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Da agudeza às metáforas: romances de Antônio da Fonseca Soares

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Academic year: 2017

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ANDRÉ DA COSTA LOPES

DA AGUDEZA ÀS METÁFORAS: romances de Antônio da Fonseca Soares

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ANDRÉ DA COSTA LOPES

DA AGUDEZA ÀS METÁFORAS: romances de Antônio da Fonseca Soares

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras

Área de concentração: Literatura e Vida Social.

Orientador: Carlos Eduardo Mendes de Moraes

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L864a Lopes, André da Costa.

Da agudeza às metáforas : romances de Antônio da Fonseca Soares / André da Costa Lopes.

Assis : [s.n.], 2012. 151 f.

Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Paulista, campus de Assis, 2012.

Orientador: Carlos Eduardo Mendes de Moraes.

1. Poesia portuguesa – século XVII. 2. Retórica. 3. Poética. 4. Soares, Antônio da Fonseca, 1631-1682. I. Autor. II. Título.

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ANDRÉ DA COSTA LOPES

DA AGUDEZA ÀS METÁFORAS: romances de Antônio da Fonseca Soares

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social.

Orientador: Carlos Eduardo Mendes de Moraes.

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AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP –campus de Assis-SP.

À agência FAPESP.

À Seção de Pós-Graduação e aos funcionários da Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP –campus de Assis-SP.

Ao professor e orientador Carlos Eduardo Mendes de Moraes.

Aos companheiros de pesquisa Luís Fernando D’Arcádia e Heloiza Granjeiro.

Às professoras Claudia Valéria Penavel Binato e Sandra Aparecida Ferreira.

Aos meus pais, José Gomes Lopes e Maria Mendes da Costa Lopes e ao meu irmão, Adriano da Costa Lopes.

Aos meus amigos-irmãos de Mongaguá e Assis.

À família Nascimento (em Mongaguá) e à família Loureiro (em Assis).

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Questa é l’Argutezza, Gran Madre d’ogni’ngegnoso Concetto: chiarissimo lume dell’Oratoria, & Poetica Elocutione: spirito vitale delle morte Pagine: piaceuolissimo condimento della Civil conversatione: ultimo sforzo dell’Intellectto: vestígio della Divinitá nell’Animo Humano.

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LOPES, André da Costa. DA AGUDEZA ÀS METÁFORAS: romances de Antônio da Fonseca Soares. 2012. 150 f. Dissertação (Mestrado em Letras) Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012.

RESUMO

Esta dissertação é fruto de uma pesquisa que tem como proposta principal o estudo da metáfora seiscentista em cento e quatro romances atribuídos ao poeta português Antônio da Fonseca Soares. Por se tratar de fonte manuscrita, em primeiro lugar fizemos um trabalho de Crítica Textual, por meio do qual efetuamos a transcrição e a atualização linguística dos poemas analisados de acordo com os critérios de uma edição modernizada. Em seguida, nosso foco centrou-se nos usos, escolhas e construção da metáfora seiscentista no gênero poemático em questão. Para tal, consideramos os manuais de retórica e poética da Antiguidade, especialmente os escritos de Aristóteles e Horácio; a preceptiva poética seiscentista debatida por Emanuele Tesauro e Baltazar Gracián, e os estudos contemporâneos no campo da historiografia literária que versam sobre retórica, as letras do século XVII, e assuntos a ela relacionados. Os resultados da pesquisa demonstram o papel expressivo da mais louvada figura dentre os usos da expressão arguta na retórica seiscentista, aplicada a uma das formas poemáticas mais cultuadas por poetas que praticavam a poesia vulgar desse período.

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LOPES, André da Costa. FROM WIT TO METAPHORES: Antônio da Fonseca Soares’ romances. 2012.150 f. Dissertation (Master of Letters) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012.

ABSTRACT

This dissertation results from a master's degree research that has as the main proposal the study of the metaphor of seventeenth century in the one hundred and four romances attributed to the Portuguese poet Antônio da Fonseca Soares. To deal with a manuscript source, we started with a work of Textual Criticism, with which we made the transcription and the ortographic updating of the analyzed poems in agreement with a modernized edition. After that, the focus was centered in the uses, choices and construction of the metaphor of the 17th century in the poems. To analyze the romances, we considered the rhetoric manuals and poetics of Antiquity, especially Aristotle and Horace’s writings; the poetic rules of seventeenth century debated by Emanuele Tesauro and Baltazar Gracián, and the contemporary studies in the field of the literary historiography about rhetoric, the seventeenth century literature and subjects related. The results of the research demonstrate the expressive function of the most praised rhetoric figure of the seventeenth century in one of the most important poematic form to the vulgar poetry of that period.

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Sumário

INTRODUÇÃO ……….. 9

1 ESTUDO SOBRE ANTÔNIO DA FONSECA SOARES E O MS. 2998 BGUC... 13

1.1AS DUAS FACES DE ANTÔNIO DA FONSECA SOARES... 13

1.2 A OBRA DE ANTÔNIO DA FONSECA SOARES /FREI ANTÔNIO DAS CHAGAS: VISÕES DA CRÍTICA ... 17

1.3 SOBRE O CORPUS: O MS. 2998... 26

2 A LINGUAGEM POÉTICA DO SÉCULO XVII: AS ARGÚCIAS DA POESIA 32 2.1 UMA POLÊMICA POÉTICA ... 32

2.2 ELOCUÇÃO AGUDA ...………. 37

2.2.1 Século XVI - Pureza, simplicidade e unidade ...……… 38

2.2.2 Século XVII - Elocução Peregrina ... 51

2.3 O ROMANCE ... 60

3 ESTUDO SOBRE A METÁFORA E ANÁLISE DO CORPUS...………. 65

3.1 A METÁFORA POR ANALOGIA ...……….. 64

3.2 A METÁFORA SEISCENTISTA ... 70

3.3 A METÁFORA NOS ROMANCES ... 3.3.1 Metáforas Fósseis ... 81 82 3.3.1.1 Relações Peregrinas ... 104

3.3.2 A Metáfora nos Romances Satíricos e Jocosos ... 3.3.3 A Ambiguidade Programática dos Romances Eróticos ... 3.3.4 Religiosidade e Mitologia como Fontes Metafóricas ... 111 120 126 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 137

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INTRODUÇÃO

Inicialmente, à guisa de apresentação desta dissertação, é relevante recuarmos um pouco no tempo e voltarmos ao nosso curso de graduação em Letras, período em que tivemos o primeiro contato com o corpus deste estudo.

Naquele momento, fizemos um trabalho baseado no método filológico, mais precisamente no campo da Ecdótica ou Crítica Textual, transcrevendo os cento e quatro romances constantes no manuscrito 2998 da Sala de Reservados da Biblioteca Geral de Coimbra. Posteriormente, desenvolvemos um projeto de iniciação científica, cuja proposta foi analisar a linguagem desses poemas. A base teórica desse estudo foram os manuais de retórica e poética da Antiguidade, sobretudo os escritos de Aristóteles e Horácio; a preceptiva poética seiscentista debatida por Emanuele Tesauro e Baltazar Gracián e os estudos contemporâneos acerca das letras no Brasil colonial e em Portugal, cujos principais nomes são Alcir Pécora, Adma Muhana, João Adolfo Hansen, Ivan Teixeira e Maria do Socorro Fernandes de Carvalho.

Os resultados dessa pesquisa forneceram elementos para a elaboração do projeto que deu origem a esta dissertação, intitulado “A linguagem poética nos romances de Antônio da Fonseca Soares: um estudo sobre a função expressiva das

figuras retóricas na poesia do século XVII”. A proposta inicial era analisar o papel

das figuras retóricas na linguagem poética dos romances fonsequianos, o que nos conduziu ao vasto campo da elocução retórica, mais especificamente ao ornatus, lugar por excelência dos tropos e figuras retóricas (LAUSBERG, 1972; MAYORAL, 1994).

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O procedimento na análise dos romances segue os princípios da teoria e historiografia literária a respeito das Letras do século XVII, fomentados e aplicados nos trabalhos dos autores brasileiros contemporâneos acima citados. Em tais estudos, esses pesquisadores buscam repensar o universo letrado dos séculos XVI, XVII e XVIII, no Brasil e em Portugal, sob um ponto de vista diacrônico, a partir do qual procuram reconstituí-lo de maneira não anacrônica. Desse mesmo modo, buscamos entender os códigos de composição dos romances seguindo as lições prescritas nos principais manuais de retórica e poética que definem os modos de escrita dessa época. Além disso, utilizamos como base teórica textos modernos que comentam os usos dos manuais de escrita no período da Antiguidade, Idade Média e Século XVII.

