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Religiosidade e Mitologia como Fontes Metafóricas

3.3 A METÁFORA NOS ROMANCES

3.3.4 Religiosidade e Mitologia como Fontes Metafóricas

No romance de número 19, Antônio da Fonseca Soares desenvolve uma aproximação entre religiosidade e erotismo. As palavras e expressões próprias do cerimonial católico são trasladadas para o ambiente secular da sedução amorosa. A voz insinuante do eu lírico gera equívocos semânticos, pois é construída metaforicamente, relacionando conceitos aparentemente incompatíveis, principalmente do ponto de vista moral.

Bela Brites dos meus olhos

tão formosa,como ingrata, que é mui próprio da beleza o atributo de tirania

5 Hoje que vi vossas Letras foi para mim esta carta de seguro ao meu receio e de guia a esperança Fiquei Louco de contente,

10 e como em quaresma estava cuido acheis as aleluias antes da semana santa. Acabaram-se as tristezas

e a paixão de penas tantas 15 E foram vossas notícias

para mim alegres páscoas Ressuscitou o meu gosto

que já sepultado andava no profundo da saudade 20 e nos abismos da mágoa

A quaresma nesta ausência

mui penitente passava, que quem de nós vive ausente arrependido se acha

25 Jejuava aos alívios ,

de penas me sustentava eram muitos estes passos, e as mortificações raras Ia para trás nos gostos

30 e por cadeias levava nas lágrimas que vertia duas correntes pesadas O coração repetia

as disciplinas molhadas 35 e com as balas de vidro

dos olhos bem se sangrava As confições que fazia

De vós não posso contá-las mas todas eram sem fruto 40 porque nada me pesava

Até que o vosso papel veio como indulgência plenária Livra- me de culpa, e pena pois trazia tanta graça 45 Bem te chamei indulgência

por breve, e por que tardava; porém qualquer papel vosso por um jubileu se alcança Menos cortês mais amante

50 vos quisera prenda amada que amor morre nos cortejos, vive só nas confianças

O amor é mui menino

por esta razão não trata 55 de cortesias que são

nos meninos escusadas. Somente quero os carinhos

que são próprios de quem ama aborrece os cumprimentos 60 disfarces das esquivanças

Mil ternuras vos dissera

mas vejo que se me embarga o desejo de dizê-las

no impossível de explicá-las. 65 Digo só que por vós morro

e se vivo é porque basta o gosto que em morrer tenho para dar-me vida Lar

Antônio da Fonseca explora o motivo da carta de amor nesse romance. Entretanto, constrói-o de maneira burlesca, utilizando-se de uma temática séria para arquitetar suas facécias e alusões eróticas. Segundo Aguiar e Silva, “o motivo da carta de amor, intimamente ligado à temática petrarquista dos tormentos nascidos da ausência, e que, no século XVI, inspirou tantos poemas de saudade e angústia, [nos poetas barrocos] degrada-se até o nível da obscenidade [...]” (SILVA, 1971, p. 426-427). O Capitão Bonina não chega a tanto, mas brinca com o sentido das palavras sugerindo o erotismo.

Deslocados de seu contexto, os vocábulos do léxico religioso evocam significação equívoca, promovendo distorção semântica. Portanto, o procedimento de composição é metafórico, já que o poeta substitui um termo próprio por outro, retirado de contexto diverso. O resultado é o estranhamento, que exige um esforço interpretativo por parte do leitor. Essas sutilezas discursivas são, na verdade, agudezas construídas por meio da aproximação de conceitos distantes, tornando o processo de elaboração da metáfora sofisticado, adequado à linguagem urbana.

Nesse romance, o eu lírico recebe uma carta escrita por Brites, fica feliz da vida, enche-se de esperança e desejo, porque há muito não tinha notícias dessa dama. Mas lendo-a, percebendo o excesso de cortesia, desconfia, porque isso pode ser uma técnica de esquivança. Sendo assim, renega o discurso afetivo e convida-a ao deleite amoroso. As imagens que expõem o desejo, os argumentos que procuram demonstrar seu sofrimento ou os que tentam convencer a mulher ao ato amoroso, são metáforas retiradas do discurso religioso.

