• Nenhum resultado encontrado

Capítulo VI Estudo II Correlatos de Percepção de Morte Digna e

6.3.4. Explicando a Escolha do Lugar onde Gostaria de Morrer

Neste ponto são testadas as duas últimas hipóteses deste estudo. A primeira delas, Hipótese 5, previa que os médicos prefeririam sua casa como o lugar onde gostariam de morrer. De fato, essa hipótese foi corroborada, pois 75,6% preferiram sua casa, enquanto

24,4% manifestaram preferência pelo hospital como lugar onde gostariam de morrer (z = 8,83, p < 0,001).

A Hipótese 6 fazia esperar que as pontuações no fator boas relações com os familiares por parte dos médicos que desejassem morrer em casa (m = 6,0, dp = 0,73), comparadas com aquelas dos que preferiam o hospital como lugar onde morrer (m = 6,1, dp = 1,19), seriam maiores. Entretanto, como se observa, não foi exatamente isso que ocorreu (t < 1). Portanto, não pôde ser confirmada essa hipótese. Os resultados detalhados desse fator e dos demais são apresentados na Tabela 10.

Tabela 10. Lugar onde Gostaria de Morrer e Percepção de Morte Digna

PERCEPÇÃO DE MORTE DIGNA

LUGAR ONDE GOSTARIA DE MORRER

HOSPITAL CASA

m dp m dp F

I - Manutenção da esperança e do prazer 6,0 1,09 6, 1 0,68 1,26 II - Boa relação com a equipe

profissional de saúde 5,2 1,21 5,2 1,02 0,01 III - Controle físico e cognitivo 4,6 1,05 5,0 0,97 6,51* IV - Não ser um fardo para os demais 4,9 1,23 5,6 1,67 7,07** V - Boas relações com a família 6,1 1,19 6,0 0,73 0,55 VI - Controle do futuro 4,5 1,31 4,7 1,19 0,59 Notas: m = média, dp = desvio padrão; * p < 0,05, ** p < 0,01 (teste bicaudal).

Pôde-se comprovar efeito principal do lugar onde gostaria de morrer em relação aos fatores de percepção de morte digna [Lambda de Wilks = 92, F (6, 204) = 2,99, η² = 0,08]. Contudo, conforme é possível observar nessa tabela, unicamente em relação a dois dos fatores de percepção de morte digna os médicos diferiram em razão de indicarem o hospital (0) ou a casa (1) como lugar onde gostariam de morrer. Especificamente, os que indicaram a casa como opção pontuaram mais alto nos fatores de controle físico e cognitivo (m = 5,0) e não ser um fardo para os demais (m = 5,6) do que o fizeram os que preferiram o hospital (m = 4,6 e 4,9, respectivamente). Uma análise discriminante foi realizada também, considerando esses dois fatores como preditores, resultando em uma correlação canônica de 0,22, classificando adequadamente 65,1% dos médicos.

O papel dos valores como preditores da escolha do local onde o respondente gostaria de morrer foi menos evidente. Concretamente, não se observou qualquer correlação

significativa entre as pontuações nas subfunções valorativas e os fatores de percepção de morte digna (r ≤ 0,08, p > 0,05). Esse mesmo resultado foi observado para os três componentes de indicadores sociodemográficos (r ≤ 0,11, p > 0,05).

Em resumo, parece evidente que os melhores preditores da escolha do lugar onde se deseja morrer correspondem aos fatores de percepção de morte digna. Os valores e os atributos sociodemográficos têm pouco a contribuir nesse contexto, ao menos na condição de variáveis com efeito direto. Porém, considerando os achados prévios que relacionam os valores com os fatores de percepção de morte digna, decidiu-se como última etapa dos resultados testar efeitos de mediação desses.

No caso do fator controle físico e cognitivo, ele esteve mais fortemente correlacionado com a subfunção existência. Portanto, testou-se o seguinte modelo: existência → controle

físico e cognitivo → lugar onde deseja morrer, confirmando-se o efeito de mediação, segundo

o teste de Sobel (Z = 2,11, p < 0,05). Os resultados são resumidos na Figura 5, a seguir.

