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A moralidade da representação

No documento Falando Da Sociedade - Howard S. Becker (páginas 163-167)

Aprovação em testes

8. A moralidade da representação

A representação da sociedade suscita questões morais para participantes, produtores e usuários. Essas questões se apresentam sob inúmeras variedades: a má representação como um erro moral; a forma como técnicas comuns moldam nossos juízos morais; as questões correlatas de atribuir mérito e culpa pelos resultados da ação e de atribuir a participantes de uma ação social os papéis de herói e vilão.

“Má representação”

Os sociólogos da minha tradição buscam compreender as organizações sociais procurando distúrbios, situações em que as pessoas se queixam de que as coisas não se passam como deveriam. Podemos descobrir com facilidade as regras e os entendimentos que governam as relações sociais quando ouvimos as pessoas se queixarem de sua violação. Campos de atividade representacional são periodicamente objeto de debates violentos, bastante moralistas, sobre a feitura e o uso de seus produtos característicos. Os gritos de “Não é justo” e “Ele trapaceou” lembrariam as brincadeiras de crianças de cinco anos se as apostas não fossem muito mais altas e os assuntos envolvidos tão mais sérios. O problema da má

representação nos convida a iniciar nossa análise procurando esses

conflitos.

Estudantes de antropologia da Universidade de Papua-Nova Guiné queixaram-se, no programa Nova, no episódio “Papua New Guinea: Anthropology on Trial” (1983), de que Growing Up in New Guinea, de Margaret Mead, era “injusto” porque ela repetia as histórias depreciativas

que seus informantes haviam lhe contado sobre os ancestrais dos estudantes, pelos quais os dos informantes tinham um tradicional desdém. Os estudantes não se queixavam de que Mead relatara imprecisamente o que lhe fora dito; concordavam que aquelas pessoas tinham falado tais coisas. Também não se queixavam de que Mead apresentara as histórias como fato; ela não o fizera. Não, eles se queixavam porque seus próprios ancestrais, que Mead não havia estudado, costumavam dizer coisas igualmente terríveis sobre o povo dos informantes, e Mead não lhes dera oportunidade igual.

Essas queixas exemplificam o tipo de queixa surgido do interesse pessoal: “Você me fez parecer mau!” O médico que trabalhava como primeiro assistente no hospital psiquiátrico que Erving Goffman estudou e sobre o qual escreveu em Asylums queixou-se (na nota de rodapé que Goffman lhe concedeu) de que, para cada “coisa má” que o livro descrevia, ele poderia ter apresentado uma “coisa boa” que a contrabalançasse: para as vitimizações de pacientes relatadas por Goffman, ele poderia ter falado sobre o refeitório recém-pintado.1 De

maneira semelhante, os cidadãos e políticos de Kansas City, Missouri, queixaram-se de que o censo de 1960, dos Estados Unidos, subtraiu alguns milhares de pessoas da população da cidade, impedindo-a, assim, de auferir os benefícios concedidos por uma lei estadual a cidades com mais de meio milhão de habitantes (lei cujo objetivo fora ajudar St. Louis a sair de dificuldades financeiras alguns anos antes). Quase todos cuja organização Frederick Wiseman filmou queixam-se de que não sabiam que ficariam com aquele aspecto.

A prática de reportagem mais ou menos ficcionalizada, tal como exercida por Norman Mailer, Truman Capote e Tom Wolfe, entre outros, provocou uma queixa mais geral. O conhecido jornalista John Hersey mostrou que esses escritores não apenas inventavam coisas, mas insistiam no direito de inventá-las em nome de uma verdade mais elevada.2 Afirmou que um autor pode criar detalhes e incidentes em

INVENTADO!”, mas não no jornalismo. Ali,

o escritor não deve inventar. A legenda nos créditos deve dizer: NADA DISSO FOI INVENTADO. A ética do jornalismo, se podemos conceder tal regalia, deve se basear

na verdade simples de que cada jornalista conhece a diferença entre a distorção que resulta da subtração de dados observados e a que resulta do acréscimo de dados inventados.