Vejamos, então, a descrição do conteúdo proposto nos capítulos desta dissertação:

Capitulo I – “Estudo sobre Antônio da Fonseca Soares e o manuscrito 2998 BGUC”. Nessa primeira parte, fizemos um levantamento biobibliográfico sobre Antônio da Fonseca Soares. Aproveitamos o espaço para a reflexão acerca da obra fonsequiana, sobretudo a secular, que parece ter sido relegada a um segundo plano pelo poeta e pela crítica, acentuando-se esse desprezo quando se trata de poesia vulgar. Logo após, traçamos um panorama demonstrando as várias visões da crítica a respeito da obra fonsequiana, desde o século XVII, período em que Antônio Fonseca viveu, até os nossos tempos. O estudo sobre o corpus (o ms. 2998) também é assunto deste capítulo. Nessa seção, expomos os princípios filológicos necessários para o trabalho com o documento manuscrito, incluindo algumas considerações a respeito da tradição manuscrita, sobretudo em Portugal.

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capítulo, fizemos um trabalho de análise utilizando composições poéticas escritas nos dois períodos. Além disso, escrevemos sobre o romance, forma poemática que compõe o corpus desta pesquisa, sobretudo no que se refere ao seu uso no século XVII. Abordamos, em especial, os principais aspectos que definem sua elocução.

Capítulo III –“Estudo sobre a metáfora e análise do corpus”. Este capítulo é destinado, em primeiro lugar, ao estudo da metáfora seiscentista. Partimos de seu principal modelo: a metáfora por analogia de Aristóteles, até chegarmos à metáfora, “mãe das agudezas” (TESAURO, ibid. idem.), prescrita nos principais manuais retórico-poéticos do século XVII. Depois disso, segue a análise do corpus. Nessa seção, separamos os romances mais representativos do documento em estudo, de maneira que possam ilustrar as escolhas, usos e a construção da metáfora seiscentista nessa forma poemática. Com isso, pretendemos evidenciar a relação com o decoro nos romances e as escolhas e construções metafóricas que caracterizam o estilo fonsequiano.

“Considerações finais”. Nesta última parte da dissertação, estão os

comentários gerais acerca do tema proposto e de seus resultados. É o espaço reservado para discussão, esclarecimentos e conclusões sobre o estudo.

Antes de finalizar esta apresentação, é relevante citar os principais autores utilizados nesta dissertação, sobretudo para que se visualize o processo de escrita e o norte teórico deste trabalho de pesquisa.

Para o melhor entendimento do período histórico e do meio social em que viveu Antônio da Fonseca Soares, nossos principais referenciais teóricos foram Elias (2001), Gracián (2005), Bello e Rocha (Org.) (1989), Holanda (1991), Maraval (1997), Hansen (1997), Rebelo (1982), Pontes (1971), Chartier (2004).

Os livros que nos deram subsídios para o trabalho com o texto manuscrito são os que tratam da Filologia e da Crítica Textual, escritos por Cambraia (2005), Azevedo Filho (1987), Perugi; Spaggiari (2004), Fachin (2008), Megale (1999), CUNHA (1985) e uma série de artigos publicados na revista

Speculum (v. 65, n. 1, 1990) sobre a New Philology.

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Para entendermos os principais referenciais retórico-poéticos, usos, modelos e temas que nortearam as práticas de escrita seiscentista, consultamos as artes poéticas de Aristóteles, Horácio, Longino, as retóricas de Aristóteles e Quintiliano, as releituras das poéticas e retóricas da Antiguidade feitas pelos preceptistas seiscentistas Tesauro (1741) e Gracián e, no século XVIII, as obras de Bluteau (1712-1728) e Frei Sebastião de Santo Antônio (1779), os livros sobre retórica dos modernos Curtius (1996), Lausberg (1972) e Plebe (1978), os cancioneiros Fenix Renascida, III tomo, (1746); Postilhão de Apolo (1761) e as compilações poéticas organizadas pelos autores Cidade (1958) e Pécora (2002). Além dessas obras citadas, consultamos os estudos atuais sobre as Letras do século XVII e assuntos relacionados escritos por Achcar (1994), Muhana (1997), Chaves (1997), Chociay (1993), Hansen (1989, 2006), Pereira (1971), Pécora (1994, 2001), Spina (1983, 1995, 2003), Teixeira (1999, 2005), Grigera (2008), Castro (1973), Carvalho (2007)1.

Consultamos, ainda, como leitura complementar, trabalhos – que versam a respeito das manifestações literárias seiscentistas na Europa, Portugal e Brasil – relacionados à teoria e historiografia literária, compostos por Sypher (1955); Gomes Júnior (1998); Aguiar e Silva (1971); Hatzfeld (1988); Coutinho (1950) e Hansen (2006), Campos (1989, 1996).

1 Nesses estudos sobre as manifestações literárias seiscentistas há muitos elementos acerca da

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1 - ESTUDO SOBRE ANTÔNIO DA FONSECA SOARES E O MS. 2998 BGUC

1.1 AS DUAS FACES DE ANTÔNIO DA FONSECA SOARES

Nascido em Portugal, na Vila da Vidigueira, em 25 de junho de 1631, o poeta foi criado no seio de uma família nobre. Sua mãe, Helena Zuninga era descendente de reis da Irlanda; veio a Portugal com as primas e outras crianças irlandesas fugidas da perseguição aos católicos na Irlanda. Seu pai, o doutor Antônio Soares de Figueiroa pertencia à nobreza daquela vila situada no Alentejo.

D. Helena de Zuninga foi acolhida por D. Rui Lourenço de Távora, vice-rei da Índia (1609-1613) que a educou com sua filha, D. Leonor Coutinho, mais tarde condessa da Vidigueira. Helena de Zuninga, aia de D. Leonor, chegada a idade, casou-se com o doutor Antônio Soares de Figueiroa. Foi nomeado para judicatura de Vila Nova de Cerveira, no Minho, quando Antônio da Fonseca tinha poucos meses, e lá permaneceu por cinco anos. Voltou para Vidigueira e foi então nomeado novamente para magistratura em Leiria, onde residiu durante nove anos. Ainda rapaz, Antônio da Fonseca foi para Évora, onde estudou latim e filosofia, mas não concluiu o curso, já que, aos dezoito anos de idade, perde seu pai. Segundo Pontes (1953, p. 24), “Fonseca a quem começavam a interessar mais a estúrdia e a liberdade que o estudo aplicado, ficou acompanhando a mãe e as irmãs na Vidigueira. Évora foi, pois, o teatro de sua adolescência e juventude, lugar de seus primeiros amores e suas aventuras”.

Nessa fase, como atestam os biógrafos, leva vida desregrada e entrega-se aos prazeres do mundo boêmio. Era um jovem entrega-sedutor, motivo que o levou a envolver-se num conflito passional e a duelar com João Sanches, vindo a matá-lo. Após esse incidente, para tentar livrar-se da pena cabível ao crime que cometera, alista-se no exército português e presta serviços na Guerra de Restauração.

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No Brasil, assim como em Portugal, Antônio da Fonseca Soares escrevia suas poesias. Segundo esta autora, “na Baía, depois da conversão, quando [...] se retirava para meditar, os amigos julgavam que estava a fazer versos. Quer dizer, Fonseca versejava em Portugal, versejava na Baía, versejava por onde quer que

fosse” (PONTES, 1953, p. 27). Apesar de ter produzido poesia nos tempos em que

estave no Brasil, não registrou a paisagem brasileira em sua obra, talvez porque as influências da poética clássica, com seus catálogos de temas, formas, e topos

tenham, de certa forma, impedido a representação daquele novo mundo, que estava a sua volta, em sua obra poética. De acordo com Teófilo Braga (1984), alguns romances de saudades foram escritos por Fonseca no Brasil. Pontes (1953) também sugere que seu poema trágico amoroso, Filis e Demofonte2, tenha sido, pelo menos em parte, escrito nesse período. Entretanto, nem os poemas de saudade nem o poema trágico amoroso de Fonseca pintam as cores brasileiras em sua realidade poética.

Na volta a Portugal, esquece o voto que havia feito à religião e retorna ao teatro do mundo, dividido entre a vida militar nas campanhas da Guerra de Restauração em Elvas, que lhe renderia o perdão de seu crime e a patente de Capitão; a vida boêmia, que compartilhava com amigos e as damas; e as Letras. Assim, Fonseca, nos intervalos de campanha, retirava-se a Setúbal, a cujo terço pertencia; ia descansar em Vidigueira, onde tinha família. Em Lisboa participava dos encontros das Academias dos Generosos3, frequentava os amigos, praticava seus galanteios e romances, com damas e freiras. Gozava de simpatias gerais de seus superiores, amigos e senhoras. Escrevia romances àqueles, pedindo-lhes favores ou contando histórias pícaras.

2 O poema “Filis e Demofonte” deu a Antônio da Fonseca Soares fama que gozou entre seus

coetâneos e que repercutiu em autores como Cândido Lusitano, Francisco José Freire, Leitão Ferreira e Verney. Este último fez críticas ferinas ao poema de Fonseca; mas, no século XVII e já em meados do século XVIII, os leitores de Fillis foram muitos. Prova disso é o número de cópias existentes em bibliotecas particulares e públicas de Portugal.

