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A Metáfora nos Romances Satíricos e Jocosos

3.3 A METÁFORA NOS ROMANCES

3.3.2 A Metáfora nos Romances Satíricos e Jocosos

Para ilustrar esta primeira análise, escolhemos o romance de número oitenta que, sem dúvida, é o libelo mais mordaz do corpus, podendo ser classificado como satírico. Nele, o eu lírico faz uma crítica severa a dois tipos viciosos. No

desenvolvimento argumentativo da voz maledicente, surgem palavras grosseiras, como “putas”, “patifa” e “rabo”, desqualificações que margeiam tanto o campo das qualificações, num sentido mais abstrato, quanto o campo da materialidade. Entretanto, nesse aparente caos provocado pelo estado irascível da voz satírica, há uma ordem na construção do discurso poético que se guia pelas regras prescritas de decoro nas artes poéticas e pelos recursos argumentativos construídos por meio de loci retóricos contextualizados ao ambiente político-teológico da sociedade seiscentista.

Quem dissera que no dia

em que as comadres à noite costumam sempre ajuntar-se

a fazer filhos e doces 05 Houve duas que fizeram

com descompassadas nozes muita soma de pancadas

muita catervas de coices Cuidei que por ser entrudo

10 quando mil pulhas se ouvem uma a outra se empulhava patenteando seus podres Porém depois que as ouvi

publicar tal desconformes 15 bem conheci que há mulheres,

que não prestam para odres Quem dantes visse a amizade e seus íntimos amores diria que venceriam 20 em adoração ao bronze

Mas como as mais delas tem

mudança por sobrenome logo se mudam e pelejam

por qualquer palhinha podre 25 Arrenegai da comadre

que cose o que bebe, e come num ano, e que só num dia tudo o que cose descose Que de comadres fariam

30 mui esplêndido pagodes ao tempo que estas duas davam na honra seus cortes Quantas vezes ambas juntas estando amigas conformes 35 murmurariam dos Ricos

dizendo as faltas dos pobres Oh quantas de soalheiro

de seus agudos estoques da língua foram feridas 40 que são feridas de morte

Quantas vezes uma a outra

melhor que a seus confessores descobriram alguns segredos

que agora quem quer os ouve 45 Eu nunca comadres vi

gritarem como em açougue e no cabo às espetadas dão bofetadas que chovem

Putas se chamam, e disputam 50 No que sabem quanto podem

e saindo tudo a praça não fica nada no fole Disse uma dize malvada

não dissestes que três noites 55 para embruxar um menino

Mentes velhaca, eu podia

dizer-te, nem por remoque de mim esse testemunho 60 tu patifa és a que foste

Preza pelo secular

feiticeira tão enorme que eu te vi com estes olhos levar um gibão de açoites 65 Em mim açoites magana

quando na rua das flores um negro te deu no rabo muitas palmadas e coices Coices em mim! tal mentira

70 que uma patifa dos montes que andou sempre a Regalheira me tenha a mim tão gran tosse Dos montes! não vereis mana

a cidadoa tão nobre 75 que vejo aqui de galisa

metidinha em um Alforje Mentes michela que fui

cá batizada em São Jorge com que sou filha da praia 80 e tu viestes de Arronches

Estas e outras palavras

que não é bem que se contem passaram as ditas comadres no dia que é de seu nome 85 Mas que a que não é de essência

que haja comadres, quem foge de tomar algumas, livra

de que nenhuma o desonre Se a história foi comprida 90 porque os modernos autores

não mais larga a um romance Que Três Coplas sobre doze Para linguão tão comprido

duas regrinhas não podem 95 narrar o que entre os ares

com alaridos, e vozes

Nesse romance, Fonseca dá voz a duas comadres fofoqueiras, as quais trocam insultos e, por meio destes, desnudam seus vícios ao leitor. A teatralidade, característica inerente à sátira, é explicita nos versos deste poema. Nas primeiras quadras, o narrador apresenta a cena ridícula que se desdobrará: duas comadres que ‘tem mudança por sobrenome’(v. 21), intemperadas e indiscretas, levam suas diferenças ‘à praça (v. 50)’ com gritos e com ‘bofetadas que chovem’ (v. 48). Entre os insultos trocados pelas comadres se destacam aqueles que fazem alusão a tipos

viciosos característicos da sociedade cortesã do período, como a figura da feiticeira, e a desqualificação da origem.

