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4. PACIENTES PSICANALITICAMENTE INCORRETOS

4.2. Impasses a partir das formulações lacanianas

4.2.1. O supereu e a questão fálica

A questão sobre uma configuração diferente do superego nas adições passa pelo mito de fundação da ordem social criado por Freud (1912). Construído a partir de rituais identificados em sua incursão a trabalhos antropológicos, Freud supõe que há um pai da horda primeva que detém para si todas as mulheres, privando os filhos do ato sexual e da reprodução. Assim, no primeiro momento temos somente a dominação pela força bruta e a regra arbitrária — situação que faz crescer a indignação que levará o grupo ao festim totêmico, em que esse

72 Lembramos que esse foi o objeto de nossa dissertação de mestrado “Por que a guerra às drogas? Do crack na política ao crack do sujeito” (Alencar, 2012).

pai será morto e devorado. Porém, antes de adentrarmos o segundo momento, precisamos destacar outra perspectiva fundamental para essa questão.

Sob o domínio do pai, a brutalidade é vivenciada enquanto poder irrestrito; de acordo com Freud, esse poder ilimitado é o que será posteriormente subtraído no agenciamento da Lei no grupo. No entanto até aqui a perspectiva das mulheres dessa horda se encontra elidida. A questão é que a crença de plena potência do pai só é totalitária para os filhos, onde aquele que olha da perspectiva do interditado só consegue ver potência e ausência de limites. No entanto, se considerarmos que o pai da horda é o único que pode fazer sexo com as mulheres e seu poder é exercido pela força bruta, não há a possibilidade de que a demanda dessas mulheres entre em jogo; ou seja, ali onde a falha do pai poderia se fazer presente há o silêncio que permite que a imagem de um poder ilimitado prevaleça. Portanto, a insatisfação por parte das mulheres que integram essa horda não perturba a experiência de privação e a imaginação de plena potência que os filhos supõem acerca do pai.

Agora, já no segundo momento, ocorre o assassinato e a instauração da Lei. Após este evento, de acordo com Freud, ressurge a culpa pelo parricídio e ocorre a criação de lugares sociais que representarão o pai; dessa forma, surgem também a institucionalização da autoridade e as representações comunitárias e religiosas. Mas não só, uma vez que também subsiste a fantasia que atribui a um Outro73 a suposta capacidade de gozar sem limites.

Portanto, coabitam no mito de “Totem e tabu” (1912) duas versões superegoicas: a da lei fundada na admiração e culpa, combinados no assassinato do pai e a versão da ausência de limites que restou dessa potência imaginada. Assim, diferentemente de lidar exclusivamente com a função de agência impulsionada pelo lugar vazio deixado pelo pai, aliena-se no ideal de potência que o pai supostamente teve diante das mulheres. É a partir desse desenvolvimento que podemos situar o que Lacan apontou como o superego, que, ao invés de interditar a satisfação, obriga o sujeito a se engajar mortiferamente numa satisfação sem limites.

Essa formação supergoica dialoga com o aspecto nefasto do desenvolvimento fáustico abordado anteriormente neste texto, pois busca a realização do excesso pela performance, pelo simulacro de um Outro completo que não apresente brechas que possibilitem ao sujeito uma experiência de realização. Tal dinâmica convoca o ato sacrificial no qual a completude desse Outro é alcançada por meio de enxertos da própria carne. Assim, a impossibilidade de inferência do sujeito no laço social pode lhe custar a própria vida. O que dessa ideia pode nos remeter à questão das drogas diz justamente de como a capacidade de ponderação é

73 Lacan fez referência a isso em sua “fórmula da sexuação” (1972-1972/2008) na qual uma das representações matemáticas indica que na fantasia, a partir da posição masculina, sempre há um que não é castrado.

simbolicamente minada em nossa sociedade — não só em relação às drogas, mas à errância do sujeito na vida moderna. A busca pela superação da ideia de deus por meio do avanço científico, aliada à megalomania política, requisita da ciência a mesma onipotência atribuída à crença monoteísta, submetendo o sujeito aos desígnios de um pacto irrealizável.

Isto impõe um desafio ao trabalho psicanalítico, de modo que o reconhecimento social de uma realização tende a ocorrer somente sob um semblante grandiloquente. Nesse processo, o que seria da ordem da satisfação se cola a um ideal de realização onde a entrega do corpo se engancha na figura de tragicidade típica à figura de um herói moderno. Os tropeços de Freud com à experiência da cocaína compõe um episódio ilustrativo dessa história. Esse é mais um impasse sobre o qual buscamos avançar neste trabalho.