O eu lírico, no início da poesia, descreve Brites por comparações. Para ele, a musa é “tão formosa, como ingrata” (v. 2). Portanto, sua ingratidão é proporcional à sua formosura. A musa apresenta-se com os mesmos atributos da beleza, inclusive os negativos, como, por exemplo, a tirania78. Indiretamente, nesse argumento, percebe-se uma construção predicativa que é própria da metáfora e que a aproxima do entimema: a tirania é uma característica da beleza; Brites é bela, logo tirana.

Entretanto, com a chegada da carta as coisas mudam. Mudam também os argumentos e as expressões metafóricas. Surge a “esperança” (v. 8), mas será esta palavra aquela relacionada às virtudes teológicas (Bluteau, 1712-1728, p. 269)? Pelo que tudo indica, não, já que, ao receber as notícias de Brites, o eu lírico, quase que de imediato, é tomado pelo desejo.

A partir daí, descreve seu estado de ânimo por intermédio de vocábulos religiosos como “quaresma”; “aleluias”, “semana santa” e “alegres páscoas”, as quais, no contexto do romance, adquirem nova significação. Sendo assim, “quaresma”, que para os católicos simboliza um período de resguardo, faz menção à abstinência sexual; “aleluias”, “semana santa” e “alegres páscoas”, expressões que simbolizam as festividades católicas relativas à morte e ressurreição de Cristo, passam a significar o estado de euforia diante do recebimento da carta (entre o desejo e o tesão). Tais fatos reavivam sua esperança, não no sentido de virtude teológica, mas no sentido carnal, isto é, a possibilidade de um encontro amoroso com Brites.

Com esse advento, vão-se embora as tristezas do passado, expressas pelas “penas” “e mortificações”. Rememoradas em determinadas passagens do romance, as infelicidades são contextualizadas nos momentos de ausência (ou abstinência), sendo representadas em imagens, como a seguinte:

Lá para trás nos gostos e por cadeias levava

nas lágrimas que vertia

duas correntes pesadas (v. 29-32)

78 Antônio da Fonseca Soares, nessa descrição de Brites, explora a tópica da “bela cruel”, aliás, a

maioria das mulheres nos romances pertencentes ao manuscrito 2998 são caracterizadas como tais. Segundo Carvalho (2007, p. 340) “a tópica da ‘bela cruel’ contém em si uma antítese: o caráter indigno do objeto belo que exerce sobre os indivíduos uma atração nefasta e por vezes avassaladora. Como o belo é lugar de virtude, a voz que se enuncia define-se virtuosa ao buscar a extirpação de afetos elevados que porém encontram-se aplicados a seres baixos”, como a dama em questão.

A cena descreve um estado de espírito e demonstra uma estratégia de argumentação, pela qual se tenta convencer, movendo afetos. A imagem hiperbólica das lágrimas vertendo dos olhos como “duas correntes pesadas” faz a coisa saltar à vista, tal qual uma metáfora de hipotipose e, por conseguinte, gera um efeito patético ao romance. Entretanto, essa fugaz seriedade logo desaparece, cedendo lugar a um discurso mais pragmático, sugerindo o deleite amoroso:

Menos cortês mais amante vos quisera prenda amada

que amor morre nos cortejos, vive só nas confianças O amor é mui menino

por esta razão não trata de cortesias que são

nos meninos escusadas. (vv. 49-56)

Por esse excerto, é possível notar o tom direto no que se refere ao apelo ao deleite amoroso. Como recurso persuasivo, a voz do poema faz alusão a um deus pagão: Cupido, representado na mitologia greco-latina, como um menino alado que carregava um arco e uma aljava com setas. Ardiloso, espontâneo como uma criança, não fazia rodeios quando decidia lançar suas setas, sempre certeiras. Por isso, a expressão “o amor é mui menino” é sugestiva nessa passagem, principalmente, como recurso de convencimento.

No fim do poema, o eu lírico declara que os “cumprimentos” (v. 59) da musa são apenas “disfarces das esquivanças”. Os afetos representados no discurso não suprem os “carinhos” reais. Por isso, de maneira verossímil, finge não poder expressar o que sente por palavras. Entretanto, esboça uma pequena e emblemática mensagem: “Digo só que por vós morro / e se vivo é porque basta / o gosto que em morrer tenho / para dar-me vida larga”.