Nessa cena, destaca-se uma analogia central, pois se aproximam, por oposição, mesmo que elipticamente, dois tipos femininos da sociedade de corte: a cortesã e a aldeã, ambas desdobrando-se, respectivamente, em duas possíveis conotações. Sendo assim, temos de um lado o tipo discreto e temperado e de outro o tipo afeito a paixões, destemperado e, portanto, vicioso. Desse modo, a expressão ‘mudança por sobrenome’ é perfeitamente plausível e soa como antonomásia.

Os insultos praticados em espaço público e durante o entrudo dão ares de espetáculo à briga das comadres. A cena se desenvolve em lugar e tempos ideais: a praça, por excelência lugar dos espetáculos e o entrudo, ocasião do mundo às avessas, na qual se pratica toda sorte de vícios. No início do poema, a persona satírica descreve a cena e a personalidade das mulheres por uma série de metáforas. Desse modo constrói uma descrição por imagens que vão sendo criadas ao longo do romance, na forma da metáfora de hipotipose:

Cuidei que por ser entrudo

quando mil pulhas se ouvem uma a outra se empulhava patenteando seus podres Porém depois que as ouvi

publicar tal desconformes bem conheci que há mulheres,

que não prestam para odres (vv. 9-16)

Nesse excerto, logo se percebe o uso da paronomásia, que gera um efeito equívoco de som entre os vocábulos “pulhas” e “empulhava”. Entretanto, a ideia é aproximar semanticamente as duas palavras, visto que pulha tem sentido de canalhice, ridículo, mentira, entre outros. Empulhar, na verdade, é verbo metafórico análogo ao substantivo “pulha”, no sentido de proferir canalhices, mentiras (...), palavras moralmente podres. A “publicação de tais desconformes” (v. 14), elegante expressão metafórica, faz com que o eu lírico mais uma vez faça menção ao duplo fidalgo / não fidalgo ou mulher da corte / mulher da aldeia, pois, para ele, há mulheres “que não prestam para odres”. Nesta operação metafórica há a substituição do animado (mulher) pelo inanimado (odre) ou de uma espécie para outra. A mulher, se convertendo em “odre” é receptáculo moral, que, nesse caso, está cheio de vícios (podres), e os despeja em praça pública. O odre é objeto que,

desde a Antiguidade, é utilizado para armazenar o vinho. Sendo assim, podemos pensar, também, na mulher embriagada com esse tipo de bebida. O fato a faz perder o controle sobre suas ações, deixando-a mais próxima de Dionísio que de Apolo. Além disso, este objeto remete ao seu “semelhante” ‘vaso’, receptáculo do vinho, encontrado em Gregório de Matos associado à relação simétrica ‘sêmen’ para vagina / ‘vinho’ para vaso, remetendo, portanto, à relação sexual (em praça pública, consequentemente, ilícita).

Para evidenciar o caráter vicioso das duas comadres, a voz maledicente usa as metáforas a serviço da amplificação retórica. Sendo assim, as imagens criadas servem de exemplo para reforçar argumentos. As sinédoques, funcionando como metáfora de atribuição, automatizando partes do corpo de maneira hiperbólica, fazem parte desse procedimento. Assim, o aparelho fonador ou a boca é transformada em “fole” (v. 52); a língua, aumentada pela lente satírica, torna-se um “estoque” (v. 38), ou seja, um instrumento pontiagudo, como uma espada, capaz de ferir: “de seus agudos estoques / da língua foram feridas / que são feridas de morte” (v. 38-40). A língua metamorfoseada em estoque remete a dupla imagem erótica da espada e seu receptáculo, a bainha (vagina > ... > bainha), que sugere uma relação contrária aos princípios teológicos políticos da ocorrência no casamento, por ocorrer na praça pública, por meio da sugestão do sexo oral e, portanto, duplamente contra naturam.