3 Fonseca foi acadêmico. Em fins de 1660 e nos anos de 1661 e 1662, até entrar para a vida

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Todavia, enquanto goza os prazeres da vida mundana, Antônio da Fonseca é acometido por uma doença que o deixa de cama. Recuperado, sofre um atentado em Setubal: um tiro de bacamarte disparado por um rival, provavelmente por motivos de ciúmes. Tal fato o sensibiliza e o faz procurar a religião novamente. Vai para Lisboa e se aconselha com alguns religiosos que o incentivam a mudar de vida, porém, receosos de uma nova recaída, não lhe concederam de imediato o hábito. Deram-lhe um período de experiência, mas dessa vez o fato se consumou. Tomou o hábito no convento de Évora. Refere Lapa (1939, p. 15),

Sem participar a ninguém o caso, dirigiu-se a Évora. E a 18 de Maio de 1662 o grande pecador arrependido entrava noviço na Ordem de S. Francisco, orientado espiritualmente por Fr. Antônio da Madre de Deus.

Sua profissão realizou-se em 19 de maio de 1663. Nesse dia, D. João de Áustria cercava a cidade de Évora. Durante a cerimônia, segundo atestam os biógrafos, uma bala da artilharia inimiga caiu próxima ao hábito que lhe era destinado, sem causar estragos. Devido a esse acontecimento, o ritual foi mudado para a Capela dos Ossos do convento.

A educação teológica do então chamado Frei Antônio das Chagas se fez primeiro no convento de Beja, onde seguiu cursos de Filosofia; depois em Évora e Coimbra, onde se aperfeiçoou na ciência da Teologia. Por fim, encontrou-se com missionários espanhóis em terras da Estremadura espanhola, para aprender o ofício de missionário. Em 1671, recebeu a carta de missionário apostólico do Comissário Geral da Ordem. A partir desse momento, dedica-se totalmente às missões. Durante sua vida religiosa, percorreu Portugal de Norte a Sul. Tornou-se famoso em todos os recantos portugueses por sua forma teatral de pregar. Em suas pregações esbofeteava a si próprio e exibia um crânio humano aos fiéis. A principal mensagem de seus sermões era o desengano do mundo, a denuncia dos vícios e a corrupção dos costumes que assolava Portugal em sua época4.

4 A maneira teatral pela qual pregava Frei Antônio das Chagas não agradava a seu coetâneo, padre

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Antônio da Fonseca Soares foi um homem de extremos, quando estava no século desfrutou de tudo o que o mundo lhe oferecera. No exército, foi soldado exemplar e participou ativamente nas campanhas de restauração, chegando à patente de Capitão. Na vida religiosa, não havia de ser diferente. Percorreu Portugal de ponta a ponta, chegou a pregar treze sermões num dia. Sempre fiel ao voto da Ordem Franciscana, na religião, levou uma vida de humildade, criticando sempre a vaidade e a ostentação, praticadas pelos membros da corte e da própria Igreja.

O príncipe D. Pedro ofereceu-lhe, em 1676, a mitra de Lamego, mas Fr. Antônio das Chagas recusou. Em seguida, quiseram conceder-lhe o cargo de provincial. Nisso estava envolvido seu antigo confessor, Fr. João dos Prazeres, que deixava o cargo e demonstrou gosto em deixá-lo nas mãos de alguém de sua confiança. Entretanto, mais uma vez, Chagas recusa a honraria. Tais atitudes renderam-lhe dissabores e foi acusado de soberba e desobediência. Segundo os biógrafos, essas recusas teriam fundamento político, conquanto o fradinho, como era chamado carinhosamente pelos fiéis, era opositor ferrenho do príncipe, defendendo a causa do rei deposto, D. Afonso VI.

Todavia, não deixa de realizar obras durante sua vida religiosa. Em 1678, institui no convento do Varatojo, um colégio de pregadores apostólicos, do qual toma posse em seis de maio de 1680. Em 1682 vai a Setúbal, onde assiste à fundação do Convento dos Missionários de Brancanes, a última de suas realizações.

Em 1680, Fr. Antônio das Chagas começou a sentir sua saúde debilitada, mas nem por isso deixou de missionar, continuando a pregar por terras portuguesas. Passou dois anos convivendo com violentas enxaquecas e tonturas, que o deixavam quase morto. Faleceu em 20 de outubro de 1682 em sua cela, no convento do Varatojo. Seu corpo “jaz em campa rasa no convento do Varatojo” (PONTES, 1953, p. 239).

Como vimos, a vida de Antônio da Fonseca Soares é delimitada por duas fases: a fase mundana, que vai de 1631 a 1662; e a fase religiosa, que vai de 1662 a 1682 (LAPA, 1939), ambas influentes na sua atividade literária.

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Na fase mundana, Fonseca foi membro da Academia dos Generosos e lá escreveu romances, glosas e sonetos; foi soldado e, influenciado pelos acontecimentos de guerra, compôs dois poemas épicos em louvor às campanhas vitoriosas de Elvas e Mourão: “Elvas Socorrida” e “Mourão Restaurado”; fez fama com o poema trágico amoroso Filis e Demofonte; após conversão a vida religiosa, deixa na mão de amigos centenas de romances, os quais, fazendo nossas as palavras de Pontes (1953), eram uma espécie de crônica poética que, diferente da poesia culta, também praticada por Fonseca, transgrediam a idealização desse tipo de poesia, de tendências petraquistas, e ia buscar no cotidiano seus temas e motivos.

Na fase religiosa, Fr. Antônio das Chagas quer esquecer a vida feita dos excessos de outrora. Pede aos amigos que queimem seus romances. Torna-se o missionário dedicado, fiel ao voto de humildade da Ordem dos Franciscanos. Produziu grande número de sermões; escreveu as Cartas Espirituais, os Sermões Genuínos; obras cujo tema central é o desengano do mundo e o apego à fé cristã. Manteve, em seus sermões, certa veia poética, herança daquele Fonseca poeta e soldado, apelidado de Capitão Bonina.

1.2 A OBRA DE ANTÔNIO DA FONSECA SOARES /FREI ANTÔNIO DAS CHAGAS: VISÕES DA CRÍTICA

Verney, no Verdadeiro Método de Estudar, “Carta Sétima”, faz críticas ferinas à obra poética de Antônio da Fonseca Soares e numa determinada passagem do texto declara: “[...] Escolhi este autor, porque é mui conhecido e louvado, e procurado de muitos; e assim quis apontar um, para exemplo. O que, porém, digo dele deve-se aplicar a todos os outros, que seguem o mesmo estilo” (1950, p. 264).

Não é por acaso que esse autor português escolhe a obra fonsequiana para exemplo de suas duras críticas de tendência neoclássica. Fez isso porque Antônio da Fonseca Soares é “conhecido de todos” e, enfim, porque sua obra poética representa toda uma geração de poetas.

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poesia seiscentista; sem falar nas numerosas cópias manuscritas arquivadas nas bibliotecas portuguesas5. Chegam às centenas os manuscritos atribuídos a Antônio da Fonseca Soares espalhados nos arquivos e bibliotecas de Portugal. Muitos deles repetidos, alguns autógrafos outros apógrafos, sobretudo os romances, os quais Verney (1950, p. 271) considerou “menos maus” e Fonseca produziu exacerbadamente, o que pode conferir ao Capitão Bonina título de mestre nesse gênero poético.

O Capitão Bonina também escreveu poesia culta. Um dos seus mais comentados poemas desse gênero é o soneto de louvor ao cavalo do Conde de Sabugal, alvo da crítica ferina de Verney (1950), escrito numa das seções da Academia dos Generosos. Nesse poema, Fonseca descreve a elegância do cavalo pertencente ao Conde e compara o seu trotar a notas musicais. O Barbadinho acusa-o de ser inverossímil, declara que nesse poema há muita “parvoíce”, “não há conceito algum” e, considerando a poesia de Fonseca como fiel representante do estilo poético seiscentista, conclui ironicamente que, nos seiscentos ibéricos, ganha

fama quem “subtiliza melhor e diz coisas menos verossímeis” (p. 254-255).

Fica claro que a veia neoclássica de Verney não o deixa entender os procedimentos de escrita dos poetas do século XVII. A poesia de agudeza exigia destes, não somente habilidade na arte de bem escrever, prescritas nos manuais de retórica, mas também habilidade nos campos da lógica, mais precisamente no da dialética aristotélica. Assim, passou-se a considerar bom poeta aquele que se tornava mestre em manipular conceitos, sobretudo em desenvolver a capacidade de, principalmente por meio das metáforas, relacionar e fundir conceitos distantes, procedimento considerado símbolo de maestria poética, intimamente ligado a padrões de recepção.