A passagem é simbólica, sobretudo no contexto de religiosidade em que está inserida, pois dialoga com a morte e ressurreição de Cristo, aquele que morreu pela Cristandade e que, ao morrer, ganhou vida eterna. Entretanto, o eu lírico se compara ao filho de Deus num âmbito finito, porque morre pela amada e o gosto em morrer por ela lhe dá vida larga, não eterna.

Essa última quadra também se aproxima das temáticas que exploram as contradições do amor, muito cultivada pelos poetas seiscentistas, sobretudo em sonetos, nos quais o eu lírico canta sentimentos paradoxais. Assim, muitas vezes, por conta da desilusão amorosa, diz estar morto em vida79. Um soneto de Sóror

Violante do Céu, “Dama Doliente y Queixosa”, é um bom exemplo disso:

Aunque de mi salud el detrimento80

Indica de mi pena lo excesivo,

Quén Duda que es ofensa del motivo No terminar la vida el sentimento Frágil demonstración de lo que siento

Es de uma enfermedad lo ejecutivo, Si no es, que por matarme com lo vivo Se transforma la vida e el tormento Vivo de tantos males combatida,

Muero de tanta vida atormentada, Que morte viene a ser la propria vida No quede pues me pena mal juzgada

Que para se abonar de bien sentida Basta ser por sentida eternizada

Num romance comentado, a noção de proveito (CARVALHO, 2007) que, no século XVII, assume a função de ensinar e deleitar ao mesmo tempo, direciona seu pêndulo muito mais para o deleite. Diferente da poética religiosa, com função didática e mais afeita ao docere, pensada como “a poesia na sua mais nobre essência [que] concorda com Deus e emana Deus” (PONTES, 1971), essa poesia se apropria do discurso religioso para fazer graça, mas jamais com a intenção de desrespeito ou subversão, fato inadmissível no contexto social em que Antônio da Fonseca vivia.

No que se refere ao universo da mitologia, este se faz presente nos romances, sobretudo quando o eu lírico evoca nomes de ninfas ou musas, modelos de mulheres de beleza encantatória, tais quais Filis, Clory, Tisbe, Nize e Dafne ou nas alusões aos deuses da mitologia greco-romana. Esse léxico é usado, em sua maior parte, como objeto de comparações ou analogias. Sendo assim, apresenta-se

79 Aguiar e Silva (1994, p. 220), comentando a presença dessa temática em Camões, afirma “os

temas da vida que é morte e da morte que é vida encontram expressão reiterada nos poetas do dolce stil nuovo, em Petrarca, na poesia hispânica do século XV, nos poetas petrarquistas do século XVI e XVII. [...] A morte de amor, para além de ser um tópico que exprime o sofrimento mortal do amante, pode representar, quer no plano do amor humano, quer no plano do amor divino, a consumação do amor, o clímax da união amorosa e por isso tanto o trovador-amante como o místico- amante anseiam por este momento supremo e morrem porque não morrem”.

80 Soneto retirado do livro Poesia Seiscentista: Fenix Renascida, Postilhão de Apolo, organizado por

como um rico manancial metafórico, do qual o poeta retira conceitos e argumentos usados nas mais variadas espécies de analogias que descrevem traços de beleza física, ações ou comportamentos. Em tais operações metafóricas, leva-se em conta principalmente o jogo conceitual que envolve a lenda do ser mitológico e o contexto do qual serve como parâmetro. Um exemplo desse recurso pode ser observado no romance de número quarenta e sete:

Prodiga se de esquivanças Liberal se de desprezos avarenta de favores fugitiva a rendimentos Áspide sempre a minha vozes

pedra sempre a meus incêndios sempre Anaxarete a meus desprezos Eurídice a meus desvelos

No romance citado, Lizis é descrita pelo eu lírico como uma mulher esquiva e insensível aos seus desejos. Trata-se da tópica do homem que deseja e é desprezado. Para que um conceito abstrato tal como a esquivança seja mais bem apreendido, o recurso usado são as descrições metafóricas. Não é difícil perceber, quando se lê o excerto ilustrado nesta análise, que a descrição das ações esquivas de Lizes a transformam num ser monstruoso, que se metamorfoseia em áspide ou em pedra.

