu consultório, com canecos de cerveja e charutos. Quanto ao próximo período escolar, já tenho duas novas matrículas além dos alunos que já frequentam o curso. (Freud apud Masson, 1986, p. 303)

Chamamos atenção para o início da descrição de Freud, caracterizando o seminário como “particularmente animado”, algo que certamente pode ser atribuído ao diferencial proporcionado pelo consumo de cerveja. Outro fator curioso diz respeito à uma diferença da moralidade da época em contraste com a nossa, que detém muito mais marcadamente uma cultura abstêmia. Hoje em dia, dificilmente um professor não seria alvo de represálias morais caso ministrasse seu curso bebendo e fumando, mesmo que em um ambiente particular; a chance de que isso lhe rendesse a fama de alcóolatra ou, ao menos, de irresponsável seria enorme.

Outro fator curioso em relação ao consumo de álcool por Freud diz respeito ao uso da substância enquanto um tônico e envolve um famoso episódio de sua biografia. Nos referimos ao sonho da injeção de Irma (1900-1901/1996) e da vivência disparadora que produziu um abalo significativo na relação entre Freud e Fliess. Irma era tratada, por Freud, de sintomas dos quais o ele tinha dificuldade de mapear a etiologia — e ele contava com o auxílio de Fliess, que, à época, defendia a tese de que diversos problemas de etiologia sexual teriam origem no nariz. Freud, fazendo valer o voto de confiança no amigo, convoca Fliess para realizar um procedimento cirúrgico em sua paciente. Após realizado o procedimento, Irma se queixava de dores no nariz, um inchaço que não apresentava remissão e sangramentos esporádicos. Então Freud convoca outro cirurgião, um amigo de infância chamado Ignaz Rosanes (Markel, 2011), que, ao abrir o nariz de Irma, localiza em meio às suas fossas nasais um pedaço de gaze, esquecido por Fliess. O que ocorre a seguir foi narrado por Freud na carta de 8 de março de 1895:

Rosanes limpou a área ao redor da abertura, retirou alguns coágulos de sangue que estavam agarrados e, de repente, puxou algo que parecia um fio de linha, e continuou puxando. Antes que algum de nós tivesse tempo de

pensar, pelo menos meio metro de gaze foi retirado da cavidade. No instante seguinte veio uma torrente de sangue. A paciente empalideceu, seus olhos saltaram e não se conseguia sentir-lhe o pulso. Imediatamente a seguir, porém, ele tornou a encher a cavidade com nova gaze iodoforme e a hemorragia cessou. Durou cerca de meio minuto, mas foi o bastante para deixar a pobre criatura, que já então havíamos deixado, irreconhecível. Nesse meio tempo — isto é, depois — aconteceu outra coisa. No instante em que o corpo estranho saiu e tudo se tornou claro para mim — e, logo em seguida, fui confrontado com a visão da paciente —, senti náuseas. Depois de colocado nela o tampão, fugi para a sala ao lado, bebi uma garrafa d’água e me senti péssimo. Foi então que a corajosa Frau Doktor28 me trouxe um

pequeno copo de conhaque e voltei a ser eu mesmo. (Freud apud Masson,1986, pp. 117-118)

Nesse relatório enviado a Fliess fica evidente o lugar do conhaque na cultura própria àquele tempo. Não só pelo ato de Freud de tomá-lo, como o da “corajosa Frau Doktor”, assim como chamada por Freud, de buscar a bebida para que um homem nauseado se reestabeleça. Essa situação é emblemática de um uso do álcool não para alteração da consciência, mas para o reestabelecimento da mesma. Mais adiante Freud deixa claro que o seu choque não corresponde ao sangue ou à visualização da ferida, mas ao se notar olhado por Irma enquanto se surpreendia por perceber que seu amigo de confiança havia cometido um erro grave e, de certa forma, grosseiro. Os sintomas de Irma, anteriores à cirurgia, correspondiam a algo que pode ser correlacionado com uma sintomatização histérica; e, não por menos, quando Freud a encontra após esse episódio, escuta de sua paciente a represália pelo seu quase desmaio: “então este é que é o sexo forte!” (Freud apud Masson, 1986, p. 118).

Os sintomas histéricos não foram exclusivos das pacientes de Freud e, assim como suas pacientes, Freud chega a referir para Fliess sintomas próprios que ele denominaria “minha histeriazinha” (Freud apud Masson, 1986, p. 262). O que ocorre é que boa parte dos trechos que apresentamos aqui integra um período no qual Freud sofria de uma arritmia cardíaca esporádica, cuja origem o pai da psicanálise não conseguia localizar — etiologia que, a princípio, foi atribuída por seu médico e amigo Fliess como o uso excessivo de tabaco. Isso gerou uma produção de relatos típicos de um adicto em recuperação, buscando lidar e jogar com o seu médico em relação ao próprio vício. Como na carta de 22 de junho 1894:

Não tenho fumado há sete semanas, desde o dia de sua proibição. A princípio, como era esperável, senti-me abusivamente mal. Sintomas cardíacos acompanhados de depressão branda, além do terrível sofrimento de abstinência. Este último se dissipou depois de aproximadamente três semanas, enquanto a primeira cedeu após cerca de cinco semanas, porém

28 Frau Doktor [‘senhora doutora’] era como se referenciava à esposa ou irmã do médico que o auxiliaria no procedimento. Na carta Freud não revela quem o auxiliara.

deixando-me completamente incapaz de trabalhar, derrotado. Decorridas sete semanas, apesar de minha promessa a você, recomecei a fumar, influenciado pelos seguintes fatores: (1) Durante esse período, examinei pacientes da mesma idade em estado praticamente idêntico, que nunca haviam fumado (duas mulheres) ou que haviam parado de fumar. Breuer, a quem afirmei repetidamente não considerar a indisposição como envenenamento por nicotina, finalmente concordou e também apontou as mulheres. Assim, fiquei privado da motivação que você caracterizou tão habilmente numa de suas cartas anteriores: uma pessoa só consegue desistir de algo quando está firmemente convencida de que aquilo é a causa de sua doença. (2) A partir dos primeiros charutos, consegui trabalhar e me assenhorei de meu estado de ânimo; antes disso, a vida estava insuportável. Também não observei nenhum agravamento dos sintomas depois de um charuto. Tenho agora fumado com moderação e elevei lentamente o número para três por dia. (Freud apud Masson, 1986, p. 84)

A missiva de Freud começa convencendo o interlocutor de que está abstinente, ou seja, de que a demanda médica fora acatada e está sendo seguida, para daí entrar em uma série de racionalizações onde detalha as razões para seguir fumando e concluir que o fumo só lhe traz vantagens.

Já em 14 de julho de 1894, Freud, após receber nova reprimenda de Fliess, novamente volta a lutar contra a privação de charutos vivenciada em sua abstinência. Apesar de algo que se repete da novela toxicômana das cartas, segue presente — também em seus textos psicanalíticos — o seu tom analítico sobre si e uma sistematização minuciosa de suas vivências. Isso talvez se dê por Freud falar na condição de amigo e, principalmente, paciente, como revelado abaixo:

Meu estado — sinto-me agora obrigado a não despertar a suspeita de que talvez queira esconder algo — é o seguinte: desde sua carta de quinta feira, uma quinzena atrás, abstinência, que durou oito dias; na quinta-feira seguinte, num momento indescritivelmente árido, um charuto; depois, novamente, oito dias de abstinência; na quinta-feira seguinte, mais um; desde então, paz. Em suma, estabeleceu-se um padrão: um charuto por semana para comemorar sua carta, que mais uma vez roubou-me o prazer do tabaco. Na prática, isso talvez não difira tanto da abstinência. (Freud apud Masson, 1986, pág. 87)

É curioso o movimento de Freud, falando por meio da denegação da qual ele mesmo tão bem descreveu (Freud, 1925/2011), de sua necessidade de ludibriar Fliess em relação à sua árdua tarefa de se manter abstinente. Freud também toca em um dos maiores desafios das estratégias de Redução de Danos no tratamento de usuários de drogas: a ponderação pode, muitas vezes, ser um exercício tão doloroso quanto a abstinência. Aqui, sem dúvida podemos encontrar um lastro do que viria a compor “O mal-estar na civilização” (1930/2010) na

qualidade do que Freud chamava de felicidade por meio de um prazer barato, citando como exemplo o ato de cobrir uma perna descoberta em uma fria noite de inverno (1930/2010). Não é por menos que o próprio Freud chegou a colocar Fliess contra a parede, indagando se uma vida sem tabaco valeria a pena, como em uma passagem de uma carta de 27 de novembro de 1893: “Não tenho obedecido à sua ordem de não fumar; você realmente considera um privilégio notável viver muitos anos num tormento?” (Freud apud Masson, 1986, p. 60-61).

Talvez por essa via assimilemos o cálculo que situa a satisfação tóxica como uma das mais eficazes na tarefa de suportar o mal-estar da vida em sociedade (Freud, 1930/2010). Foi nessa toada que Freud atribuiu ao tabaco a capacidade de subjugar sua libido.

Posteriormente, anos após o fim da relação entre Freud e Fliess, o já renomado criador da psicanálise, em idade avançada, respondendo a um questionário sobre personalidades públicas e sua relação com o tabaco, deu o seguinte depoimento na data de 12 de fevereiro de 1929, mais de três décadas após os trechos que apresentamos:

Comecei fumar com idade de 24 anos, primeiramente cigarros mas logo exclusivamente charutos; continuo ainda fumando (com idade de 72 anos e meio), e sou bastante relutante em restringir-me a este prazer. Entre as idades de 30 e 40 anos tive que deixar de fumar, durante um ano e meio, por causa de um ataque do coração que pode ter sido (devido ao) efeito da nicotina, mas que provavelmente era uma sequela de influenza. Desde então, tenho sido fiel ao meu hábito ou vício, e acredito que devo ao charuto uma grande intensificação da minha capacidade para o trabalho e uma facilidade para meu autocontrole. Meu modelo nisto foi meu pai, que era um fumante dos mais inveterados e que assim permaneceu até o seu 81° ano. (Freud apud Waks, 1998, p. 44)

