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Capítulo I Morte: Histórico e Conceituação

1.1. Concepções Históricas da Morte

1.1.2. A Morte na Idade Média

1.1.2.5. A Morte Invertida ou Interdita

Com a Revolução Industrial, no início do século XIX, ocorreram transformações, como a ascensão da classe burguesa e seus novos valores socioeconômicos e morais, as medidas mais eficientes higiênico-sanitários de saúde pública e a construção de grandes hospitais, que repercutiram na forma de ver e tratar a morte no Ocidente, tornando-a mais distante, impessoal e destituída de sentido. Nesse mesmo período, surgiram correntes filosóficas que influenciaram a percepção do mundo ocidental frente a aspectos como o corpo, a alma e sua sobrevivência (a vida pós-morte). Ariès (2000, p. 310), em seu livro O homem perante a morte, oferece uma panorâmica sobre esse período:

“Um tipo absolutamente novo de morrer apareceu durante o século XX em algumas das zonas mais industrializadas, mais urbanizadas, mais tecnicamente avançadas, do mundo ocidental. Dois traços saltam aos olhos do observador menos atento: a sua novidade, evidentemente, a sua oposição a tudo o que precedeu, de que é a imagem revertida, o negativo: a sociedade expulsou a morte, exceto a dos homens de Estado. Nada avisa já na cidade que se passou qualquer coisa... A sociedade deixa de fazer pausas: o desaparecimento de um indivíduo já não afeta a sua continuidade. Tudo se passa na cidade como se já ninguém morresse.”

Tais mudanças afetaram não só a sociedade como um todo, mas a relação entre o moribundo e o seu ambiente. O indivíduo perdeu o poder e o controle sobre o seu morrer, sendo obrigado a se colocar na dependência do ambiente. A morte não ocorria mais à maneira antiga, na presença dos entes queridos à beira do leito. Ninguém queria falar sobre o que estava acontecendo com o doente, nem ele próprio sobre o que sofria. Os familiares sofriam, não sabiam o que fazer, mas fingiam que estava tudo bem, como forma de se proteger e proteger o doente. Quando era necessário saber, esperava-se que alguém se incumbisse de dar a notícia.

A morte, então, vai para a clandestinidade, passa a ser um dever da família manter a ignorância do doente, à custa da intimidade e profundidade das relações. Os testamentos não continham mais as cláusulas piedosas; o moribundo não estava mais rodeado pelos familiares. A morte era um evento solitário. Antes domada, passou à condição de selvageria. Segundo descrições do historiador francês Ariès (2000, p. 322):

O quarto do moribundo passou da casa para o hospital. Devido às causas técnicas médicas, essa transferência foi aceita pelos familiares, estendida e facilitada pela sua cumplicidade. O hospital é a partir de então o único lugar onde a morte pode escapar seguramente à publicidade – ou àquilo que resta –, a partir de então considerada como uma inconveniência mórbida. É por isso que se torna o lugar da morte solitária.

Ao longo dos séculos, a morte passou a ser cada vez mais isolada socialmente, e no início de século XX houve um declínio da morte tradicional, com modificações no espaço e no tempo de um grupo social. Com a evolução da medicina, houve redução da taxa de mortalidade e o prolongamento da expectativa do tempo de vida. Ao mesmo tempo, a própria medicina, com suas medidas de prevenção e controle social da saúde e da doença, exerceu um papel crucial no afastamento da morte das consciências individuais. A vida nesse século, se comparada à de períodos anteriores, tornou-se mais previsível, exigindo mais participação de cada indivíduo e controle dos sentimentos.

Em estudos de sociólogos estadunidenses dos anos 1960, a morte era oculta e tinha como finalidade proteger a vida hospitalar da crise que representava a súbita manifestação emocional decorrente da eminência do falecimento. Não se protegia o enfermo do final próximo, mas se impedia que a rotina institucional fosse alterada pelas emoções. O silêncio em torno do término da vida por parte da equipe de saúde conduziu ao isolamento do paciente

internado em hospital. Nesse contexto, o doente passou a não participar das decisões referentes à sua vida, doença e morte (Menezes, 2009).

