• Nenhum resultado encontrado

O trabalho dos usuários

No documento Falando Da Sociedade - Howard S. Becker (páginas 76-85)

O problema fotográfico

4. O trabalho dos usuários

Algumas representações da vida social exigem que seus usuários realizem uma grande quantidade de trabalho. Quantos usuários têm o conhecimento e as habilidades necessárias para fazer esse trabalho? Que acontece se não puderem ou não quiserem fazê-lo? Como levar os produtores de representações a lidar com a habilidade diferencial e a disposição dos usuários para fazer o trabalho que seus relatos exigem?

Construing

1

Algumas representações parecem revelar facilmente seu significado. Nós as captamos num relance, como colhemos uma laranja de uma árvore no quintal. Outras exigem mais trabalho, mais reflexão, ponderação das implicações. Vamos usar a palavra construal para designar o modo como os recebedores da mensagem a compreendem, a interpretam, atribuem- lhe ou extraem dela algum sentido.

Um usuário pode tomar qualquer representação da sociedade de uma dessas duas maneiras: como óbvia, e seu significado está tão “simplesmente ali” que requer apenas uma manipulação mínima e rotineira da mensagem; ou como obscura, densa, exigindo cuidadosa atenção a todos os detalhes. “Óbvio” e “obscuro” não são características naturais de objetos ou eventos. Na verdade, descrevem o modo como decidimos dedicar atenção a essas coisas.

Dedicamos atenção a representações segundo as formas como o aprendemos. Representações parecem óbvias para usuários que já sabem tudo que precisam para entender seu significado, e obscuras quando

demandam mais trabalho, quando os usuários não encontraram algo exatamente igual àquilo antes. Todos nós tivemos algum treinamento, desde que éramos crianças pequenas, na interpretação desses objetos, mas nem todos tivemos treinamento e experiência com todos os tipos de representação. Essas habilidades estão desigualmente distribuídas ao longo de todos os tipos de linhas de divisão social.

Podemos avaliar cada fotografia como óbvia ou obscura (mostrarei como podemos avaliar a mesma foto de diferentes maneiras no Capítulo 10). Muitas fotos lançam mão de convenções bem conhecidas por tantos tipos de pessoas que apenas algumas indicações revelam, a usuários experientes, a pessoas que usualmente entram em contato com elas, toda a história, assim como em geral conseguimos imaginar o texto completo de anúncios de que só vemos fragmentos. Em mundos representacionais bem organizados, os usuários sabem como interpretar as representações com que deparam rotineiramente. Tome como exemplo fotografias de reportagens esportivas — não as fotografias de ação feitas durante o jogo, a partida ou a competição, mas as das outras atividades que envolvem o grande jogo — que são organizacionalmente muito estereotipadas, para que sejam facilmente interpretáveis por observadores experientes.1 Elas

lidam com uma pequena seleção de situações, bem conhecidas pelos leitores de jornais que as veem de hábito.

As imagens mais comuns (sigo estritamente a análise de Hagaman aqui) lidam com um jogador ou um time que está ganhando ou perdendo. Todo jogo que tem um vencedor, claro, tem também um perdedor. A fotografia mostra o vencedor de acordo com a cidade a que serve o jornal para a qual é feita. Fotografias em jornais de Chicago tratam o Cubs e o Sox como “nosso time”, cujas vitórias comemoramos, ao passo que os jornais de Nova York tratam os Yankees e Mets como “os nossos”. Os leitores não precisam descobrir isso: é parte da bagagem de que dispõem para a atividade interpretativa. (Fotografias feitas para as agências de notícias, que servem a muitos jornais em muitas cidades, em geral incluem uma seleção de fotos a partir da qual os editores locais escolhem

aquela apropriada para o time da sua cidade.) Quando o “nosso” time vence, vemos os vencedores radiantes, individual ou coletivamente, braços levantados no ar, cabeças jogadas para trás, bocas abertas, ou trocando abraços. Quando o “nosso” time perde, vemos um perdedor solitário sentado num banco, cabeça baixa, ombros caídos, talvez com outro jogador consolando-o, com um braço em torno de seus ombros. Essas poses estereotipadas aparecem em fotografias de atletas de todos os tipos: amadores e profissionais, mulheres e homens, adultos e crianças.

Americanos bem socializados (e sem dúvida um número crescente de pessoas em toda parte) aprendem essa linguagem de gesto e postura quando crianças e levam apenas um segundo para extrair o sentido pretendido da fotografia de um atleta com os braços estendidos para o céu e um largo sorriso no rosto. Que mais isso poderia significar? Ele venceu! Da mesma maneira, conhecem a linguagem da derrota. Quando veem alguém sentado num banco, sozinho, cabeça baixa, sabem, a partir dos milhares e milhares de fotos como esta que viram antes, que aquele jogador perdeu. Que mais poderia ser? O significado não é óbvio porque tais gestos, apresentados nessa linguagem visual, são inerentemente óbvios. Ele é evidente porque os usuários aprenderam essa linguagem, tal como todas as linguagens são aprendidas, pela repetição constante. Eles

sabem como interpretar a imagem.

