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2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

2.7. A materialização da linguagem verbal

Cristóvão e Nascimento (2011), seguindo o pensamento de Schneuwly e Dolz (2004, p. 26-28) e o de Bronckart (2003), formulam uma proposta de linguagem materializada em textos orais e escritos.

De acordo com essa proposta, a transformação de uma linguagem em textos se processa em dois níveis de análise: um relativo aos fatos físicos e sociais observáveis no contexto de comunicação – nível sociológico; outro relativo às operações de textualização – nível psicológico. O primeiro nível citado é constituído por um conjunto de operações de contextualização (lugar social do agente, finalidade da atividade, relações entre parceiros, interlocutores, momento e lugar da enunciação) e pelas macroestruturas semânticas disponíveis na memória relacionadas ao conteúdo referencial, que correspondem aos conhecimentos prévios dos interlocutores.

O segundo nível contempla as operações de textualização (operações de ancoragem textual, enunciativa de referencialidade, de planificação e operações de constituição de estratégias linguísticas e discursivas).

Da passagem por esses dois níveis resulta um produto final: o “texto”. O relatório de experimento, como um megainstrumento de aprendizagem em contexto de ensino de ciências. Não um texto tão somente, mas um gênero, que tem um conteúdo temático, uma estrutura

composicional e um estilo com funções sociais definidas dentro de uma esfera de comunicação.

Nesse sentido, para a análise do gênero pesquisado, segundo a fundamentação teórica desta tese, se faz importante também retomar duas questões colocadas por Schneuwly (1985 apud ROJO: 2000), quais sejam: 1) Qual é a relação entre os agentes (aluno/professor) e a própria situação material de produção do discurso (tempo e lugar material da enunciação)? 2) Qual é a relação entre o conteúdo textual global e a situação material de produção? Trata-se do mesmo mundo ou de mundos diferentes?

Da primeira questão, vêm as relações de ancoragem enunciativa de implicação e de autonomia e, da segunda questão, surgem as relações de ancoragem enunciativa de referencialidade conjunta e disjunta.

A ancoragem de implicação evidencia uma atividade discursiva que se realiza em constante e explícita interação com a situação material. São características desse tipo de ancoragem a presença de referências aos interlocutores presentes na situação, a lugares físicos e ao momento no qual está havendo a atividade de linguagem, vale dizer, ao momento da própria enunciação. A ancoragem de implicação trata do eu/tu, do aqui/agora. Portanto, a dêixis de pessoa, lugar e tempo são marcas do processo enunciativo de ancoragem de implicação.

A ancoragem de autonomia é demonstrada através da abstração da situação material de produção, sendo identificada por meio da presença de implícitos. Pode-se afirmar “benvenisteanamente” que se encontra o não eu /não tu: o ele, a terceira pessoa, ou a não- pessoa.

O eixo da referencialidade, por sua vez, também estabelece duas relações possíveis, agora entre conteúdos do mundo discursivo e do mundo material da produção. São elas a relação de conjunção e disjunção. Pela primeira é expressa a situação material: o que se diz (o dito) não se distingue, ou é discriminado na linguagem, da situação material, não havendo ruptura entre o mundo dito e o mundo da situação material da produção. Exemplificam a referencialidade conjunta os gêneros do discurso teórico que envolvem, entre outras, as ações de instruir e prescrever presentes também em outros gêneros textuais, tais como manuais, guias e roteiros. Na referencialidade disjunta, os mundos se separam, deixando-se de expressar a situação imediata. Em lugar dela, os conteúdos passam a fazer parte de um mundo diverso do momento da enunciação e são operacionalizados por mecanismos de pelos chamados mecanismos de textualização: conexão, coesão nominal e coesão verbal. Tais mecanismos influenciam na linearidade do texto e indicam ao destinatário

(enunciatário/interlocutor) articulações hierárquicas, lógicas e/ou temporais, que dão sentido ao texto. Os professores, então, ao lerem os textos dos seus alunos, encontram, além das marcas engendradas operações de contextualização e de ancoragem enunciativa e de referencialidade, como também as marcas deixadas por esses mecanismos. No caso do relatório de experimento, são marcas do discurso teórico, conforme Bronckart (2003, p.301). São elas:

• exploração de tempos verbais presente e pretérito perfeito do indicativo;

• ausência de unidades referentes aos interlocutores ou ao espaço/tempo da produção; • ausência de nomes próprios e de pronomes e adjetivos de 1ª e 2ª pessoa do singular, ou ainda de verbos na 1ª e na 2ª pessoa do singular; possível presença da 1ª pessoa do plural em pronomes e verbos;

• presença de múltiplos organizadores com valor lógico-argumentativo;

• presença de numerosas modalizações lógicas, onipresença do auxiliar de modo “poder”;

• exploração de procedimentos de focalização de certos segmentos de texto (procedimentos metatextuais e intertextuais) e

• grande frequência, ao lado das anáforas pronominais, de anáforas nominais ou de procedimentos de referenciação dêitica intratextual.

Seguindo a abordagem de Dolz e Schneuwly (1998 apud CRISTÓVÃO; NASCIMENTO, 2011, p. 43), o agente/autor desse relatório, ao deixar todas as marcas do discurso teórico, traduziu suas capacidades de linguagem: capacidade de ação (reconhecimento do gênero e de sua relação com o contexto de produção e mobilização de conteúdos); capacidades discursivas (reconhecimento do plano textual geral de diferentes gêneros, tipos de discurso e sequências mobilizados); e capacidade linguístico-discursivas (reconhecimento e utilização das unidades linguístico-discursivas como signos). No conjunto dessas capacidades de linguagem, concretiza-se a competência discursiva dos falantes, conforme discutido anteriormente (2.4, p.36).

Observa-se que é essencial que os alunos possuam um saber a respeito de todos os aspectos do sistema de comunicação de que dispõem (escolha dos gêneros textuais, dos mecanismos de textualização, de enunciação e de planificação dos textos usados para interagir em uma atividade de linguagem) e uma capacidade de utilizar, mobilizar e de colocar em prática esse saber. É preciso destacar ainda, neste capítulo, que, embora os relatórios devam ser arrolados entre os gêneros do discurso teórico, predominantemente constuído pela capacidade de de expor (BRONCKART, 2003, p.301), há que se considerar também as de

narrar e de argumentar, na medida em que as marcas do pretérito, a presença de múltiplos organizadores com valor lógico-argumentativo e de numerosas modalizações lógicas, onipresença do auxiliar de modo “poder” appontam para as ordens do narrar e do argumentar. Em Procedimentos e Métodos constatam-se marcas da ordem do narrar; em Apresentação e Discussão de Resultados e Conclusão, argumentar.