Segundo Santos (2007), o hospital passou a ser não só um lugar onde se cura e onde se morre, mas o lugar da morte “natural”. Assim, como se verá no próximo capítulo, o local da morte é transferido do lar para o hospital, impossibilitando as pessoas de verem seus parentes morrerem. O moribundo não tinha mais nem mesmo hora para morrer; o tempo da morte alongou-se à vontade do médico, que podia regular a sua duração. A partir daí, o hospital passou a oferecer às famílias o asilo onde conseguem esconder o doente inconveniente para elas, descarregando sobre os outros uma assistência a fim de continuar uma vida normal.

A esse respeito, já acrescentava Ariès (2000), a morte já não pertencia ao moribundo – primeiro irresponsável, depois inconsciente – nem à família, persuadida de sua incapacidade, sendo um fracasso e associada não só ao medo, mas a tudo o que era ruim. É por esse autor considerada uma antítese de todos os valores de uma sociedade, o que pode ser mais bem expresso em sua citação a seguir:

“A morte já não mete medo apenas por causa de sua negatividade absoluta, revolve o coração, como qualquer espetáculo nauseabundo. Torna-se inconveniente, como os atos biológicos do homem, as secreções do corpo. É indecente torná-la pública. Já não se tolera seja quem for entrar num quarto que cheira a urina, a suor, gangrena, onde os lençóis estão sujos. É preciso proibir-lhes o acesso, exceto alguns a íntimos, capazes de vencer a sua repugnância, e aos indispensáveis doadores de cuidados. Uma nova imagem da morte está em vias de se formar: a morte feia e escondida, e escondida porque é feia e suja.” (p. 320)

De acordo com Kovács (2008b), os rituais da morte tornam-se cada vez mais discretos ou quase inexistentes; o luto sofre interferências, valorizando-se cada vez mais uma atitude discreta. A cremação vai ganhando terreno sobre outras formas de dispor do corpo. O sofrimento do paciente é abordado de todas as maneiras possíveis: no seu lado positivo, aliviando-se a dor; no negativo, silenciando suas manifestações à custa de tranquilizantes ou

sedativos. Uma verdadeira maquiagem dos sentimentos e afetos mais profundos, evitando as rugas da dor.

Hennezel (2001) afirma que o hospital é o lugar onde ocorrem certas crueldades quando da proximidade da morte; uma delas é o anonimato. Não se permite intimidade e contato, limitados pelos horários de visita muito curtos, bem como por falta de acomodações para a permanência da família. O avanço da tecnologia permite que o processo de morrer seja prolongado à vontade da equipe médica.

Na mentalidade desse tipo de morte, agora denominada interdita, priva-se o homem de seu processo de morrer naturalmente, e a morte passa a ser vista como um fracasso, um acidente, um sinal de impotência ou imperícia da equipe médica. Outra característica do morrer nessa mentalidade é a promoção da inconsciência, para que não se perceba o que está ocorrendo, não haja expressão de emoções intensas. Fica claro como o homem é expropriado de sua própria morte. Torna-se muito difícil diferenciar a vida da morte, e a morte da vida. Talvez nem se perceba quando a morte de fato ocorreu, ou quando deixou de existir, verdadeiramente, vida.

De acordo com Kovács (2008a), é nos Estados Unidos e na Inglaterra que a morte invertida e interdita tem seu espaço principal. O objetivo é eliminar a morte da superfície aparente, o que se assegura por meio da supressão do luto, da simplificação dos funerais, do aumento no número de cremações e das cerimônias rápidas sem a presença do corpo. Outros recursos para disfarce da morte são os funeral homes, nos quais é feita maquiagem e arrumação dos corpos para dar impressão de que o morto pareça vivo. Surge, então, no século XXI, o modelo contemporâneo da morte com maiores conhecimentos técnicos dos profissionais de saúde, que paradoxalmente clama pela ideia de boa morte ou morte digna, com o surgimento do movimento pelo hospice, entendido como abrigo destinado ao conforto e cuidados com peregrinos e viajantes, que evoluiu e começou a ter características de hospital- residência.

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