O que Freud situa como efeito da influenza, Howard Markel (2012), médico e pesquisador, situa como efeito da cocaína, algo que é subnotificado pelas cartas por não ser especificamente objeto de controle de Fliess — também entusiasta do alcaloide como remédio. Markel sustenta que Freud teria feito uso regular e, por vezes, até mesmo abusivo da cocaína, sendo submetido à uma intervenção de Fliess com uma cauterização no nariz devido às constantes inalações de cocaína (Markel, 2012). No entanto, vale ressaltar que nas menções que Freud faz em relação à cocaína nas cartas, em nenhum momento é mencionado um uso de caráter recreativo, mas sim medicamentoso — devido ao próprio registro no qual Freud mantinha a cocaína.

Recortamos aqui, algumas poucas menções que podemos considerar emblemáticas de como Freud (apud Masson, 1986) citou o pó branco, como na carta de 30 de maio de 1893: “pouco tempo atrás, interrompi (por uma hora) uma enxaqueca aguda em mim mesmo com a

cocaína, o efeito só se deu depois de eu ter tratado também o lado oposto com cocaína”. Por meio dessa passagem podemos notar que, se houve algum abuso por parte de Freud em relação à cocaína, este não foi muito distinto do uso que muitas pessoas fazem dos ansiolíticos na atualidade, tomando medicação para rebater algum mal-estar corporal ou mesmo indisposição. Abaixo, destacamos uma passagem onde Freud relata um excesso que lhe teria causado dano físico, conforme descrito na carta de 24 de janeiro de 1895:

nesses últimos dias, senti-me inacreditavelmente bem, como se tudo tivesse apagado — um sentimento que, apesar da fase melhor, eu não conhecida há dez meses. Na vez passada, escrevi-lhe, após uma fase boa imediatamente posterior à reação, que vieram a seguir alguns dias rigorosamente péssimos, nos quais a cocainização da narina esquerda me ajudou numa medida surpreendente. Prossigo agora o meu relato. No dia seguinte, mantive o nariz em tratamento com a cocaína, o que realmente não se deve fazer; em outras palavras, pincelei-o repetidamente para prevenir uma ocorrência de inchação; durante esse período, liberei o que, em minha experiência, foi uma quantidade copiosa de pus espesso. (Freud apud Masson, 1986, p. 107)

O que Freud relatou como um bem-estar inacreditável devido ao uso de cocaína, parece ter cobrado um preço na carne, ficando a mucosa do nariz lesionada devido à repetição pouco intervalada do uso — o que não é necessariamente novidade na vida de qualquer usuário regular de cocaína. Ainda assim, discordamos da hipótese um tanto ousada de Markel de que Freud foi adicto em cocaína; e, principalmente, de quando o autor aponta para cartas e textos, acusando o tom exaltado de Freud como produto de uma escrita cocainizada. Acreditamos que isso seja da ordem de uma especulação que supõe uma escrita sóbria, como se pudéssemos mapear o que um autor escreve sob o efeito de álcool, cafeína ou mesmo cocaína. Freud era um revisor compulsivo de suas próprias teorias e textos, algo que não é difícil de identificar ao localizarmos notas de rodapé que datam de anos após a data original de publicação dos seus textos. Assim como, considerando os efeitos do tabaco, tão imprescindíveis a Freud, toda sua produção e todo o seu trabalho se encontram mesclados com essa substância. No entanto, apesar desse tipo de suposição, o próprio Markel (2012) defende que nada produzido por Freud deva ser descartado por suspeita de uso de qualquer substância que seja — posição com a qual estamos de acordo, seja no caso de Freud ou de qualquer outro autor.

Sobre a arritmia cardíaca de Freud, não cabe a nós julgar se foi efeito da cocaína, do tabaco, de uma sintomatização histérica ou de influenza. O importante a ser pontuado é que o sintoma físico serviu de cifra que convocou a indagação a respeito de si e dos próprios hábitos. Além disso, acreditamos que, por meio desta pesquisa, nós podemos compreender por que Lacan dá a entender que Freud não teria realizado autoanálise, mas sim uma análise com seu

amigo Fliess, dizendo que “Freud levava adiante não sua autoanálise, mas sim, sua análise pura e simplesmente” (Lacan, 1954-1955/1995 p. 130). A respeito dessa hipótese, o caráter analítico dessa relação consistiria na interrogação de Fliess a respeito de seu sintoma histérico representado na arritmia cardíaca, que — apesar da recomendação de interromper o uso de tabaco — servia de intermédio para os diversos comentários e confissões de Freud a respeito de sua vida íntima.

No tópico seguinte veremos como a sexualidade genital operou enquanto perspectiva de cura nos trabalhos dos pós-freudianos que se propuseram a abordar o tema; bem como aspectos correspondentes às adições — que, mesmo tendo sido escritos há quase um século, ainda merecem destaque nos dias de hoje.