A automatização de partes do corpo cria programaticamente monstros “inverossímeis” ou desproporção proporcionada, que, no dizer de Hansen (1989, p. 272), é

Técnica de fazer totalmente visível uma particularidade através de sua automatização fantástica, funciona como sinédoque que, pars

pro toto, emblematiza um caráter de tipo ou posição jurídica, e o

imaginário deles. A parte automatizada como emblema funciona, assim, como definição ilustrada de tipos e ações [...]. O detalhe amplificado como emblema e o apelido dos tipos são inverossímeis de aplicação: um mesmo epíteto é, muita vez, aplicado a tipos muito diversos, referidos a várias pessoas. Da mesma maneira, uma mesma parte, como “nariz”, “vaso”, “cu” etc., é peça de um código de maledicência.

Ao mesmo tempo em que descreve o comportamento das duas comadres, a persona satírica as rebaixa como tipos viciosos. Mas o grande destaque para as estratégias de rebaixamento fica por conta das antonomásias.

Aconselhadas por Tesauro a serem usadas quando se quer engrandecer ou diminuir um nome, elas estão próximas da metáfora de hipérbole e são recurso para louvar ou vituperar. Portanto, atuam em discursos ligados ao gênero retórico demonstrativo.

A persona satírica categoricamente diz: “de putas se chamam, e disputam / no que sabem quanto podem” (v. 49-50). Entretanto, esse rebaixamento por antonomásias assume maior ferocidade e também se multiplica quando as comadres assumem a voz. Assim, surgem insultos, tais como “malvada”, “patifa”, “feiticeira”, “magana”, “michela” (prostituta, meretriz) e, como se não bastasse isso, uma é açoitada como um animal, outra leva, no “rabo”, “muitas palmadas e coices” (v. 68) de um negro. Nessa passagem, a expressão “levar no rabo” ganha significados muito próximos do obsceno. Entretanto, a violência da diatribe não para por aí, porquanto a mulher é acusada de ser açoitada por um negro, ou seja, dentro de uma argumentação que leva em conta tópicas retóricas, é humilhante receber qualquer desacato de pessoas de posição social e origem “inferiores”. Por isso, é verossímil surgirem insultos, cuja estratégia é o rebaixamento, como “patifa dos montes” e outros proferidos entre os versos70 e 80.

Caras ao imaginário fidalgo, a limpeza de sangue e a origem ilustre são invertidas como instrumento para o rebaixamento retórico: como um topos do gênero epidítico, elas remontam ao capítulo IX do livro II da Arte Retórica de Aristóteles, em que o filósofo grego aponta a possibilidade de, ao louvar ou vituperar alguém, analisar “se as ações de um homem são dignas de seus antepassados” (ARISTÓTELES, 1979, p. 63).

O uso do calão pode ser justificado, quando este é parte de estratégia retórica de rebaixamento. Além disso, entrando no campo do verossímil poético, os insultos por meio de palavrões se justificam dentro de um contexto de apropriações simbólicas, resgatando valores ideológicos do período histórico em que Fonseca viveu. Sendo assim, é perfeitamente justificável que duas comadres fofoqueiras, alegoria para dois tipos viciosos, sejam comparadas a “putas”. As metáforas, nesse caso, seguem o decoro do gênero satírico, sendo, portando, livres para criar inverossímeis, como a automatização da língua transformada em instrumento de corte, capaz de ferir o corpo e a alma ou, por outro lado, esses tropos podem ser usados como antonomásias baixas, servindo a estratégia do rebaixamento.

Dentro do contexto teológico-político do século XVII, o ataque ao vício, mesmo usando o calão ou a obscenidade, justifica-se pela noção de proveito, equivalente a deleitar, muitas vezes pelo elemento jocoso que reverbera na voz maledicente, e instruir, dentro de um apelo moral pela correção dos vícios.

Para finalizar esta análise, vale comentar o humor irônico do eu lírico quando, nas últimas estrofes (v. 89-96), pede desculpas ao leitor por supostamente ter fugido ao decoro, por infringir as regras de composição exigidas pela forma poemática. Foi prolixo quando deveria ser conciso, entretanto seria inverossímil escrever a respeito de figuras tão faladeiras, cujas bocas são “fole”, de maneira sumária.

No romance número 28, Antônio da Fonseca Soares ilustra bem o que diz respeito ao riso sem dor70. Nesse poema, o eu lírico tem compromisso apenas com o jocoso, não obstante haja alguns momentos em que aparecem indícios da voz moralizante, representada pela ética católico-cortesã.