Curiosamente, Hersey acrescenta que a distorção por omissão é aceitável porque

o leitor admite a subtração [de dados observados] como inevitável no jornalismo e procura instintivamente a distorção; no momento em que suspeita de que há acréscimos, a terra começa a tremer sob os seus pés, pois a ideia de que não há como distinguir o que é real do que não é torna-se terrificante. Mais terrificante ainda é a ideia de que mentiras são verdades.3

Muitos críticos, porém, queixaram-se de que o jornalismo impresso e transmitido por rádio e televisão excluem exatamente aquelas coisas de que as pessoas precisam para avaliar as questões da forma adequada.4 E é

fácil imaginar que muitos leitores “procurariam instintivamente” acréscimos, assim como Hersey procura subtrações, se soubessem que deveriam fazê-lo; é provável que muitos dos leitores de Wolfe, assim como leitores de jornais e espectadores de televisão, façam isso.

Hersey, quer aceitemos ou não seus julgamentos, identifica o âmago sociológico dos conflitos referentes às representações da realidade social. Nenhum relato em qualquer meio ou gênero de comunicação, seguindo as regras mais estritas concebíveis, resolverá todos esses problemas, responderá a todas as questões ou evitará todos os problemas potenciais. Como vimos, pessoas que criam relatos de qualquer tipo entram num acordo com relação ao que é “bom o suficiente”, que procedimentos deveriam ser seguidos para se alcançar essas condições boas o suficiente, e concordam que qualquer relato feito em conformidade com esses procedimentos é confiável o suficiente para objetivos comuns. Isso protege interesses profissionais e assegura a continuidade do trabalho das

pessoas que usam esses procedimentos, garantindo os resultados como aceitáveis, críveis e prontos para suportar o peso posto sobre eles pelo uso rotineiro segundo os objetivos de outras pessoas. Os padrões acordados definem o que se espera, de modo que os usuários podem descontar as deficiências de representações praticadas com sua anuência e pelo menos saber com o que estão lidando. A análise de Hersey aceita esse estado de coisas como normal, corrente e adequado. Era isso que eu tinha em mente antes, quando disse que toda maneira de fazer uma representação é “perfeita”, boa o suficiente para que os usuários aceitem o resultado como o melhor possível nas circunstâncias e aprendam como trabalhar com suas limitações. Os críticos afirmam que as más representações ocorrem quando alguém não segue os procedimentos de praxe e induz os usuários a pensar, de modo equivocado, que um contrato está em vigor, quando ele de fato não é honrado.

Disputas entre os diretores de filmes documentários muitas vezes giram em torno de métodos cuja diferença em relação a um padrão anterior parece criar a possibilidade de confusão sobre o que o filme alega ser verdadeiro. Michelle Citron provocou uma tempestade de críticas ao incluir passagens “ficcionais” em Daughter Rite (1979), filme que, sob outros aspectos, é factual. Alguns diretores mais conservadores queixaram-se de que o público seria enganado, induzido com astúcia a pensar que assistia a algo que realmente ocorrera. Citron, não sem razão, contestou que seu filme exibia uma “verdade” mais genérica.

Usuários e críticos também afirmam que houve “má representação” quando o uso rotineiro de procedimentos padronizados aceitáveis prejudica seus interesses, deixando de fora algo que, se incluído, mudaria não só as interpretações do fato, mas, o que é mais importante, os juízos morais que as pessoas fazem com base na representação. Isso acontece com frequência quando alguma mudança histórica torna novas vozes audíveis. As pessoas que Mead estudou não liam monografias antropológicas, não podendo assim criticá-las. Mas seus descendentes, estudantes da Universidade de Papua-Nova Guiné, podem fazê-lo — e o

fazem.

Em ambos os casos, o problema da má representação é de organização social, um problema que se manifesta quando um acordo suficientemente bom para todos é redefinido como inadequado. Muitos problemas “morais” que atravessam gêneros e meios de comunicação também podem ser analisados como produtos organizacionais, inclusive a ética da representação e o problema da autoridade de uma representação.

“Insidioso”: a comunidade moral de produtores e

No documento Falando Da Sociedade - Howard S. Becker (páginas 163-167)