A agudeza seiscentista ultrapassava, portanto, os limites do literário, a ponto de ser uma convenção social, atestada nos manuais de comportamento na corte, como, por exemplo, na Arte da Prudência, de Baltasar Gracián. Desvendar as

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argúcias do discurso poético na época de Fonseca Soares significava aprender e deleitar-se ao mesmo tempo. Além disso, como vimos, no século XVII, o meio mais comum para veiculação da arte verbal era a tradição manuscrita.

A obra poética atribuída a Antônio da Fonseca Soares, escrita nesse contexto de produção e recepção, hoje, encontra-se, em sua grande maioria, em arquivos e bibliotecas de Portugal. Algumas de suas poesias foram publicadas nos cancioneiros do século XVII, como anônimas ou atribuídas a outros poetas, outras foram compiladas em códices, como observa Almeida (1992), citando alguns títulos

apologéticos da obra fonsequiana: “Romance do mais glorioso alunno de Apolo / do

mais discreto amante das Muzas e dignissimo / Corifeo das Graças Antônio da

Fonsceca Soares” (Códice 6269 BNL); “Obras do Insigne Poeta / Português /

Antônio da Fonseca Soares” (Códice 9322 BNL)6. Silva (1971) observa que há alguns sonetos atribuídos a Gregório de Matos, constantes na edição das Obras de

Gregório de Matos compilada pela Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro,

1923-1933), os quais seriam de autoria fonsequiana. A maioria dos sonetos e romances de Fonseca Soares que foram publicados na modernidade encontram-se esparsos em obras sobre a poesia do século XVII.

Pontes, em 1953, já alertava para a necessidade e importância de resgatar a obra atribuída a esse autor. Todavia, passados quase quarenta anos, Maldonado (1992) faz ainda o mesmo apelo. A obra fonsequiana é digna representante de uma tradição poética que marcou época e por muito tempo foi hostilizada por movimentos estéticos posteriores; primeiro, pelo ideário neoclássico, depois pelo movimento romântico; só no final do século XIX e começo do XX começou a ser redescoberta e revalorizada. Ainda hoje, há muito por fazer, haja vista as centenas de manuscritos atribuídos a Antônio da Fonseca Soares que jazem nos arquivos e bibliotecas de Portugal. O apelo dessas duas estudiosas é muito significante, não só pelo resgate dessa obra, mas para o melhor entendimento dos procedimentos estéticos literários dessa época.

Dos principais trabalhos biobibliográficos referentes a Antônio da Fonseca Soares que se seguem até o século XXI, numa linha cronológica, temos como exemplos padre Manoel Godinho (século XVII), o principal biógrafo de Antônio

6 Em visita recente à biblioteca da Ajuda em Portugal, por ocasião do “II Simpósio Mundial de

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da Fonseca Soares, fonte dos principias estudos sobre esse autor. Em seu livro intitulado Vida, virtudes, e morte com a opinião de santidade do venerável Fr. Antônio das Chagas7, num exercício retórico, esse autor faz uma biografia em tom encomiástico, dando ênfase à vida religiosa de Antônio da Fonseca Soares. Verney (século XVIII), no seu Verdadeiro Método de Estudar, “Carta Sétima”, como vimos há pouco, usa conceitos neoclássicos para analisar a poesia fonsequiana, envenenados por uma ideologia política antijesuítica que considerava nocivo tudo que fora produzido na época em que estes pertenciam à aristocracia político-religiosa portuguesa8.

Camilo Castelo Branco (século XIX), no Curso de Literatura Portuguesa

(1876), faz um rápido comentário a respeito do Capitão Bonina, mas não o livra de sua crítica de tendência romântica. No capítulo “Epistolografia”, cita a obra religiosa de Frei Antônio das Chagas e, sumariamente, faz alusão às cartas espirituais, comparando o poeta mundano ao escritor religioso e, elogiando a obra do segundo, tece o seguinte comentário:

Não sobresahe na suave e correntia lhaneza d’essas cartas phrase que relembre o poeta, o galan, o acutíssimo cultista da Fenix Renascida. A contrição das rebeldias contra Deus envolveu a dos peccados contra a linguagem; e tão completa foi a emenda que chegou a ter merecidas honras de clássico quem prometia involver-se na obscuridade dos Vahias, Sucarêlos e Alões de Moraes (1876, p. 128).

Já quase no final do século XIX, Alberto Pimentel escreve o livro Vida Mundana de um Frade Virtuoso: Perfil Histórico do Século XVII (1889). Fiel ao título do livro, Pimentel aproveita a história de vida e a obra literária da fase mundana de Fonseca Soares para contextualizar o momento histórico em que viveu o Capitão

7Belchior enumera as edições desse livro: primeira, em 1687; segunda, em 1728; terceira, em 1762.

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Bonina. A poesia fonsequiana é usada para explicar as fases da vida do poeta, ficando em segundo plano uma análise centrada nos aspectos elocutivos do texto. Para Pimentel, Portugal do século XVII passava por um momento de decadência nos costumes e, por conseguinte, de decadência literária. Abundam, em seu livro, as especulações sobre a relação entre a vida e a obra do autor, procedimento que deixa escapar juízos de valor, alguns arraigados de moralismo, notados no seguinte comentário a respeito dos versos fesceninos escritos por Fonseca:

São de uma licenciosidade escabrosa essas poesias, que, pela abundancia das copias que corriam manuscriptas, Antônio da Fonseca Soares não podéra aniquilar depois que tomou o habito. A musa de Bocage não foi mais desbragada. Não é licito, por amor da decência, reproduzir algumas d’essas poesias [...] (1889, p. 53).

Na primeira metade do século XX, Teófilo Braga, em a História da

Literatura Portuguesa: Os Seiscentistas, inclui, em certo tom irônico, Fonseca

Soares “ao tropel dos poetas romancistas” (2005, p. 302). Norteado pelo viés positivista, explica a obra fonsequiana pelas possíveis influências do meio em que vivia. Assim, declara que o Fonseca dos romances é influenciado pela febre gongórica que assolava a sociedade portuguesa de sua época e, num discurso especulativo, sugere que os romances de saudades tenham sido escritos no momento em que o Capitão Bonina esteve no Brasil, visto que “era a adaptação ao meio que estava sofrendo, a nostalgia das saudades que novamente o inspira” (idem, ibidem, p. 312).

O determinismo característico do pensamento positivista também se manifesta numa explicação cientificista de sua conversão, ligando-a aos antepassados que combateram pelo catolicismo na Irlanda:

Pode já inferir-se que esse fanatismo religioso a que se voltara seu avô (...) e os sustos de sua mãe foragida em uma vila do Alentejo, entre estranhos, lhe transmitiram essa tendência para a credulidade que veio a tornar-se exclusiva pelas decepções do amor. A psicose religiosa tornou-se extensiva à família (...). (BRAGA, 2005, p. 304).

No entanto, dispensa comentários positivos ao poeta, considerado “o

melhor representante do lirismo gongórico em Portugal” (idem, ibidem, p. 302) e,

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(...) É curioso observar, apesar da sua antipatia e do seu desdém pela poesia do século XVII, Teófilo Braga não deixa, num ou noutro momento, de reconhecer que nessa poesia aparecem elementos esteticamente valiosos e denotadores de uma apreciável atividade mental. A propósito, por exemplo, de Frei António das Chagas, Teófilo escreve estas inesperadas palavras, por onde perpassa como que um sopro de reabilitação da poesia daquela época: “As quatro Elegias de fr. Antônio das Chagas, umas vezes sublimes de sentimento, outras, manchadas de equívocos, levam-nos a fazer uma ideia mais justa da poesia d’essa época, tanto tempo despresada e escarnecida pelos espiritos pautados nos cânones quintilianescos e tropeços horacianos. A novidade de imagens, o arrojo das metaphoras denotam sempre uma actividade intellectual (apud BRAGA, 1916) ”9.

Já na segunda metade do século XX, Maria de Lourdes Belchior Pontes publica, em 1953, a obra Frei António das Chagas: Um homem e um estilo do séc. XVII. De acordo com o autor de Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa

(PONTES, 1953,p. 186-187) esta obra

constitui marco fundamental dos estudos das modernas historiografia e crítica literárias portuguesas acerca do barroco e, em particular, na poesia barroca. Não se trata de uma reabilitação, trata-se de uma obra cujo propósito é o conhecimento criticamente elaborado de “um homem e um estilo de um século” - conhecimento, já se vê, que não evita nem ilude os juízos de valor – e cremos que esta era e continua a ser efectivamente a orientação necessária e exacta, em 1953 como em 1970. Estando a par dos mais importantes estudos que até então se haviam publicado sobre o Barroco – de Croce, Calcaterra, Dámasio Alonso e Hatzfeld, os quais lhe permitiram enquadrar a nossa literatura seiscentista na problemática geral do barroco europeu.