Apesar das atribuições predicativas apresentadas na primeira quadra já terem demonstrado de maneira hiperbólica o quão Lizis é esquiva e insensível ao apelo do amante. Essa ideia se reforça com o recurso analógico das fábulas de Anaxarete e Ífis, e de Eurídice e Orfeu. Na primeira, temos um exemplo de amor não correspondido; na segunda, de amor não desfrutado. Anaxarete é representada como uma mulher insensível, indiferente ao amor de Ífis, por isso tem o coração comparado à dureza do aço ou das rochas. Eurídice, desposada de Orfeu, recusou os galanteios do pastor Aristeu e, fugindo dele, pisou em uma cobra, foi mordida no pé e morreu. Orfeu desesperado desce ao mundo dos mortos para trazer de volta à vida sua mulher. A narrativa continua, mas o que interessa para nós é justamente o desdém desta ao pastor Aristeu e também o amor não desfrutado de Orfeu que perde a amada duas vezes, numa dupla morte81.

Por esses exemplos de teor persuasivo, torna-se verossímil conceber Lizis, como uma mulher “prodiga de esquivança”, “fugitiva” ou “pedra” em relação aos “incendios”, melhor dizendo, à paixão ardente do amante. Por outro lado, se o compararmos a Ífis e a Orfeu, ambos vítimas dos males do amor, tendo como destino um fim trágico, porquanto o primeiro pratica o suicídio, enforcando-se à porta de sua amada e o segundo, com a morte de Eurídice, torna-se insensível ao amor de outras mulheres, vê-se amplificar ainda mais o sofrimento amoroso do eu lírico.

Nesse procedimento metafórico, Antônio da Fonseca Soares utiliza o recurso da metáfora de semelhança, que opera com analogias unívocas e de proporção, para criar a imagem de uma mulher esquiva e insensível ao apelo do amante.

No comentário anterior notamos o uso da mitologia como efeito analógico, que corrobora o discurso argumentativo do eu lírico, interessado em evidenciar a imagem de uma dama insensível e esquiva e, além disso, relatar seu sofrimento amoroso. Na próxima análise, veremos como se comporta a voz satírica em relação ao universo mitológico. A esse respeito Silva (1971, p. 457-461) declara:

Algumas palavras, por fim, sobre uma das mais curiosas manifestações, na nossa poesia barroca, desta veia satírica e burlesca. Refiro-me às fabulas mitológicas em que os poetas, seguindo o caminho iniciado por Góngora, reelaboram, em clave humorística, sarcástica e fortemente burlesca, algumas das mais conhecidas narrativas mitológicas greco-latinas. Ao deslumbramento exercido por tais narrativas nos poetas renascentistas, contrapõe-se agora estoutra atitude, tipicamente barroca, de corroer e degradar pela caricatura, pelo riso, pelo pormenor brutal ou sordidamente realista82, a idealidade e a beleza contidas nessas mesmas

narrativas. [...] O barroco se compraz na caricatura e no burlesco e corrói a beleza, ora grave, ora grácil, dos mitos que tinham seduzido a sensibilidade renascentista.

Com efeito, o arsenal conceitual da mitologia não é poupado pela voz satírica ou burlesca. Ainda que Aguiar e Silva se refira mais especificamente às apropriações referentes às fábulas mitológicas feitas por esses gêneros, o romanceiro fonsequiano não deixa de fazer alusões aos mitos ou a entidades

82 Para não sermos anacrônicos em relação ao conceito “realista” gostaríamos de citar Hansen

(1989, p. 16): “Ao poeta barroco nada repugna mais que a inovação, sendo a invenção antes uma arte combinatória de elementos coletivizados que, propriamente, expressão individual “original”, representação naturalista do “contexto”, ruptura estética com a tradição etc.”

mitológicas específicas de forma maledicente ou jocosa. Vejamos como exemplo mais um excerto retirado do romance de número 11:

Filho de Marte, e de Venus vossa prosápia aplaudis, mui prezadinho deter pai guerreiro, e mãe gentil Vede lá quem Vênus foi,

e quem foi Marte adverti ela uma puta safada ele um pobre Espadachim Entre uns cornos vos geraram

e quando mais presumis tendes por princípio um corno de vossa fama clarim

...