Fotógrafos retratam vencedores e perdedores dessa maneira facilmente interpretável para que os leitores de jornal só precisem dar às imagens um ou dois segundos de atenção quando passam uma vista d’olhos nos resultados dos jogos da véspera. As imagens entregam seu significado essencial rapidamente para aqueles que conhecem o código. Como os usuários conhecem a linguagem e os fotógrafos sabem que eles a conhecem, essas imagens são facilmente feitas, uma vez que seus produtores dominam a linguagem, de modo que possam satisfazer as exigências do editor que enviou fotógrafos para cobrir o jogo de maneira rápida e eficiente.

amplamente conhecida — não aparecem apenas nas páginas de esportes. Os temas clássicos do fotojornalismo sério, importante — guerra, fome, assassinatos —, têm um repertório de fotos canônicas, que usam uma linguagem visual extremamente convencional de fácil interpretação por parte de qualquer usuário bem socializado. A fome produz indefectivelmente a criancinha de barriga inchada. Os assassinatos são registrados sob duas formas: o fotógrafo com sorte suficiente para estar presente na cena quando o crime aconteceu capta o assassino apontando a arma enquanto a vítima cai no chão; os fotógrafos que chegam depois devem se contentar com a vítima deitada numa poça de sangue. E todos que veem uma fotografia assim sabem “o que ela significa”.

A feitura de uma imagem tão facilmente interpretável requer habilidade. O fotógrafo deve encher o quadro com a imagem estereotipada, excluindo detalhes que distrairiam os usuários das pistas padronizadas ou borrando esses detalhes “irrelevantes” (o que os editores chamam por vezes de “imagem poluída”) usando foco seletivo.2

Como vimos no trabalho de Walker Evans, outras fotografias, feitas com igual habilidade, têm a intenção oposta: incluir detalhes cujo significado não é óbvio, que não usam linguagem visual convencional já bem conhecida, detalhes que recompensam o estudo atento e a reflexão. Essas imagens parecem simples ou desinteressantes para aqueles que não as examinam com cuidado. Elas não empregam os códigos comumente compreendidos, que dizem aos usuários o que significam. Em vez disso, forçam-nos a discriminar materiais relevantes de forma consciente e descobrir suas interconexões, ver como podem ser compreendidas.

Isso é o que torna tão interessantes os artistas que se dedicam ao trabalho de análise social. Eles não querem apresentar o estereotipado e já conhecido nem recorrer à linguagem já muito familiar. Querem mostrar aos que olham suas fotos algo que nunca viram antes. E quando esses fotógrafos usam linguagem visual que todos conhecem, é porque querem fazer o observador ver nela novos significados.

descreveu certa vez seu trabalho como o estudo de sistemas: sistemas naturais, como um cubo plástico lacrado que fez no início de sua carreira, que continha uma pequena quantidade de umidade, cuja condensação e evaporação alternadas exibiam o caráter sistêmico desses processos; e, em seu trabalho posterior, sistemas sociais, em peças que exibiam explicitamente o funcionamento do poder político e econômico.4

S e u Guggenheim Project, por exemplo, consiste em sete painéis de texto impresso contendo grande quantidade de fatos sobre os membros do conselho diretor do Solomon R. Guggenheim Museum na cidade de Nova York: quem são os integrantes do conselho diretor do museu, seus laços de parentesco (quase todos são membros da família Guggenheim, embora muitos tenham sobrenomes diferentes), de que outros conselhos (de companhias e organizações) eles fazem parte, e muitos fatos sobre os crimes cometidos por essas companhias, especialmente sua exploração de trabalhadores nativos nos países do Terceiro Mundo.5 A obra

Guggenheim Project não anuncia qualquer conclusão nem faz

generalização alguma; não há sugestão de análise marxista ou de qualquer outra variedade de análise política — apenas a recitação de fatos. Haacke não aponta o dedo para indivíduos culpados nem afirma qualquer conspiração. Muito menos diz que esse bastião da arte moderna e do pensamento artístico progressista é sustentado por riqueza baseada na exploração do trabalho em países menos avançados que os Estados Unidos.