Do ponto de vista metodológico, a obra escrita por Pontes vai além dos estudos anteriores sobre Antônio da Fonseca Soares, já que esta autora, não satisfeita com o que até então se escrevera sobre o Fonseca /Chagas, faz um

9 Apesar das palavras positivas em relação à poesia de Antônio da Fonseca Soares, Teófilo Braga

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exaustivo trabalho de investigação nos arquivos e bibliotecas portuguesas, consultando as centenas de manuscritos atribuídos ao Capitão Bonina ou que faziam alusão a esse poeta. Maria de Lourdes Belchior Pontes, nesse trabalho, além de se dedicar às pesquisas biobibliográficas, também se preocupou com o estudo do fenômeno literário seiscentista, apresentando o Fonseca da poesia culta e vulgar e o Chagas da prosa.

Entretanto, como observa Aguiar e Silva (1971), Pontes não “evita nem ilude os juízos de valor”, deixando escapar, em seu discurso, afirmações muito parecidas às praticadas pela crítica anterior. Desse modo, citando Costa Silva, reproduz uma declaração quase idêntica a outra feita por Camilo Castelo Branco, no

Curso de Literatura Portuguesa10:

[Os romances] pouco enriquecem a poesia portuguesa, vale como documento de época, vale como repertório de regionalismos, castelhanismos e locuções que interessam à história da língua, vale como testemunho da crise no Parnaso, como sinal do gosto poético de seiscentos, mas não acrescenta nenhuma glória à poesia portuguesa (idem, ibidem, p. 99).

Em outra passagem, faz lembrar o moralismo de Pimentel, quando este discorre sobre os versos fesceninos de Fonseca. Assim, para Pontes, os romances

obscenos são “poesia de esgoto, uma espécie de maré-baixa, mal cheirosa, que

inunda as miscelâneas seiscentistas” (idem, ibidem, p. 100-101).

Pontes tem predileção pelo Fonseca dos sonetos, ligados à sua participação na Academia dos Generosos, ocorrida no período imediatamente anterior à sua conversão. Para essa autora, os sonetos têm qualitativamente maior

importância, porquanto neles “são mais graves as preocupações do autor, são

também mais subtis as intrigas de amor, são mais sérios os panegíricos, aqui, que

nos ‘romances’” (ibidem, p. 109).

Apesar de não ter deixado de citar os romances fonsequianos em sua obra, os quais, segundo Pontes, eram sinônimos de poesia vulgar, espécie de crônica poética, pela característica corriqueira da linguagem e pela temática voltada ao cotidiano, de tendências menos idealizadoras que as da poesia culta, a autora, quando declara que nos sonetos “são mais graves as preocupações do autor”,

10 Esse autor é mais moderado que Costa e Silva em sua crítica. Tanto Pontes quanto Aguiar e Silva

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esquece-se das duas faces da poesia seiscentista, às quais faz alusão em seu livro: a poesia culta e a poesia vulgar, cujas prescrições de composição seguem decoro distinto11. Ter predileção apenas pelo Fonseca Soares culto é, com efeito, entendê-lo pela metade.

Pécora (2001, p. 205) observa esse mesmo procedimento crítico aplicado à obra de Bocage. Para ilustrar sua argumentação, usa como exemplos Nelson Rodrigues e Olavo Bilac; este “desejava um Bocage limpo da lama que o século acumulara sobre seu gênio”; aquele “apenas queria saber do chocarreiro”. Segundo

esse autor, o melhor a fazer é “deixar de lado essa ideia de um autor que cabe

recortar ou repartir e servir de gosto”.

Em relação ao Fonseca /Chagas é mister seguir o conselho de Alcir Pécora, ou seja, não faz sentido ora engrandecer a obra religiosa de Frei Antônio das Chagas, eclipsando as muitas composições escritas por ele na fase mundana, ora enaltecer a poesia culta escrita por Fonseca Soares obscurecendo sua poesia vulgar. Desse modo, se quisermos entender a obra deste autor a fim de resgatar seu real valor, temos não só de analisar em cada parte (fase mundana, fase religiosa, poesia culta, poesia vulgar, poesia e prosa religiosa) as regras de composição que norteiam o decoro específico de cada gênero e, ainda, notar os reflexos estilísticos peculiares ao autor, mas também atuar em suas diversas composições, como observa Pimentel (1889, p. 91), cotejando a prosa religiosa de Freia Antônio das Chagas com a do seu coetâneo padre Antônio Vieira:

Em Vieira sobeja o esculptor, mas falta o poeta, comquanto hoje se conheçam versos seus. É grande, mas frio. N’esta prosa do padre

Chagas (o Desengano do Mundo), ao mesmo tempo que vae

cantando o scopro na mão do estatuário sobre o marmore, ouve-se, à mistura, o soluçar longínquo de uma Lyra de poeta, que aparta do mundo. É que nas lyras dos poetas desilludidos fica por muito tempo a resonancia do conto do cysne moribundo. Nos poetas é realidade o que nos cysnes é fabula.

Aguiar e Silva (1971), já citado em páginas anteriores, também faz alusão a Fonseca Soares. Nesse importante trabalho para os estudos seiscentistas, a

11 Pécora (2001, p. 211) observa que o decorum das poéticas classicizantes seguia o sistema de

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poesia fonsequiana é citada, em primeiro lugar, quando o autor faz reflexões sobre o problema da autoria relacionado à produção literária dessa época. Algumas composições de Antônio da Fonseca Soares, assim como a maioria de seus contemporâneos, foram erroneamente atribuídas a outros autores ou figuram como anônimas nos cancioneiros ou compilações de poesia do século XVII12.

Ademais, a lira fonsequiana se faz presente no livro de Aguiar e Silva para efeito de ilustração dos temas e motivos presentes nas manifestações poéticas seiscentistas. Como exemplo ele aponta os romances, cuja tendência antipetraquista, segundo ele, reduz o amor ao gozo carnal, exemplificado em temas

eróticos, como o amor freirático. No capítulo “Linguagem e estilo da lírica barroca”,

novamente, Aguiar e Silva recorre a um romance de Fonseca Soares, intitulado “Olyva, insigne, e famoso”, desta vez para discorrer a respeito da “reação” ao estilo culterano, registrada nas muitas poesias de tom satírico compostas por poetas dos seiscentos.

Outros trabalhos acerca da obra escrita por Antônio da Fonseca (Frei Antônio das Chagas), dos quais temos conhecimento, alguns escritos muito recentemente, voltam-se essencialmente ao estudo de sua elocução e /ou temática. Como exemplo, podemos citar: o artigo Antônio da Fonseca Soares, an imitador of

Góngora e Cálderon, de Eunice Joner Gates (1941); o trabalho de Chistopher

Chapman Lund, Conceptismo In Three Seventeenth-Century Portuguese Poets:

Antônio Barbosa Bacelar, Jeronimo Baia And Antônio Da Fonseca Soares (1974),

no qual se estuda a poesia em língua espanhola escrita por Fonseca, tendo-se como corpus o poema Soledades e o épico Filis y Demofonte; C. M. Almeida,

Romances de ausência e saudade de Antônio da Fonseca Soares (1992), que

trabalha com 15 poemas do códice 3549 da Biblioteca Nacional de Lisboa, abordando a temática da saudade; o trabalho de Crítica Textual feito por Maldonado

12Aguiar e Silva (1971), no capítulo “Problemas de Crítica Textual”, propõe uma reflexão acerca dos

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(1992) António da Fonseca Soares (Frei António das Chagas): Trinta Romances Inéditos; e, por fim, já no século XXI, a dissertação de mestrado de Gelise Alfena,

Santinho do pau oco: sensualidade e religiosidade nos romances do Padre Antônio da Fonseca (2005), na qual foram estudados os aspectos eróticos de um corpus de 20 poemas, contidos no ms. 2998 BGUC.

Entendemos que as várias visões acerca do Fonseca /Chagas expostas neste capítulo ilustram a diversidade das perspectivas críticas voltadas à obra literária desse autor e, de modo geral, à poesia seiscentista da segunda metade do século XVII. Desde a crítica mais ferina feita por Verney que se diluiu no processo de reabilitação da poesia seiscentista até a importante obra de Maria de Lourdes Belchior, passando por uma fase mais criteriosa, amadurecida, mais preocupada com o estudo da obra, o duplo Fonseca /Chagas vem sendo considerado peça importante desse fenômeno literário; comparado, muitas vezes, aos maiores autores dessa época. Destaca-se, aqui, a importância do conhecimento dessas várias visões e sua contribuição para aquilo a que se refere ao entendimento e à busca de critérios mais justos para o estudo e consequente resgate da obra fonsequiana.

1.3 SOBRE O CORPUS: O MS. 2998

O corpus desta pesquisa de mestrado é uma versão fac-similar de um

manuscrito, que contém cento e quatro romances, atribuído a Antônio da Fonseca Soares, cujos originais se encontram na Sala de Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra13. Segundo Pontes (1950, 1953) e Aguiar e Silva (1971), há um grande número de sonetos e, sobretudo, romances atribuídos a este autor espalhados pelos arquivos e bibliotecas de Portugal, fato que atesta uma rica tradição manuscrita em seu nome.

