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A repetição e a “pulsão anarquista”

3. SOBRE A FOME DA ALMA: A PULSÃO

3.4. A repetição e a “pulsão anarquista”

Ao longo de nossa pesquisa nos deparamos com o interessante trabalho de Nathalie Zaltzman (1993), no qual a autora aborda o que ela denomina de “pulsão anarquista”. Ela explora de forma contundente a divisão pulsional apresentada por Freud, sem deixar de ceder em algumas minúcias clínicas que, por vezes, acabam subvertendo a divisão entre pulsão de vida e pulsão de morte. Para que o leitor possa nos acompanhar na utilização dessa noção sobre o objeto de pesquisa, faremos uma abordagem breve da proposta da autora.

Zaltzman parte da divisão entre indivíduo e sociedade desenvolvida por Freud em “Mal-estar na civilização”, de modo que a pulsão de vida diz respeito ao amor e a união e a

pulsão de morte, à agressividade e violência. Nesse sentido, a autora irá destacar a importância da pulsão de morte na sua dimensão de separação e, até mesmo, no que Freud marca como sua característica antissocial. Por essa via, relacionará sua articulação com o anarcoindividualismo como pressuposto político e teórico, tarefa para a qual utilizará referências do anarquista alemão Max Stirner. Por conseguinte, o que autora aponta como o princípio em jogo na pulsão anarquista diz respeito à preservação de uma característica individual, mesmo que isso seja contra todas as regras sociais.

A autora identifica que, no tratamento de pacientes que vivem uma experiência-limite, há um risco de si e do entorno em função da preservação de algo inegociável e que, por vezes, dá impulsionamento a uma tragicidade que resiste às intepretações que seriam mais comuns na prática psicanalítica — de modo que conflitos ou alianças edípicas, o lugar ocupado na fantasia inconsciente ou, mesmo, a demanda de amor na transferência não são fenômenos passíveis de manejo. De acordo com Zaltzman a importância da análise se deve ao fato de que “permite a manifestação das forças antagônicas condensadas numa apreensão imóvel, organizada e sustentada pelo anoréxico que, para se defender de um perigo vital, corre o risco de morrer” (Zaltzman, 1993, p. 70).

Para exemplificarmos como interpretamos o que a autora chama de “perigo vital”, lembremos do problema lógico exposto por Lacan em seu seminário sobre “Os conceitos fundamentais da psicanálise” (1963-1964/2008). Nesse seminário, Lacan descreve o problema lógico da falsa escolha envolvida no roubo de uma bolsa. Quando o assaltante diz “a bolsa ou a vida?” (Lacan, 1963-1964, p 233.), só há uma resposta possível para a mulher assaltada — pois, se ela escolhe a vida, ficará sem os dois. O giro feito por Zaltzman, ao utilizar o termo “perigo vital”, resulta numa formulação já exposta por Ricardo Goldenberg (2006, p.29): “a vida sem a bolsa, às vezes, não vale a pena ser vivida”. Nesse sentido, quando nos referimos ao perigo vital, não nos referimos à sobrevivência, mas à uma vida que não aceite ser acuada até a mera condição de sobrevivência.

O direcionamento clínico diante dessas experiências-limite contempla o caráter anarquista da pulsão no sentido de que a ação do psicanalista busque a sustentação dessa separação. Ainda segundo a autora: “onde impera a pulsão de morte, onde ela luta para que o paciente viva e possa se desfazer das obrigações do amor que o destroem, a análise deveria poder sustentar este trabalho de liberação, ao invés de dissimulá-lo em novas associações” (Zaltzman, 1993, p. 74).

Ainda que discordemos da articulação com a oposição indivíduo e sociedade —, discordância que se dá em função de nosso trabalho com a noção de sujeito —, a autora faz

recortes de impasses clínicos extremamente valiosos para pensarmos as drogas. A originalidade com que a autora aborda essas questões não deve passar desapercebida diante do desafio clínico que é receber quem pouco aposta nas palavras; isso porque, desde já, podemos considerar a distância com que o ambiente dos consultórios particulares está da rotina de alguém que se droga com frequência. Pois, conforme afirmado por Melman:

os propósitos que elaboramos sobre o alcoolismo, sobre a toxicomania são, em geral, propósitos inoperantes e, aliás, o paciente nos joga imediatamente isto na cara. Ele não se priva de nos fazer entender que o que temos a lhe dizer, já escutou, não precisa de nós para inventá-lo. (MELMAN, 1992, p. 129)