Andai menino Nestor, andais eterno malsim

que nas partes que ostentais bem mostrais a quem sair; Buscais por lá quem vos creia

que hum filho da puta vil não pode ter boas manhas, nem quem o segue bom fim

No excerto acima demonstrado, Antônio da Fonseca faz alusão a uma das lendas acerca do nascimento do deus do amor. Sendo assim, nesse poema o filho de Marte e Vênus, na verdade, Cupido, está sendo sarcasticamente vituperado pelo eu lírico que, no desenvolvimento da cena poética, acusa-o de se tornar cativo das contradições do amor. A paixão que o torna um ser vicioso e, portanto, ser de alma deformada, é causada quase que sucessivamente pela beleza hiperbólica da mulher e pela ação do deus menino.

Para atacar o ser que deformou sua alma, num sentido moral cristão e ético político, visto que um sujeito vicioso é simultaneamente mal cristão e homem não prudente, o eu lírico utiliza-se de uma das tópicas retóricas do gênero demonstrativo em sua argumentação: a tópica da origem (genus). Sobre este recurso, Hansen (1989, p. 313) afirma

Acredita-se que, geralmente, os filhos se assemelham aos pais e aos ancestrais, postulando-se que a semelhança influi na vida honesta ou desonesta objeto de elogio ou vituperação. [...] A atribuição do caráter “puta” à mulher da vítima satirizada produz dois efeitos insultosos complementares: o filho do atacado torna-se “bastardo”, pela suspeição da paternidade, desonrando-se o pai como corno. “Cuco”, já referido, termo muito frequente na sátira medieval e ibérica e em Gil Vicente, costuma ocorrer neste contexto discursivo. Pelo topos “origem” ainda, as descrições e os ataques satíricos são investidos semanticamente da oposição jurídica “fidalgo /não fidalgo” e categorias delas como “limpo de sangue /sujo de sangue”, “bem-nascido” /“mal-nascido”, e, por extensão, “honra /desonra”

Com essa afirmação de Hansen, nota-se que o ataque agressivo ao deus do amor, faz-se por meio de um recurso analógico que desqualifica sua origem. Tal desqualificação é percebida quando se traçam relações com a história mitológica que envolve Marte, Vênus e Cupido. O menino Nestor, ou seja, aquele de muitos anos, mas com semelhança de menino, expressão antitética, pela qual se costumava chamar esse deus mitológico, na verdade, é fruto de uma relação adultera entre Marte e Vênus, pois esta era esposa de Vulcano. Por isso, seguindo o raciocínio de Hansen, Vênus é puta, Vulcano é “corno” e, consequentemente, Cupido é bastardo e vicioso, como os pais, ou seja, “um filho da puta vil”. Por meio desse engenhoso argumento se torna aceitável o uso de analogias ou epítetos construídos por meio de tabuísmos.

Não é difícil observar que a mitologia clássica é algo puramente funcional, usado como recurso expressivo e, também, como marca de erudição. Em muitas vezes, mitologia e religião cristã dialogam, mesmo que veladamente, no mesmo romance, porém os mitos greco-romanos são vistos por outro prisma, encontram-se situados um degrau abaixo da doutrina da Igreja Católica-Romana, como, por exemplo, no excerto retirado do romance 56:

Deixais pois desconfianças e adverti que cupido sabe vingar como Deus os agravos de menino

É importante notar que, nesse exemplo, o vocábulo “Deus” está escrito com inicial maiúscula e a palavra “cupido” em minúscula; portanto, o “Deus”, que

certamente é católico, está acima do ser mitológico da Antiguidade e é parâmetro para sua ação.

Levando-se em conta esse diálogo entre religião cristã e mitologia ou, melhor dizendo, entre as tendências ideológicas da Igreja católica e o legado da tradição clássica, é válido citar Pécora (1994, p. 73), quando comenta as características humanistas nos sermões do contemporâneo de Antônio da Fonseca Soares, o padre Antônio Vieira:

[...] Esse "humanismo" surge na verdadeira multidão de autores clássicos citados por Antônio Vieira, de que é difícil até mesmo identificar, de imediato, uma econômica linha de frente. Claro, há uma tendência, no conjunto do seu raciocínio, de fazer, com que as opiniões de embasamento aristotélico, ou a elas, conversíveis, ganhem maior destaque, o que, em princípio, diz respeito muito mais à manutenção de uma tendência escolástica, perfeitamente nítida em Vieira, do que às hipóteses e aos interesses do humanismo

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