De chança quero pintar Izabel essa beleza

e quero zombar de graça já que tu zombas deveras 05 És Izabel muito Linda

mas porém muito avarenta pois estimas tanto o ouro que trazes nessa cabeça És mulher de bom juízo

10 mas inda assim és tão néscia que a ver no céu duas luzes trazes metido na testa Com teus olhos é cruel

quem por olhos os nomeia;

70 O riso sem dor é próprio da comédia e é comentado por Aristóteles na sua Ate Poética. Segundo

esse autor, “a comédia, [...] é imitação de pessoas inferiores; não, porém, com relação a todo o vício, mas sim por ser o cômico uma espécie do feio. A comicidade, como efeito, é um defeito e uma feiúra sem dor nem destruição” (ARISTÓTELES, 2005, p. 24). Hansen também comenta o riso sem dor, mas pela ótica de Tesauro: “segundo Tesauro, que interpreta Aristóteles, é a maledicência que distingue a sátira da comédia, observando-se uma possibilidade de intercâmbio delas determinada não pela matéria deformada, objeto do canto, mas pelo modo. Em outros termos, um tema ridículo pela matéria – “torpezas do Brasil, vícios, e enganos” – torna-se satírico conforme o riso seja articulado com dor. Quando se zomba de alguém atacando-lhe a reputação, por exemplo, o ridículo efetudado não pode ser como deformidade sem dor, tratando-se de ridículo próprio da sátira. O inverso também é valido: uma matéria tratrada geralmente de maneira mordaz torna-se apenas cômica se o motejo é feito não para agredir, mas para brincar, jogar, etc. O cômico é uma deformindade sem dor” (HANSEN, 1989, p. 281).

15 pois te tira os olhos fora quem lhe tira a ser estrela, A flor da cara tais flores

te quis por a natureza

que esses de rosas teu rosto 20 para ser a primavera

Com mil graças teu nariz

suposto que breve seja é breve todo de graça

sem que de Roma pareça 25 De pura vergonha a boca

cuido que a tens tão vermelha pois entre prendas tao grandes se envergonha de pequena

Tua garganta e mais corpo 30 é luzente prata terça

e não debalde se diz que tu vales quanto pesas Se conheces tuas mãos

pelo que tens de perfeitas 35 apostarei que não sabes

qual é tua mão direta Quando te mostras mais justa

então mais à larga peças, que quem aperta tal corpo 40 mostra não ter consciência

Pois os teus pés a pés juntos que são pés a vista nega, se não andas tanto a ponto que num ponto te sustentas. 45 É bem daqui para cima,

que a dizer mais não me atreva que posto sou velhacão

não quero falar de perna, E sem que mal te deseja

50 tal amor tenho a pobreza que melhor te vira nua que rica de tantas prendas

Nesse romance, o eu lírico, num tom irônico, zomba e elogia ao mesmo tempo. Apesar de sua “sinceridade” por dizer querer “zombar de graça”, há nesse poema um esboço de uma metáfora de decepção, já que na descrição da mulher finge um elogio, que na verdade não existe. Mas quem se destaca nesse poema é a metáfora de hipotiposi, num procedimento que dialoga com o ut pictura poesis horaciano e aproxima os procedimentos miméticos da poesia e da pintura. Fonseca,

seguindo o gosto seiscentista pelos retratos, constrói um eu lírico que pinta sua musa à “chança”, ou seja, zombando-a. Melhor dizendo, Antônio da Fonseca se apropria desse gênero71 e, por meio da inserção de elementos jocosos e irônicos, constrói um antirretrado.

No início do poema, deixa claro: a musa é mulher de “bom juízo”, porém “néscia”, isto é, o contrário da cortesã discreta dos palácios. Aqui, podemos notar novamente a comparação implícita entre a mulher néscia e a mulher discreta cortesã e, além disso, a tópica da “bela cruel”. Mas esse é apenas o começo da pintura. Logo em seguida, descreve o rosto de “Izabel”, que se faz com toda a sorte de analogias e hipérboles. As metáforas usadas na descrição são as metáforas fósseis. Assim, o cabelo louro é ouro; os olhos são estrelas; o rosto é um campo de flores; boca e nariz são brevíssimos; as mãos e pés são simétricos, pequenos72 e delicados. A mulher é pintada numa atmosfera maravilhosa, tem beleza quase sobrenatural, as partes ilustradas pelas metáforas pictóricas possuem proporções simétricas. A musa é bela, porém néscia. Possui uma incongruência, visto que o belo é o lugar da virtude, não do vício.