Essa experiência é um tanto comum, no sentido de uma impossibilidade de fazer diferença em meio a uma rotina em que tudo se torna cronificado. Por tais condições é que é importante abordar o uso intensivo de drogas de modo a operar como uma defesa da vida por meio da morte. Isso pode ser compreendido pelo que Lacan marcou como as duas mortes de Antígona57, ao abordar o momento em que a heroína está presa e passa a se queixar:

quando começa essa queixa? A partir do momento em que ela transpõe a entrada da zona entre a vida e a morte, onde o que ela já tinha dito ser toma vida do lado de fora. Com efeito, há muito tempo que ela nos dissera que estava no reino dos mortos, mas dessa vez a coisa é consagrada no fato. Seu suplício vai consistir em ser trancada, suspensa, na zona entre a vida e a morte. Sem estar ainda morta, ela já está riscada do mundo dos vivos. (Lacan, 1959-1960, p. 330-331)

O que o psicanalista francês aponta é como essa segunda morte — ou seja, a morte de uma condição de sujeito — pode acontecer antes da primeira, a saber: a morte do corpo biológico.

Esse esquema se insere em uma lógica implacável nos contextos onde a precariedade impera, dentre os desamparados e descolados de um establishment da produtividade ou mesmo do que nossa sociedade toma como digno. Não é raro que o alimento para a alma seja mais importante que para o corpo: a cachaça, o crack, a maconha ou a cola de sapateiro. Diferentemente dos animais, nos quais a sobrevivência opera pelo instinto de preservação do corpo biológico, os humanos tendem a se apegar aos restos de cultura ao qual podem se segurar. Uma viagem de barriga vazia pode valer muito mais do que a repleção em meio ao lixo. Na modernidade, firmamos um saber que atribui às drogas o poder da morte; mas essas

57 Peça escrita por Sófocles que Lacan utiliza como base para articular a ética do desejo, diferenciando esta do serviço de bens ao qual os psicanalistas vinham se submeneto. Na peça, Antígona é condenada à morte por descumprir à lei de que o seu irmão deveria apodrecer sob o sol, por ter sido julgado traidor.

mesmas drogas permitem — e até possibilitam — que se possa continuar vivo, com um certo grau de loucura dosada, de modo que se tenham forças pra seguir adiante. Isso definitivamente não é qualquer coisa ao considerarmos o psiquismo humano. Diante de nosso atual panorama social, não podemos negar que a fome da alma, venceu a do estômago.

Retornnando ao trabalho de Zaltzman (1993), outro aspecto importante explorado pela autora em sua proposição de uma “pulsão anarquista” (1993) aborda a tribo Tchulé, constituída por comunidades esquimós que vivem à beira do ártico e são retratadas por Jean Malaurie em sua obra “os últimos reis de Thulé” (apud Zaltzman, 1993). Zaltzman irá considerar a tribo Thulé como uma comunidade privilegiada para a observação e constatação da pulsão anarquista, isto se dá por sua condição de vida austera, a opção por viver em um contexto inóspito que ditará a dureza de seus costumes no que tange aos tabus sociais, por exemplo, o casamento entre primos de até sexta geração é restrito. Um aspecto destacado pela autora a respeito da tribo são seus rituais solitários. Os homens adultos saem para caçar sozinhos, o objetivo de sua caça é o urso, animal dentre os mais desafiadores possíveis, sendo que o risco de morte envolve o animal e a viagem solitária, se considerarmos as condições climáticas adversas. Outro aspecto curioso é que os membros da comunidade que não são considerados aptos à caça, como crianças, adolescentes e mulheres, são possuídos pelo perdlérorpoq, palavra utilizada para nomear uma explosão de violência extrema e solitária, onde o possuído rasga as próprias roupas e ataca-se contra o chão. No perdlérorpoq não se ataca ou se inflinge violência a outrem, só a si mesmo (1994). Fenômeno semelhante ao que encontramos no problema nas adicções.

Por fim, Zaltzman apontará como a clínica das situações-limite contempla uma dinâmica semelhante ao funcionamento da tribo Tchulé, nela “a vigilância mobiliza a resistência à morte, serve ao combate com armas igualmente homicidas. A lógica da defesa, como para o inui, pode conduzir à antecipação” (pág. 82).

Zaltzman (1993) faz, por exemplo, um exercício tipicamente freudiano, assim como podemos presenciar em “Totem e tabu” (1912): os processos anímicos presentes em pacientes oriundos da sociedade ocidental encontram explicação por meio do estudo antropológico de sociedades tribais — nesse caso, a tribo Thulé. Consideramos que tais exercícios são válidos enquanto metáforas que compõem uma espécie de cosmologia da clínica psicanalítica. Ainda que, por vezes, a aproximação possa parecer grosseira em contraste com o refinamento comum nos estudos antropológicos, a suposta linha que separa morte e defesa da vida — como mostrada nos Thulé — ganha nuances interessantes para pensarmos o funcionamento pulsional proposto pela autora.