Mas alguém que examine essa obra teria de ser muito obtuso e propositadamente cego para não chegar a essa conclusão. Haacke tira partido dos métodos habituais de raciocínio dos leitores comuns usando um formato bem conhecido, uma simples listagem de fatos não questionados: nomes, datas, lugares, cargos oficiais ocupados. Assim podemos saber quem são os membros do conselho do museu, que a maior parte deles pertence à mesma família extensa, que eles participam dos conselhos de várias corporações, que essas corporações se envolvem em atividades de mineração no mundo todo. À medida que vemos cada fato

“óbvio”, nós o acrescentamos ao que já sabemos e... a conclusão de que o museu é financiado pela exploração de trabalhadores oprimidos no mundo salta aos olhos.

Mas não é só isso; temos de saber como chegar a essa conclusão. Como a maioria dos usuários sabe disso, a conclusão resulta do trabalho que fazem arranjando esses fatos simples e indiscutíveis como silogismos e extraindo as conclusões a que esses silogismos conduzem, de maneira aparentemente inevitável e natural. Haacke emprega a mesma técnica para expor, por exemplo, as conexões políticas (sobretudo nazistas) de um industrial alemão que era presidente da Associação dos Amigos do Wallraf-Richartz-Museum de Colônia, que havia doado a pintura Feixe

de aspargos, de Edouard Manet, ao museu.6

Empreguei a palavra interpretar (construe) para designar essa atividade através da qual usuários em comunidades interpretativas (voltarei a essa expressão adiante) extraem fácil e “naturalmente” o significado de uma representação e a compreendem. Procedi assim para deixar claro que o trabalho deve ser feito antes que uma representação entregue seu sentido ao usuário. Construe refere-se, em seu sentido original em inglês, à análise gramatical de uma frase, à compreensão dos termos em que ela é expressa e ao modo como estão conectados uns aos outros; o sentido mais amplo de construe é “descobrir e aplicar o significado de; interpretar”. Vamos levar isso a sério.

Os usuários frequentemente saltam este passo e, de fato, podem ignorar por completo o artefato representacional tão cuidadosamente construído para eles. Não me refiro ao tipo de olhar casual e leitura rápida, a folheada no livro de fotos de trás para diante que tanto irrita os fotógrafos. Tenho em mente a prática que Lawrence McGill descreve em seu estudo sobre a leitura que os estudantes fazem durante um curso de ciência, no qual são solicitados a ler muitos artigos contendo grandes números de tabelas numéricas. Diz ele:

A postura dos estudantes em relação à leitura desses artigos é que devem “dar cabo deles” para atender aos requisitos de seu curso. Esses estudantes esforçam-

se para evitar a conversa fiada, o material alheio ao “ponto central” que o artigo está tentando explicar. Tabelas estatísticas, descrições da metodologia e resultados são vistos como procedimentos sempre iguais que aparecem em praticamente todos os artigos de pesquisa (isto é, estas são as seções que eles veem como se tivessem sido “escritas porque tinham de ser”). Seus objetivos são conhecidos e compreendidos, e os estudantes só lhes darão atenção se houver uma boa razão.7

Como poucas vezes encontravam essa boa razão, eles praticamente ignoravam as tabelas que constituíam o cerne dos artigos lidos, raciocinando que elas deviam afinal dizer o que os autores declaravam que diziam, do contrário os editores teriam rejeitado o artigo. Memorizavam as conclusões, que a seu ver seriam aquilo que certamente seria perguntado nos testes do curso, confiando que o resto do material de fato corroborava essas afirmações.

Assim, os usuários podem não fazer o trabalho deixado para eles, podem simplesmente não se dar a nenhum incômodo, não olhar para a fotografia; podem dormir durante o filme, mal passar os olhos pela tabela, saltar grandes partes do romance. Isso acontece.

Mas com bastante frequência isso não acontece, e, mesmo quando isso ocorre, podemos decidir ignorar as pessoas que ignoram o que fizemos para elas. Vamos manter nossos olhos abertos para os observadores interessados, que estão dispostos a fazer o trabalho necessário para desemaranhar o significado do pacote em que vem envolvido.

Podemos começar a análise da interpretação de representações observando que todas essas representações servem como instrumentos para resumir dados e ideias. Todas as versões de análise das ciências sociais têm de desempenhar a tarefa de abreviar o material, e nesse processo tornam o que foi colhido mais inteligível e assimilável (todo o Capítulo 6 é dedicado a este importante tópico). Latour descreve em detalhe como os cientistas resumem e reduzem seus dados, excluindo do que relatam uma quantidade cada vez maior de detalhes para tornar o que resta mais transportável e comparável. Ele chama essa série de

transformações de cascata.8

O que o leitor tem de fazer é chamado, por vezes, em se tratando de textos escritos, de “desembrulhar” a representação, isto é, desfazer a sintetização que produziu o artefato sob exame. Podemos começar nossa reflexão aqui considerando uma série de exemplos, o conjunto de tabelas e diagramas que reuni para meu seminário sobre o tema. Essas tabelas e diagramas complicados exigiam algum trabalho interpretativo, alguma análise sintática.