Trabalhar com um documento dessa natureza pressupõe a adoção de critérios situados no campo da filologia, os quais exigem conhecimentos vinculados ao contexto histórico, tais como dinâmica de produção, veiculação e recepção desses textos e, também, certa familiaridade com aspectos composicionais, como características linguísticas ou elocutivas e, até mesmo, a familiaridade com o tipo de

13 Os incipt e explicit deste manuscrito encontram-se disponíveis no catálogo de manuscritos digital

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letra do poeta ou escriba14. Tais fatos conduzem a algumas questões, a saber: em pleno século XVII havia uma cultura manuscrita em Portugal? O que significa autoria nesse período? Que critérios usar para editar um manuscrito?

Tais questões dariam assunto para outra dissertação, mas é importante respondê-las, mesmo que de forma sucinta, para que possamos entender os critérios adotados nesta pesquisa que se detém no trabalho com o manuscrito.

Em viagem recente a Portugal, visitamos a Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, onde encontramos um catálogo com um grande número de manuscritos atribuídos a Antônio da Fonseca Soares, inclusive uma compilação organizada por Antônio Correya Vianna, no ano de 1777, com centenas de poesias atribuídas a esse autor15. Ademais, na Bibliografia de António da Fonseca Soares (Frei António

das Chagas), organizada por Maria de Lourdes Belchior Pontes (1950), há mais

algumas centenas de manuscritos.

Por esses exemplos, percebemos que Fonseca Soares produziu bastante, mas a grande questão é que o meio de veiculação dessa vasta produção foi o manuscrito. Fonseca é apenas a ponta do iceberg se considerarmos uma população letrada que praticava a escrita como ato de civilidade (vide o ideal cortesão das letras e armas). Nessa época, havia muito já circulavam livros impressos em Portugal, mas, ao lado dessa prática, estava a tradição manuscrita.

Hansen (2002) observa que, ainda no século XVIII, havia em Portugal oficinas de escribas, nas quais se produziam códices de luxo destinados a um público com maior poder aquisitivo e cópias populares baratas, chamadas pliegos

sueltos ou folhas avulsas destinas àqueles menos abastados. Esse autor também

observa que não havia uma preocupação com a autoria tal qual a conhecemos hoje, não havendo, por parte do autor da obra, preocupação em controlar sua veiculação.

14 Sobre o estudo dos manuscritos, Spina (1977, p. 59) faz uma declaração, que, apesar de tratar de

mss. medievais, vale para o estudo da tradição manuscrita em geral, vejamos : “a compulsação de um manuscrito medieval – contenha ele um foral, um contrato de compra e venda, um testamento, um alvará ou uma cantiga – exige o domínio prévio dessas noções (codicologia, paleografia, diplomática) afora o conhecimento da língua, da literatura e da história em geral do período a que pertence o documento.

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Bom exemplo dessa prática que, é claro, não se resume a Portugal, pode ser observado na seguinte declaração desse mesmo estudioso (HANSEN, 2002, p. 46) a respeito do poeta espanhol Gongora:

Escribo no para muchos, afirma Góngora em uma carta para o amigo Pedro Salinas. Ao defender orgulhosamente a obscuridade programática dos versos das “Soledades”, Góngora evidencia o costume dos poetas seiscentistas, principalmente os espanhóis, de não editar os poemas como livro impresso, preferindo publicá-los em folhas ou manuscritos que circulavam no circulo da intimidade para evitar sua apropriação por públicos maiores tidos como vulgares.

Diante dessa declaração do poeta espanhol, o autor de A Sátira e o Engenho conclui que esse método aristocrático de inventar e consumir poesia, de certa maneira, incentivava as cópias dessas obras, as quais eram atribuídas ou falsamente atribuídas a determinado autor. Os letrados tinham a posse, mas não a propriedade, no sentido atual do termo, dos manuscritos e, como no século XVII não havia controle dessas apropriações, as imitações e apropriações se multiplicavam. Os textos copiados ou “imitados” sofriam alterações e circulavam como anônimos, atribuídos a um autor autoridade no gênero, à moda de, ou na forma de emulações

que tentavam superar o modelo. A obra de Gregório de Matos ilustra bem esse fenômeno. Chociay (1993), diante da grande flutuação de atribuições feitas ao “Boca do Inferno”, sugere uma tradição gregoriana.

Diante dessas observações, não é difícil notar que a palavra autoria não possuía o mesmo peso que hoje se atribui a ela. Ademais, fica nítido que não se pode confiar plenamente na fidedignidade do texto e simplesmente dizer: “esta obra

é de tal autor”, sem antes fazer uma investigação filológica.

Quando falamos em termos, “como tradição manuscrita”, “autoria”,

“atribuição”, “textos fidedignos”, “edição de textos”, entre outros, entramos num

campo da filologia chamado Ecdótica ou Crítica textual16. Diz Cambraia (2005, p. 1),

“o objetivo primordial (da Crítica Textual) é a restituição da forma genuína dos

16 Segundo Spaggiari e Perugi (2004, p.20, apud SEGRE, 1985; CONTINE, 1986), “o termo ecdótica,

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textos”. Esta preocupação em restituir o texto de acordo com a vontade primeira do autor se dá justamente por causa das “flutuações entre textos”.

Sendo assim, a um mesmo autor pode ser atribuído um manuscrito com cópias (ou testemunhos) diferentes entre si, gerando-se a necessidade de, a partir desses textos apócrifos, chegar o mais próximo possível do que seria o original ou autógrafo. Essa operação é um procedimento básico do método lachmanniano desenvolvido no final do século XIX e revisto no século XX. Segundo Cambraia (2005, p. 52), Lachmann foi “objeto de refinamento e retificações por dois grandes estudiosos: Paul Maas (1880-1964), na sua Textkritik (Leipzig, 1927); e Giorgio Pasquali (1885-1952), em sua Storia della Tradizione e Critica del Texto (Florença, 1934)”.

Entretanto, se houve quem o “refinasse” e /ou “retificasse”, houve

também quem o refutasse. Bédier (1864-1938) questionou seu método de confronto de documentos, sobretudo no que se refere à recensio, etapa pela qual se levanta toda a tradição manuscrita, eliminam-se cópias coincidentes, examinam-se os seus erros comuns e, finalmente, reagrupa-se o material remanescente em famílias, construindo-se assim uma árvore genealógica (SPINA, 1977). Por esse processo era possível chegar ao manuscrito mais próximo do original ou arquétipo. Entretanto, segundo Bédier, não é possível chegar ao original por meio do ‘stemma

codicum’ (PERUGI; SPAGGIARI, 2004) ou da genealogia dos manuscritos. Com esse procedimento, chega-se, no máximo, a um documento aproximado, pois, apesar da proposta racional e metódica de Lachmann, não há como escapar da subjetividade do editor.

A proposta de Bédier era, então, editar o documento “com base num bom manuscrito publicado quase sem retoques e acompanhado de notas que [...]

marcam um retorno na direção da técnica dos antigos humanistas” (CAMBRAIA,

2005, p. 52). Devido a essa tomada de posição, este filólogo foi duramente criticado por aqueles que eram adeptos do método desenvolvido por Lachmann. Desse modo, a crítica textual moderna, de certa forma, se polarizou essencialmente entre o método de Lachmann e o de Bédier (idem, ibidem).

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Pode-se até afirmar que Bédier, involuntariamente, abriu caminho para certas teorias aberrantes que se tornaram moda por volta dos anos 80 do século passado. Da ‘movance’ de Zumthor à antifilologia de Cerquiglini tudo se justifica pela afirmação de ser o original, de qualquer maneira inatingível.

Pela posição altamente crítica desses dois autores, percebe-se para que extremidade do pólo eles se atraem: ao método de Lachmann. Entretanto Zumthor e Cerquiglini foram, por sua vez, resgatados pela New Philology17.

O conceito de movência desenvolvido por Zumthor, por exemplo, gera uma discussão que leva em conta uma cultura manuscrita medieval, cujas características principais são a “indiferença dos escritores medievais pela propriedade e pela originalidade da obra, que estimavam ver alterada ou acrescida

e a transmissão oral, com a ‘falsa reiterabilidade’ que a caracteriza (CUNHA, 1985,

p. 36). Assim, afirma Suzanne Fleischman (1990, p. 25):

The editor of a medieval text is typically confronted with manuscript variation. In such situation, Cerquiglini insists, it cannot be decided – nor is it interesting to ascertain - which variant is closest to the elusive Urtext18. The philologist's task should be comparison, not

archaeology, since the latter reduces to singularity what acquires meaning precisely through plurality, through variation19.