Contudo, o problema de Zaltzman se insere na sua referência pautada no anarcoindividualismo. Talvez a ideia de Bakunin a respeito da liberdade — a proposição de que a liberdade de cada um não se detém em um limite ante a liberdade do outro, mas ao contrário, no outro se realiza sua extensão ao infinito (BAKUNIN, 1871) — seja muito mais precisa do que a concepção de que há um antagonismo de forças entre indivíduo e sociedade. Isso porque o anarquista russo jamais aceitou que a ideia de liberdade pudesse ser aplicada ao indivíduo sem considerar uma realidade social onde essa liberdade seja ratificada enquanto comum. No entanto, a ideia de liberdade, após a noção de determinismo do inconsciente, torna-se algo controverso. Ainda assim, a noção de liberdade exposta por Bakunin nos remete à importância e à impossibilidade de descolamento do sujeito em relação ao Outro.

Lembremos que no que toca a questão das drogas, não se trata de o indivíduo se drogando como meio de implodir o seu meio, mas de uma estratégia cruel de falseabilidade por meio de nossa moral social que permite que o noia58 finja acreditar que, de fato, ele seria

um outsider — e não necessariamente parte do jogo social.

Para justificar sua posição de antagonismo entre indivíduo e sociedade, Zaltzman se vale da citação de Freud em “O mal-estar da civilização” quando este afirma que “é pouco provável que mediante alguma influência possamos levar o homem a transformar sua natureza na de uma térmite; ele sempre defenderá sua exigência de liberdade individual contra a vontade do grupo” (FREUD, 1930/2010, p. 58). A questão é que essa posição, bem exposta por Lacan (1960/1998) como operação dialética do desejo, não remete a nada mais do que uma mensagem que um sujeito inverte como vinda da própria sociedade — ou, em termos lacanianos, do Outro.

Sendo assim, podemos considerar que com o noia ocorra algo que o próprio Freud descreve alguns parágrafos antes, quando este afirma que

o eremita dá as costas a este mundo, nada quer saber dele. Mas pode-se fazer mais, pode-se tentar refazê-lo, construir outro em seu lugar, no qual os aspectos mais intoleráveis sejam eliminados e substituídos por outros conformes aos próprios desejos. O indivíduo que, em desesperada revolta, encetar este caminho para a felicidade, normalmente nada alcançará; a realidade é forte demais para ele. Torna-se um louco, que em geral não encontre quem o ajude na execução de seu delírio. Mas diz-se que cada um de nós, em algum ponto, age de modo semelhante ao paranoico, corrigindo algum traço inaceitável do mundo de acordo com o seu desejo e inscrevendo esse delírio na realidade. (FREUD, 1930/2010, pág. 38)

A reviravolta no fim da citação recortada por nós é de suma importância para o tratamento da questão. Esse traço paranoico inscrito na realidade diz justamente da importância do resgate da condição precária da realidade, de modo que o que se apresenta como forte demais é a demanda superegoica de impor essa realidade enquanto bloco irremovível. Nesse sentido, o uso do termo ‘noia’, como abreviação de paranoico, parece mais o retrato de alguém que falha em tentar ajustar seus desejos à tirania da modulação perceptiva da realidade do que, simplesmente, aquele que sofre alucinações persecutórias em função dos efeitos de uma droga. Parece-nos que aí certamente reside algo de uma pulsão anarquista.

Por fim, podemos afirmar que por meio de um trajeto costurando questões clínicas, discussões a respeito da interpretação do uso de drogas e o conceito de pulsões, alcançamos o ponto onde a pulsão, partindo de seu circuito de satisfação e insatisfação, passando pela importância das circunscrições simbólicas que delineiam esse circuito, infere diretamente na insuficiência do princípio de realidade para intervir no Real do campo social.

Nesse contexto, a ponderação frente à crítica ao modo como as produções lacanianas abordam o papel da ciência na nossa sociedade exerce papel fundamental ao poder remeter o papel da política nessas relações. Nossa volta em torno do tema implica o caráter anarquista da pulsão que não se deixa ludibriar pelo aparente fechamento dos discursos acerca do funcionamento social. Também a divisão de classes, operador precioso em nossa análise do problema, nos implica em uma clínica que resiste às adversidades da vida nua — convocando- nos a buscar as brechas do regime de extrema privação que permeia os contextos onde o uso de drogas se torna mais problemático. Por esse motivo, no capítulo a seguir apresentaremos vinhetas clínicas que nos possibilitem pensar as mais diversas condições nas quais um paciente com problema com drogas apresenta sua demanda frente ao saber psicanalítico.