Algumas tabelas são bastante simples, mas muito detalhadas, fornecendo um nível de detalhe que a maioria dos leitores hoje consideraria excessivo, exigindo atenção demais ao que informam. É muito possível que, deparando com essas tabelas, que vão além do convencionalmente esperado, os leitores simplesmente as saltem, como faziam alguns dos estudantes entrevistados por McGill, confiando que elas dizem o que o autor diz que dizem.

Considere duas tabelas no estudo feito por W.E.B. DuBois acerca da histórica área negra da Filadélfia, o Seventh Ward, a menor das quais, ocupando apenas meia página, é intitulada “OCUPAÇÕES – HOMENS, 10 A 21 ANOS DE IDADE. SEVENTH WARD, 1896”; a maior, que ocupa duas páginas e

meia, tem o mesmo título, exceto quanto ao grupo etário, que muda para “21 OU MAIS”.9

Essas tabelas exibem uma decomposição das ocupações dos negros, jovens e adultos muito mais detalhada do que o necessário para qualquer pessoa — pelo menos para qualquer um em 1899. Que objetivo teria alguém para uma decomposição das ocupações de meninos por intervalos de um ano de idade? E, para um leitor contemporâneo, alguns dos títulos ocupacionais já nada significam. Muitos estudantes no seminário não tinham a menor ideia do que fazia um “estribeiro”, esta sendo uma das muitas ocupações esotéricas e não mais conhecidas que DuBois computou. (Eu sabia que tinha alguma coisa a ver com cavalos, mas tive de consultar um dicionário para aprender a definição completa: “Uma pessoa que cuida de cavalos, como numa hospedaria, cavalariço.”) E,

principalmente, por que se dar ao trabalho de listar, numa tabela dividida em categorias de idade, ocupações como reparador de porcelana e trançador de vime, cada qual praticada por apenas uma pessoa? Mesmo assim, está tudo lá à disposição, caso queiramos nos deter nesses aspectos.

A tabela contém mais informação do que qualquer um de nós acha que poderia precisar. No entanto, todos os participantes do seminário a que apresentei esse material sabiam como lê-lo. Muitas pessoas, talvez especialmente estudantes de ciências sociais, sabem como fazê-lo. Todos nós sabíamos que a tabela era bidimensional, que as dimensões eram ocupação e idade, e que os números nas células em frente aos nomes das ocupações e embaixo dos cabeçalhos de idade diziam quantos de cada um havia. A célula para “trançador de vime de 31-40 anos” continha “1”, significando que havia um destes, assim como o “28” na célula para “barbeiros de 21-30 anos” significava que havia 28 homens dessa idade com tal profissão. E assim por diante.

Muitas pessoas acham tabelas bidimensionais menos óbvias que esses já preparados estudantes de pós-graduação. Descobri isso quando tive de ensinar uma turma de alunos do último ano do bacharelado com especialização em sociologia a dar sentido a um objeto desse tipo (como aquele que expliquei no Capítulo 3), dizendo que a dimensão vertical representava um elemento que tinha diferentes valores; a dimensão horizontal era uma segunda variável que também tinha diferentes valores; e que as células continham o número de casos (pessoas) que atendiam a ambos os critérios.

Os diagramas que frequentemente ilustram relatórios de ciências sociais servem como metáforas, representações bidimensionais de uma realidade social complexa. Analisarei essas metáforas em detalhe no Capítulo 10, observando aqui apenas que diagramas, por mais simples que sejam, demandam interpretação, e que o modo como devem ser compreendidos nunca é óbvio. Olhando-os, temos de dizer conscientemente a nós mesmos: “Vejamos, esta linha significa isto e

aquela linha significa aquilo; quando as comparamos, esta linha é mais longa que aquela, portanto, a quantidade representada é maior.” Ou, como alguns dos diagramas discutidos mais adiante, eles usam símbolos e formatos criados para a ocasião, específicos para estes dados e esta análise, de modo que o leitor tem de identificar conscientemente os componentes e aprender o que eles representam e o que, portanto, pode ser depreendido do diagrama.

Peças teatrais, romances, filmes e fotografias geram problemas diferentes, em particular quando as pessoas que os fazem são artistas. Os artistas em geral pensam que seu trabalho fala por si mesmo; que já disseram tudo que há para dizer sobre o tópico, seja ele qual for, na própria obra; e que qualquer falta de clareza significa que o observador não fez o trabalho necessário para tornar o significado claro. Isso poderia ser expresso como: “Você não leu com atenção”, ou “Você não olhou a fotografia com atenção”, ou “Você estava dormindo quando o evento decisivo da peça ocorreu.” Em geral, eles alegam que o observador não prestou o tipo de atenção completa que a obra requer.

No documento Falando Da Sociedade - Howard S. Becker (páginas 76-85)