Figura 5. Modelo de Mediação do Fator Controle Físico e Cognitivo

Como é possível verificar, a subfunção existência prediz diretamente o fator controle físico e cognitivo (B = 0,31, t = 4,02, p < 0,001), e este, por sua vez, prediz a escolha do local (casa) onde a pessoa deseja morrer (B = 0,07, t = 2,47, p < 0,05).

O fator não ser um fardo para os demais foi mais fortemente correlacionado com as pontuações na subfunção suprapessoal. Dessa forma, procurou-se testar o seguinte modelo:

suprapessoal → não ser um fardo para os demais → lugar onde deseja morrer, confirmando-

se igualmente esse efeito de mediação, conforme referendou o teste de Sobel (Z = 2,23, p < 0,05). Os resultados correspondentes são descritos na Figura 6, a seguir.

Figura 6. Modelo de Mediação do Fator Não Ser um Fardo para os Demais

Nesta figura fica evidente o modelo de mediação, onde a subfunção suprapessoal influencia diretamente o fator não ser um fardo para os demais (B = 0,49, t = 3,88, p < 0,001), o qual prediz a escolha do local (casa) onde o participante da pesquisa indicou que gostaria de morrer (B = 0,05, t = 2,65, p < 0,01).

6.4. Discussão Parcial

Este segundo estudo procurou de certo modo replicar o anterior, porém incluindo variáveis de contexto laboral e pessoal, considerando os profissionais da medicina em si. Enquanto o Estudo 1 não contava com qualquer evidência acerca de percepção de morte digna, valores humanos e local onde se desejaria morrer, no contexto cultural pesquisa, o presente partiu dos achados anteriormente descritos para formular seis hipóteses principais, que são primeiramente abordadas nesta oportunidade.

A primeira hipótese, mesmo considerando um grupo mais velho que o anterior, previu que os participantes dariam maior importância ao fator manutenção da esperança e do prazer como definidor de morte digna. Essa hipótese foi corroborada, indicando-se, provavelmente, dois aspectos: (1) a concepção que pessoas dessa área da saúde têm sobre a vida, que precisa engendrar esperança, sobretudo; talvez para os mais jovens também o prazer, mas não se descarta que seja o caso igualmente dos médicos; e (2) o apego à vida ou aos recursos que a protelem, apoiando-se no tecnicismo ou nos recursos que fazem possível prolongá-la (Martin, 1998; Pessini, 1996). Nesse âmbito, quiçá valerá a pena, no futuro, diferenciar os fatores esperança e prazer. Afinal, qual será mais fundamental para esses profissionais: a esperança de seguir vivo ou o prazer de viver, tendo prolongada sua existência apenas quando esta não

implique dor e sofrimentos desnecessários? A segunda hipótese previa que os participantes dariam importância também ao fator boas relações com os familiares, que seria o segundo mais pontuado, o que também ocorreu. Como já foi mencionado, nessa cultura nortista o sentido de coletivismo (Hofstede et al., 2010), endogrupo, sobretudo grupo familiar, é preponderante na vida das pessoas, o que certamente explica que esse fator tenha preponderância para esses profissionais (Gouveia, Clemente & Espinosa, 2003).

As hipóteses 3 e 4 se referiram às subfunções valorativas. A primeira delas indicou que aquelas que cumprem orientação pessoal (experimentação e realização) estariam positivamente correlacionadas com a pontuação em controle físico e cognitivo, o que se confirmou. Possivelmente, pessoas orientadas por tais princípios axiológicos primam pelo princípio bioético de autonomia (Beauchamp & Childress, 2002; Morais, 2010a; Ricou et al., 2004), sendo igualmente acostumadas ao sentimento de realização (Gouveia, 2003), que compreende ter controle sobre seu próprio corpo. No caso da segunda, especificou que aqueles guiados por valores das subfunções interativa e normativa, que representam a orientação pessoal (Gouveia et al., 2011; Rokeach, 1973) pontuariam mais no fator boas relações com os familiares, o que também foi confirmado. Insiste-se, o grupo é a unidade fundamental para essas pessoas; assim, assegurar boas relações com os familiares no momento da despedida parece crucial para definir o que vem a ser uma morte digna.

