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4. PACIENTES PSICANALITICAMENTE INCORRETOS

4.3. Modulações transferenciais: consultório de casa, consultório de rua

4.3.2. O drogado da família

É sabido, em psicanálise, que o lugar transferencial não é um detalhe menor no trabalho clínico. Talvez um dos casos mais emblemáticos sobre o tema seja o “caso Dora” (Freud, 1905), didático fracasso que ensina e estimula o debate — tal como nas considerações a posteriori de Jacques Lacan, ao abordar o caso no texto “Intervenção sobre a transferência” (1951/1998).

Dora, pseudônimo atribuído a Ida Bauer por Freud, foi uma jovem, diagnosticada como histérica, que chegou a Freud encaminhada por seu pai, esse também fora paciente de Freud e pelo qual o pai da psicanálise nutria grande estima. O relato do tratamento se transforma num caudaloso desastre, as interpretações de Freud são rebatidas com negativas ou desdém. A trama familiar, com seus segredos, não encontra porta de saída na figura do psicanalista. Este acaba por ocupar um lugar espinhoso na transferência, lugar que não consegue atualizar. Dentre os motivos do fracasso, consideramos que a estima pelo pai da paciente possa ter inibido Freud de acessar questões transferenciais mais finas. Ou seja, Freud

acabava ocupando um lugar muito familiar para poder intervir de modo que atualizasse a relação de Dora com o seu desejo.

O caso de Dora não é apontado aqui sem razão: o lugar de Freud enquanto estima na família da paciente o colocava numa posição de compromisso em manter os seus segredos. Caberia a Freud ocupar outro lugar na relação com Dora, o que não aconteceu. Com relação a pacientes que se encontram com problemas com drogas, não é muito diferente. É comum que a família opere colocando-os nos lugares de “bosta”76 ou “coitado” diante do analista

como uma forma pactuação em que o analisa é convidado a representar o papel de quem deu certo no mundo dos “bem ajustados” que se agregam à família. Levando isso em conta, boa parte do trabalho consiste em conseguir situar, em relação ao paciente, um outro lugar distinto desse que já está pronto para acomodar o analista.

O nome que damos a esta categoria: ‘drogado da família’, é proposital de nossa parte, por transmitir como, nesse caso, o usuário cumpre uma função familiar. A diferença dessa classificação para a anterior se dá por alguns pontos. Primeiro, nesse caso o paciente não está mais em um momento social no qual se encontra o adolescente, iniciando a vida adulta e se deparando com escolhas — ou mesmo a falta dessas escolhas — no que toca a carreira, o futuro e as descobertas amorosas. O que chamamos de ‘drogado da família’ é, muitas vezes, um filho ou filha já adulto ou um dos cônjuges. Diferente do adolescente, o membro familiar que leva a pecha de drogado traz consigo um histórico de entretempos — idas e vindas de instituições, ou mesmo da rua, que produzem um enrijecimento do lugar afetivo no grupo familiar: “aquele que dá trabalho”. Nestes casos identificamos uma simultaneidade; ao mesmo tempo, uma desintegração da voz ou de exercício de uma função fálica para os familiares, porém todo um trajeto e história na rua que lhe confere certa fama.

Nessas circunstâncias também é comum uma torrente de agressividade por meio da qual o paciente prejudica-se a si mesmo para que aqueles que convivem se sintam agredidos por serem menosprezados em seu esforço de salvá-lo. Muitas vezes, é se deixando bater que se paga pelo cuidado dispensado. O jogo se dá em uma dinâmica de machucar a si mesmo como forma de ataque: objeto que causa da angústia alheia, ataca-se onde se ergue o narcisismo por meio da função familiar e social. É sabido que esse círculo infernal da demanda de amor por vezes pode ter desfechos trágicos. Assim como na maioria dos neuróticos, não são raras fantasias sobre o próprio velório ou sobre a própria morte como causa do sofrimento alheio.

Esse endereçamento maciço, bem conhecido por muitos profissionais que acolhem esse tipo de demanda, costuma exigir habilidade e flexibilidade de manejo com a família. Muitas vezes, junto com a questão do uso e dos baques, das pequenas tragédias periódicas, estão as provas de amor, as santificações e os sacrifícios. Intervenções nessa dinâmica requerem delicadeza, pois assim como um neurótico se agarra ao próprio sintoma, pais ou companheiros amorosos se agarram ao próprio sacrifício. Aqui a relação entre amor e sacrifício não é nova. No limite, a própria análise se inicia por essa lógica: abre-se mão de algo, como tempo ou dinheiro, em troca da presença do analista.

A palavra ‘sacrifício’ em psicanálise implica consequências problemáticas devido ao trabalho desenvolvido por Freud em “Totem e tabu” (1912). Por isso o entendimento, comum entre os psicanalistas, de que o sacrifício é um ato de renúncia onde o superego opera por uma resposta neurótica à culpa pelo parricídio tende à interpretação viciada. No entanto, assim como Goldenberg (2006) apontou que uma análise é uma relação amorosa onde pode-se ir embora sem culpa, uma análise bem sucedida é aquela na qual sacrifica-se um modo de satisfação não por culpa, mas por um desejo na imanência do que ainda pode se realizar.

O desafio, como apontado no nosso capítulo sobre a pulsão77, consiste em ligar o

circuito da satisfação ao de uma possível realização. Ou seja, conseguir relançar o desejo do paciente para além do drama familiar que circula em torno do seu uso, de modo que sua vivência no espaço público não se mantenha configurada como atuação endereçada a esse âmbito.