A comparação implícita notada no poema é possível pelo conhecimento do gênero do qual o poeta se apropriou. É dessa forma que se desvenda a analogia entre a mulher discreta e a mulher viciosa. Ao descrever partes do corpo da mulher de forma simétrica, ao pintar os cabelos como sol e os olhos como estrelas, por exemplo, o modelo é apolíneo, quer pela simetria e pela referência às luzes, quer pela sabedoria própria desse deus. A mulher descrita nesses padrões é par do homem discreto da sociedade de corte, aquele que segue os ideais de civilidade das letras e armas e a doutrina ascética de contenções de vícios da Igreja Católica. Já a mulher viciosa se aproxima mais de Dionísio, representada como transgressora das rígidas leis de conduta nas sociedades do Antigo Regime. A comparação dos tipos opostos mesmo que velada revela o riso irônico do poema.

71 A apropriação de outros discursos, de outros modelos ou procedimentos de composição é própria

desse tipo de poesia. Também é característica das contrafações poéticas (CARVALHO, 2007) e da sátira (HANSEN, 1989).

72 SILVA (1971, p. 435-436), fazendo alusão ao fetiche pelos pés pequenos na poesia do XVII,

inclusive citando Fonseca, declara “se os poetas barrocos cantam umas vezes olhos verdes, outras vezes olhos negros, ou castanhos, ou azuis, cantam sempre, sem discrepância, a sedução dos pés pequenos. O próprio Fonseca Soares dedicou a este tema dois sonetos: “Instante de Jasmim”, “concepto breve”, publicado na Fênix Renascida, t. III, p.202, entre poemas de Jerônimo Baía, mas atribuído a Fonseca Soares por numerosos manuscritos [...].”

No fim do poema, o eu lírico volta ao tom de zombaria usando palavras coloquiais como “velhacão” (v. 47) e se apropria do discurso religioso, quando menciona o voto de pobreza, provável alusão à Ordem dos Franciscanos: “tal amor tenho a pobreza” (v. 50). Enfim, na última quadra, em tom jocoso e irônico, convida a musa ao deleite amoroso.

Se nesse romance o poeta deixa “claro” desde o início que quer zombar de graça, que quer pintar à chança, não devemos ignorar que nele também há moralidade, cantada de forma irônica, implícita na exposição dos vícios. Quintiliano (2004, p. 335), no capítulo dedicado ao riso, no livro Instituições Oratórias, indica aos oradores que “los defectos, o se descubren, o se cuentan, o se notan con alguna chanza”. Com efeito, é o gracejo que desnuda os defeitos / vícios de Izabel, é pelo riso irônico que o eu lírico expõe uma interlocutora néscia e vaidosa. Nesse sentido, a poesia de agudeza seiscentista, que trabalha com analogias e aproximações de contrários, leva-nos mais uma vez à imagem da mulher prudente, aquela que não cede às paixões e não demonstra comportamento ignóbil. Por isso, bela em todos os sentidos. Já Izabel tem sua beleza deformada pelo vício e, consequentemente, sua alma é viciosa. Portanto, não é mulher idealizada e com isso serve de modelo para os gracejos eróticos do eu-lírico.

Conquanto nesse romance Fonseca Soares explore a jocosidade, insinuando ar de zombaria, a linguagem, apesar de simples e clara, é trabalhada com engenho. O virtuosismo ornamental da poesia seiscentista está representado pelo largo uso de metáforas, pelas hipérboles, por uma analogia central, implícita no texto, que aproxima e ao mesmo tempo diferencia o tipo prudente do tipo vicioso, e pela ironia, que nos faz desconfiar do ethos do próprio eu lírico. O clima de zombaria do início do poema é interrompido pela descrição elogiosa do rosto de Izabel, que em nada parece um antirretrato. Entretanto, em seu fim, o clima zombeteiro retorna por meio da voz maliciosa do eu lírico, que deixa cair sua máscara e revela seu verdadeiro desejo: seduzir a musa.

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