A hipótese 5 sugeriu que as pessoas prefeririam suas casas como o lugar onde gostariam de morrer, resultado que foi observado em culturas similares àquela tida em conta nesta oportunidade (Beccaro et al., 2006; Tang et al., 2005) e é coerente com os valores desses profissionais (Carneiro & Gouveia, 2004), corroborados neste estudo, e tendo esse sido o resultado do Estudo 1. Portanto, congruentemente, foi precisamente o que se constatou, sugerindo que os valores podem ser adequados para conhecer a escolha do lugar onde as pessoas desejam morrer. Entretanto, consoante esses achados, esperar-se-ia (hipótese 6) que as pessoas que optam por suas casas como lugar onde gostariam de morrer pontuariam mais, comparadas com aquelas que escolhem os hospitais, no fator boas relações com os familiares, o que não ocorreu. Talvez se possa atribuir esse achado à menor variabilidade de pontuações nesse fator entre os participantes que desejam morrer em casa, conforme se observa na Tabela 10. Porém, isso carecerá de avaliações futuras para dirimir dúvidas.

O presente estudo inovou também ao considerar um conjunto de variáveis pessoais e laborais dos médicos. De fato, foram incluídos 12 atributos, tendo sido realizada uma análise

de componentes principais que revelou três componentes claros: estabilidade pessoal (idade, tempo de profissão, ter filho e ser casado), desgaste profissional (atividade de plantão, atividade de urgência, horas semanais de trabalho e número de atividades médicas) e saúde geral (autoavaliação do estado de saúde, fadiga autorrelatada, doença demandando cuidados especiais e sentimento de diminuição da libido). Certamente, essa estrutura poderá ser considerada em estudos futuros. Entretanto, com o fim de explicar a percepção de morte digna, unicamente o primeiro componente se mostrou relevante; mesmo nesse caso, correlacionando-se com um único fator: não ser um fardo para os demais. É possível que se indique que a pessoa que já está madura, com profissão e vida familiar estável, teme ser um fardo, uma complicação para aqueles que estejam ao seu redor, imaginando que ter uma morte digna é não ser esse "elemento indesejável", favorecendo que os demais sigam vivendo, sem terem sua rotina atrapalhada. Esse perfil, não obstante, parece ser de alguém que se apega à realização e ao poder, próprios de quem sustenta atitudes de autonomia e independência, mas que sofre com a possibilidade da terminalidade da vida (Kübler-Ross, 1981).

Por fim, procurou-se conhecer como se relacionavam a percepção de morte digna, os valores e a escolha do lugar onde os médicos desejavam morrer. Nesse caso, apreciou-se que pessoas guiadas por valores de existência pontuavam mais na percepção de controle físico e cognitivo, o que, por sua vez, explicava a escolha da casa como local onde gostariam de morrer. Essa mesma escolha foi explicada pelos valores da subfunção suprapessoal, porém mediada pelo fator não ser um fardo para os demais. Nesse sentido, reforça-se a casa como o lugar onde as pessoas desejam morrer, sendo essa escolha explicada por diferentes fatores de percepção de morte digna, pautados no eixo central dos valores, que contrapõe a representação de necessidades mais básicas com aquelas mais altas, como representadas, respectivamente, pelas subfunções existência e suprapessoal (Gouveia et al., 2011; Medeiros et al., 2012).

Em resumo, este segundo estudo permite mostrar a congruência dos valores para entender a percepção de morte digna e as escolhas dos médicos com respeito ao lugar onde desejariam morrer. Procura também ponderar a contribuição de variáveis demográficas e laborais, representando contribuições à literatura sobre o tema.

Documentos relacionados