Ao finalizarmos a reflexão acima, cabe a consideração acerca de qual o lugar da ponderação no nosso tempo, e de que forma isso poderia se articular à psicanálise. Essa afirmação condiz com o trabalho de Zafiropoulos (1996), ao apontar o superego, trabalhado por Lacan como a ausência de limites na demanda de gozo materna. Desde os gregos encontramos debates sobre o vício e a virtude; entre esses debates se incluía a melhor forma de beber e de desfrutar do vinho — bem como a reprovação moral daquele que se diferenciasse dessa norma ou daqueles que se deixavam embriagar em contextos e com frequência inadequada. É importante lembrar que na narração de O banquete, escrita por Platão, os convivas iniciam os discursos em homenagem a Eros por estarem de ressaca. Aristófanes, em tom condescendente com seus pares, afirma que é necessário aprender a “bebericar de forma rasa”. Assim, conforme descrito por Carneiro, na Antiguidade Clássica o ideal vigente no que diz respeito ao uso do álcool era o da moderação; já a abstinência era entendida como “nada em demasia” (Carneiro, 2010).

Após o ensino de Lacan, falar em ponderação se tornou quase uma impossibilidade; isso se dá por sua teorização do objeto a e a caracterização desse objeto situado sempre como excesso ou como falta. Ou seja, o entendimento da experiência do desejo como descompasso, como desmedida no sujeito, pode nos levar ao equívoco de equiparar a ponderação a uma mensuração obsessiva dos hábitos. O caráter excessivo ou faltoso da emergência do inconsciente corresponde a vivenciar a realidade psíquica como desordem de um padrão, não um padrão universal para todos os indivíduos, mas um padrão transferencial presente numa gramática amorosa. Assim sendo, alguém que faz uso crônico de drogas pode ter no seu modo de uso justamente a reprodução desse padrão. Isso não significa que o paciente não classificará o seu uso como excessivo ou descontrolado; porém, a estrutura pela qual o analista identifica essa desmedida será diferente desse registro. Algo da ordem do desejo inconsciente pode estar

muito mais facilmente presente em uma experiência desconcertante, como em um usuário que não sente os efeitos de uma substância ao experimentá-la, do que num baque provocado por uma substância que já está adequada ao registro da rotina. Por conseguinte, consideramos de suma importância fazer essa diferenciação, pois há uma colagem entre excesso e imponderável que pouco tem a ver com a causa do desejo — mas sim, no limite, apenas um simulacro barulhento instalado em um ideal superegoico.

Na grande maioria dos casos não visualizamos o uso irrefreado de substâncias como uma escolha a partir do desejo, mas sim como uma confusão produzida entre o imponderável do desejo com o excesso de uma montagem estéril, composta por figuras de autoridades médicas e jurídicas. O imponderável não é sinônimo irredutível do excesso; ele pode aparecer enquanto elemento motor no excesso e no dano, assim como apontamos em relação ao que Zaltzman (1993) nomeia como “pulsão anarquista”. Dado que geralmente esse excesso surge enquanto tentativa de mascaramento de uma falta, ponderar no que diz respeito ao uso de drogas, a nosso ver, não é nenhum crime contra a ética psicanalítica; pode ser justamente o seu contrário: não se obrigar a um excesso que só faz ludibriar esse objeto que poderia operar enquanto causa.

Talvez uma das afirmações mais acertadas que podemos tecer sobre essa questão é a de que o uso pouco intervalado de drogas é um metodismo inconsciente, de modo que é necessário forte organização psíquica para que não se esqueça de usar ou simplesmente não se distraia com outras paixões. Portanto, lembremos que, enquanto profissionais psis, somos constantemente convidados a ajudar a converter o excesso de drogas em excesso de nada — o que é algo pouco promissor. Também não é necessário que nos recatemos diante desse metodismo superegoico. Por essa via, devemos considerar, sim, a possibilidade de articulação de identidade do toxicômano como uma formação sintomática, de modo que se possa descolar do sujeito a significação pré-formatada do drogado. Talvez, usar drogas consista em um saber fazer, ou seja, saber usar drogas ou saber fazer usufruir de seus efeitos. O uso constante e pouco intervalado é de uma regulação rígida, de aspecto dogmático, correspondente a esse ideal sem limites imaginado no pai da horda primeva. Considerando isso, o trabalho analítico seria o de desregular, desatrelar essa obrigatoriedade metódica de usar sempre e o tempo todo. Ao lidarmos com esse cenário, não podemos ignorar as diferenças de classe e de possibilidades de tratamento daquele que procura ajuda, visto que a posição social em meio a esse processo tende a determinar alguns enredamentos no modo como se sofre e nos meios pelos quais se procura ajuda. Por isso avançaremos em uma discussão acerca de método clínico diante da problemática da transferência no tratamento das adicções.