17 O ideário da New Philology é centrado na questão da cultura manuscrita medieval e na tentativa

de aproximar a filologia, disciplina que ocupava lugar de destaque nos estudos lingüísticos e literários antes da revolução saussuriana, das teorias contemporâneas. Segundo Stephen G. Nichols (1990) What is "new" in our enterprise might better be called "renewal," renovation in the twelfth-century sense. On the one hand, it is a desire to return to the medieval origins of philology, to its roots in a manuscript culture where, as Bernard Cerquiglini remarks, "medieval writing does not produce variants; it is variance."' On the other hand, a rethinking of philology should seek to minimize the isolation between medieval studies and other contemporary movements in cognitive methodologies, such as linguistics, anthropology, modern history, cultural studies, and so on, by reminding us that philology was once among the most theoretically avant-garde disciplines (cf. Vico, Ampere, Michelet, Dilthey, Vossler). “O que é "novo" em nossa iniciativa poderia ser melhor definido, como "renovação", renovação no que se pensa acerca do século XII. Por um lado, é um desejo em voltar às origens medievais da filologia, para suas raízes em uma cultura manuscrita na qual, como observa Bernard Cerquiglini, “a escrita medieval não produz variantes; ela é por si só variante". Por outro lado, uma nova reflexão acerca da filologia deve procurar minimizar o isolamento entre os estudos medievais e outros movimentos contemporâneos em metodologias cognitivas, tais como linguística, antropologia, história moderna, estudos culturais, e assim por diante, lembrando que a filologia já esteve, teoricamente, entre as mais vanguardistas disciplinas (cf. Vico, Ampère, Michelet, Dilthey, Vossler, tradução nossa).

18 Urtext é uma versão impressa cujo objetivo é reproduzir o texto original, o mais próximo possível

da exatidão.

19 O editor de um texto medieval é geralmente confrontado com a variação manuscrita. Em tal

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Apesar das críticas a esse tipo de abordagem filológica, feitas pelos seguidores do método lachmanniano, são pertinentes as considerações sobre a cultura manuscrita medieval, que vão além das considerações referentes a erros de cópia ou modificações feitas por escribas de acordo com o gosto. Consideram-se fatores de uma cultura específica, cujos códigos de escrita e veiculação de informações (orais e textuais) seguem uma lógica própria, bem diferente da nossa. Embora o corpus desta pesquisa seja um manuscrito escrito já no século XVII, não podemos desconsiderar tais observações, que abrem caminho para a consciência de uma cultura manuscrita em Portugal e, por conseguinte, em suas colônias.

Essas observações são de suma importância na definição de critérios para se estudar e, consequentemente, editar documentos manuscritos. Nesta pesquisa, que dá ênfase à análise literária, optamos por não nos aprofundarmos em questões de autoria. Assim, em muitos momentos desta dissertação usamos a expressão “atribuído a Antônio da Fonseca Soares” quando tratamos de documentos, cuja autoria não foi confirmada, fato que se explica pela característica peculiar do universo letrado seiscentista e, por conseguinte, da tradição manuscrita (não-preocupação com autoria, autoria coletiva, atribuições equivocadas, flutuação de textos, etc.).

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2 A LINGUAGEM POÉTICA DO SÉCULO XVII: AS ARGÚCIAS DA POESIA

2.1 UMA POLÊMICA POÉTICA

Verney, em seu livro Verdadeiro Método de Estudar, Volume II, Estudos Literários, faz duras críticas a Antônio da Fonseca Soares, entre as quais, encontra-se a crítica ao famoso soneto atribuído a este autor, intitulado “A um pé pequeno”. Nesse poema, o Capitão Bonina explora uma temática recorrente na poesia seiscentista: a descrição dos pés, hiperbolicamente pequenos, de uma dama.

A um pé pequeno20

Instante de jazmim, concepto breve, Atomo de azucena presumido;

Pues os juzgam las ancias del sentido Sospecha de cristal, susto de nieve.

No pie, mentira sois, pues como aleve, Ni verdad en un punto haveis cumplido, Antes creo que escrupulo haveis sido, Pues de ser, o no ser, la duda os mueve.

Como, si idea sois de ojos tan claros, Hazeis los ojos fe para creeros, Y hazeis los vista fe para miraros?

Yo me resuelvo en fin que he de perderos. Porque si el veros es solo imaginaros, Siendo imaginacion, como he de veros?

Além da temática, podemos conferir nesse soneto, atribuído a Antônio da Fonseca Soares, outra característica recorrente na poética seiscentista: o uso de metáforas fósseis (HANSEN, 1989). O poeta as usa como recurso para descrição dos pés no primeiro quarteto, atestando a pequenez e a brancura destes; latentes em expressões metafóricas, como “instante de jasmim”, “átomo de azucena

presumido”, “sopecha de cristal” e“susto de nieve”.

20 Este soneto foi retirado do livro Verdadeiro Método de Estudar, escrito por Verney. Segundo

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À descrição metafórica acrescenta-se a hipérbole para menos (idem, ibidem, 1989) implícita no “exagero” do minúsculo tamanho dos pés. Na verdade, recurso de amplificação retórica para corroborar a ideia central do argumento construído pelo eu lírico: se os pés são tão pequenos como descritos, então será que eles existem para os sentidos ou são fruto apenas do pensamento?

Essa questão silogística (silogismo retórico) ajuda a manter o clima de equívoco21, bem ao gosto da poética seiscentista, no desenvolvimento do poema, a ponto do eu lírico cair numa dúvida sheakesperiana: “Pues de ser o no ser la duda os mueve”.

Nos dois últimos tercetos, há um contraste entre a imaginação e os sentidos, estes representados pelos olhos, aquela pela razão. Nessa guerra de percepções distintas, quem perde é o sentido, pois, para visualizar os pés da dama, é preciso “fe para creeros” e “fe para miraros”; portanto, percepção possível apenas num plano metafísico22. Tal fato faz com que o eu lírico ponha em xeque a veracidade ou a existência sensível de tais pés:

Yo me resuelvo en fin que he de perderos. Porque si el veros es solo imaginaros, Siendo imaginacion, como he de veros?

Verney condena o modo pelo qual Antônio da Fonseca Soares construiu esse soneto. Para o Barbadinho, nesse poema há “argumentos esquipáticos”;

“conceitos despropositados”, “conceitos inverossímeis” (1950, p. 259).

Norteando-se, pela nova visão do projeto iluminista, o autor de O Verdadeiro Método de

Estudar não aceita um dos procedimentos mais usuais da poesia seiscentista: a

aproximação de conceitos distantes por meio de operações dialéticas, retóricas e

21 Hansen (2002, p. 57), na introdução do livro Poesia Seiscentista: Fenix Renascida e Postilhão de Apolo, faz a seguinte declaração: “uma palavra, talvez, resume essa poesia: “equívoco”, ou seja, a formulação orientada pela semelhança metafórica, que evidentemente, por não ser identidade, também é diferença que introduz o duplo sentido em tudo o que é dito”.

22 Antônio da Fonseca Soares, ao explorar esta temática, idealizando o pé de uma determinada

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poéticas23. Segundo Ivan Teixeira (1999, p. 158), “os procedimentos do ornato dialético da agudeza seiscentista provocam verdadeiros arrepios de indignação nos iluministas portugueses, mesmo em escritores de reconhecido talento, como Gongora, Vieira ou Camões”. Para os fomentadores desses novos valores, os procedimentos metafóricos seiscentistas empenhados em aproximar conceitos distantes afastavam-se da racionalidade, aproximando-se muito da fantasia. Guiados pela noção de equilíbrio horaciana, representada pela tríade pureza, simplicidade e unidade, esses letrados acabaram limitando o conceito de verossimilhança em relação à poética do século XVII.

Ainda fazendo alusão ao autor do Mecenato Pombalino e Poesia

Neoclássica, é relevante citar outra passagem desse livro no que se refere ao

pensamento de Verney e Francisco José Freire24 sobre os procedimentos metafóricos da poesia seiscentista comparados aos da poesia do século XVIII:

Fundados nos modelos da Itália e da Espanha, Verney e Freire dirigem sua crítica principalmente ao conceito e à prática da metáfora seiscentista, dominada pela agudeza. Consideravam-na decorrente de semelhanças extravagantes, que nem o entendimento nem o juízo, podiam aceitar. Admitiam, por exemplo, que se chamasse fogo ao amor, mas não consentiam que o amante se abrasasse, nesse fogo, por ser apenas figurado, e não verdadeiro. Em outros termos, a imagem do amor como fogo parecia-lhes verdadeira à fantasia. Por isso, consideravam-na legítima na linguagem poética, mas recusavam seus desdobramentos extravagantes, porque conduziam à inverossimilhança (TEIXEIRA, 1999, p.142).

Entretanto, para Tesauro e Baltasar Gracián, dois importantes preceptistas do século XVII, símbolo de engenhosidade poética é justamente a capacidade de explorar as agudezas, obtendo efeitos inesperados. Marca de elegância e eficácia do discurso, a metáfora aguda é prescrição obrigatória nas retóricas desses dois autores.

Para Gracián, a variedade é um elemento importante na composição do discurso agudo e engenhoso - vide a infinidade de agudezas demonstradas e propostas por ele em Agudeza y Arte de Engenho.

23 Hansen (1989) define tal procedimento na sátira de Gregório de Matos, como ornato dialético. 24 A maior parte dos comentários de Ivan Teixeira a respeito do pensamento de Francisco José Freire

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Censúranse, [declara o citado autor], em los más ingeniosos sus conceptos: o todos crisis, o todos reparos; correlaciones, o equivocaciones; y es que falta el arte, por más que exceda el ingenio, y com ella la variedade, gran madre de la beleza (GRACIÁN, 1944, p.12).

Portanto, a variedade e, na sua esteira, a novidade, no sentido de algo que incite certo efeito inesperado, raro, peregrino25, como diriam os homens da corte do século XVII, dentro dos padrões formais definidos pelo decoro da poesia seiscentista, são fatores importantes no trabalho de construção do discurso engenhoso. Lançar mão desses dois recursos, desde que dentro de um determinado equilíbrio, não é, segundo a preceptiva do século XVII, cair no inverossímil.

Ainda dentro desse contexto, a recepção partilhava do gosto pela escrita ornada e dos requintes da elocução aguda, sendo capaz de desvendar os efeitos do exercício retórico e poético nas entrelinhas do discurso engenhoso. Tal capacidade remete à noção de proveito, consequentemente ligada a três características básicas da poesia: docere (ensinar), delectare (deleitar), movere(mover afetos).

Investigando o que se pensava sobre a utilidade da poesia nas preceptivas do século XVII, Carvalho (2007) observa que o conceito de proveito

assume o tradicional fim do docere, relacionado com instrução e divertimento da audiência. A noção de proveito acumula as funções de instruir e deleitar, ambas encontradas na maravilha. A metáfora, mãe dos conceitos e instrumento fundamental na poesia de agudeza, por meio das relações de semelhanças e diferenças é instrumento eficaz para o entendimento e torna possível o “aprendizado

fácil e veloz”, trazendo consigo a novidade. Desse modo, a autora do livro Poesia de

Agudeza em Portugal (idem, ibidem, p. 280)declara:

Ao lado do proveito, é a noção da maravilha seiscentista que, portanto, aciona o sentido [...] de novidade. Esse sentido localiza-se

25 Aguiar e Silva (1971, p. 24), em sua obra Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, ao

comentar as acepções da palavra maneirismo no contexto europeu, associa-a ao vocábulo peregrino. Vejamos: “[...] na literatura italiana do Renascimento, no favor de que disfrutaram (sic) a palavra maniera, que, proveniente do domínio lingüístico e civilizacional francês, exprime um requinte áulico, um preciosismo e um certo cunho artificioso do comportamento humano, e a palavra

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no encontro dos fins de conhecimento e prazer que a elegância retórica exige da metáfora e, por extensão, do discurso adequado. Seja restaurando um conhecimento errôneo ou aportando um novo saber, a maravilha dependerá sempre da condição de entendimento de quem percebe a agudeza, seja escrita, oral, pintada ou encenada.

Tais elementos justificam, ainda que sumariamente, o gosto seiscentista pela escrita ornada e de clareza relativa. O discurso engenhoso constrói-se de acordo com os preceitos específicos para cada matéria e forma.

Sendo assim, se observarmos com maior atenção, veremos que o conceito clássico de clareza, inspirado nas retóricas e poéticas antigas, principalmente na poética horaciana, está implícito na crítica que Verney faz a Antônio da Fonseca Soares. Seguindo os ideais do pensamento iluminista europeu, Letrados como o Barbadinho e Francisco José Freire fazem, além da crítica à elocução engenhosa seiscentista, uma crítica à cultura do século em que viveu Antônio da Fonseca. Ivan Teixeira faz a seguinte declaração acerca do projeto desses dois iluministas portugueses:

Sem dúvida, ambos representam o anseio por uma poética adequada ao século XVIII, fundada na aversão aos hábitos mentais do Seiscentismo, que então se entendiam como afetados e alheios ao fim da poesia e da cultura. Logo, propunham o que julgavam ser a expressão natural do pensamento, segundo a qual a verdadeira poesia jamais deveria desrespeitar os limites da verossimilhança e do decoro (TEIXEIRA, 1999, p. 142).

Fica claro que a visão aqui apresentada por esses dois críticos da cultura e das letras seiscentistas está norteado por um novo pensamento que se espalhava por toda a Europa naquele momento. Em Portugal, o Marquês de Pombal, sob a égide da coroa, promovia radicais reformas políticas, pondo em xeque as antigas ideias do século anterior.

(38)

2.2 ELOCUÇÃO AGUDA

Para

entendermos com maior precisão a expressão elocução aguda, faz-se mister conhecermos alguns elementos de composição da poesia praticada no período do Renascimento europeu, sobretudo no que se refere ao princípio de clareza. Esta noção é relativizada pela preceptiva seiscentista e, por esse motivo, a poesia desse período, muitas vezes de maneira generalizante, é vista como obscura ou hermética.

Afrânio Coutinho (1950), fazendo alusão a Dámaso Alonso, observa a reação deste autor contra a noção usual de incompreensibilidade atribuída às

Soledades, de Don Luis de Gongora. Tal reação leva este estudioso da poesia

espanhola a estabelecer distinção entre dois termos: dificuldade e

incompreensibilidade. Assim, dentro da suposta linguagem incompreensível da

poética gongorina há, na verdade, dificuldades a serem vencidas e à medida que, partilhando dos mesmos códigos de composição poética, referenciais discursivos e simbólicos, a recepção coeva consegue superá-las surge “em lugar da obscuridade, uma claridade radiante”.

Ainda dentro deste contexto, Hansen (1989), comentando alguns procedimentos compositivos da sátira de Gregório de Matos, discorre sobre as imagens icásticas (semelhança positiva, clara e congruente) e fantásticas

(semelhança negativa, deformadora) que compõem o caráter misto de tipos satirizados pelo Boca do Inferno. Esse duplo é composto pela estilização (por meio de procedimentos metafóricos e /ou alegóricos) de referenciais locais reconhecidos pela recepção coeva. Entretanto, tais referências quando muito afastadas de seu tempo podem tornar-se obscuras para um público com um horizonte de expectativa26 diverso:

[...] A sátira, [declara Hansen], se torna muita vez enigmática hoje, quando para seu leitor falta a significação da referência estilizada, sobrando-lhe o segundo movimento, a deformação (elemento fantástico). Esta também é obscura, muitas vezes, pois é um glosa metafórica e avaliativa de um sentido literal mimético, supostamente um discurso referencial ausente na leitura e que, para contemporâneos, é evidente (HANSEN, 1989, p. 155).

(39)

Antes de avançarmos ainda mais nesse assunto, analisaremos um poema de Antônio Ferreira, poeta do século XVI, retirado de sua obra Poemas

Lusitanos. Essa composição é uma representante ímpar da poética quinhentista,

que enfatiza o preceito de clareza e equilíbrio horaciano, representado pela tríade:

pureza, simplicidade e unidade.

2.2.1 Século XVI - Pureza, simplicidade e unidade

A Diogo Bernardes27 Carta XII

Fez força ao meu intento a doce, e branda Musa tua, Bernardes, que a meu peito Dá novo sprito, novo fogo manda. Como hum juizo queres, que sogeito 05 Vive a tantos juizos, se não guarde

De tanto riso, e rosto contrafeito? Quanto em mim mais das musas o fogo arde,

Tanto trabalho mais por apagalo, Quanto o silencio val, sabe-se tarde. 10 A medo vivo, a medo escrevo, e falo,

Ey medo do que falo só comigo; Mas inda a medo cuido, a medo calo. Encontro a cada passo c’um imigo

De todo bom sprito; este me faz

15 Termer-me de mim mesmo, e do amigo.

Taes novidades este tempo traz,

Qu’he necessario fingir pouco siso, Se queres vida ter, se queres paz. Vida em tanta cautela, tanto aviso,

20 Quando me deixarás? quando verey

Hum verdadeiro rosto, hum simprez riso? Quando a mim me cream, todos crerey

Sem duvidas, sem cores, sem enganos, E eu, que de mim mesmo seja Rey! 25 Ah tantos dias tristes, tantos annos

Levados pelos ares em desejos

De falsos bens, e nossos tristes danos! A quem os deixa, e foge, quam sobejos

Lhe parecem mais bens, que os que só bastam 30 Desviar da virtude os cegos pejos.

Quantos as vidas, quantos almas gastam Em buscar seu perigo, e sua morte, E tras ella seus jogos crueis arrastam! Aquelles vivem só, a que coube em forte

35 Ao som da frauta, que dos ombros pende,

O mundo desprezar com sprito forte.

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