• Nenhum resultado encontrado

Capítulo IV O Mártir como Performer: Relação do discurso e atitudes do mártir

3. A morte na arena como manutenção do sistema governativo

A sociedade romana está perfeitamente congraçada com a situação. Se para nós, nos dias de hoje, tal proveito da morte é excêntrico e exótico, isto acontece por via de uma actualizada imposição de valores e dinâmicas éticas que nos impedem de avaliar de que modo se extrai diversão do padecimento de um ser vivo. Um estudo minucioso sobre as práticas romanas nesta matéria, Cruelty and Civilization, de Roland Auguet (1994:13), nota precisamente este aspecto: “The life of a man has not had the value that our own morality strives to give it. In the past it could be a mere episode and death the instrument of a collective pleasure”. Este prazer colectivo de que nos fala Auguet também pouco ou mesmo nada tem a ver com a via sádica do prazer, que é a explicação mais imediata que se atribui ao consumo deste tipo de eventos. Aos olhos da contemporaneidade, os seus luxos lúdicos são mórbidos e sanguinários.

Partindo do valor empolado que a tradição bélica romana atribui à morte em guerra (e que a Ilíada descreve com clareza, instituindo-se como o maior e mais belo poema sobre morrer em batalha), até às mais variadas práticas da arena que quotidianamente acontecem no Império, conseguimos compreender que o evento da expiação é algo absolutamente comum aos olhos romanos, “Rome was a warrior state accustomed to violence and cruelty, and brutal spectacles faced no widespread opposition in Roman society. There was no modern sense of compassion or humanitarian distress about intentionally harming animals or humans” (Donald Kyle, Sports and Spectacles,

aqui é descrita como uma mulher ilustre, ou seja, merecedora das penas reservadas aos cidadãos de alto estatuto, como é o caso da mártir. Tal facto explica-o Castelli (2004: 39) : “For honestiores, people of high rank, the option could include decapitation, or the opportunity to commit suicide or exile”.

2005:258).

Dificilmente encontramos um povo que seja tão imaginativo e tão gráfico no tipo de mortes que produz, tanto nas suas ficções dramáticas como nos seus poemas, nas suas correntes filosóficas ou na arena, tal como notou Catherine Edwards (2007: 11): “Roman descriptions of deaths more generally often invite the reader or listener to imagine the scene, to visualize the dying subject, engaged in a final act of self-fashioning, and sometimes, too, to visualize the dead body.” Visualizar o corpo morto: não há decoro com a morte, nem se vê necessidade dele.

Aqui, a morte é um processo que acontece sob os olhos de milhares de pessoas, e o efeito que nelas provoca é mais de excitação do que de aversão. A ideia de morte como algo a ser observado, como um espectáculo edificante, é algo que nos chega por via de variados testemunhos da literatura latina, que atestam a fama e o proveito que um elevado número de sujeitos tiram de eventos tão desconcertantes. Séneca reflecte em variadas ocasiões sobre os jogos romanos93, não sem amiúde vincar a sua posição crítica,

concedendo aos jogos mais prejuízo para o espírito do que qualquer proveito para a alma: acusa os espectáculos e a multidão que neles encontra prazer de serem inaptos e frívolos, a promiscuidade moral que implicam é absolutamente oposta ao asceticismo sem o qual não pode existir sabedoria94.

Futrell (1997:93) nota que o público destas recreações se afirma como sendo leal ao regime e aos cultos da cultura dominante; os jogos romanos reúnem em si a função de coesão da sociedade romana por via do sentimento de pertença corroborado pela participação conjunta neste tipo de eventos:

The amphitheater allowed a very large group of spectators to share in the affirmation of loyalty to central authority, the confirmation of the ruler’s divine nature and his concomitant justification as a ruler, and the identification of the individual with the rest of the community.

93 Cf. Séneca, Cartas a Lucílio, I, 7:2-3.

94 Deste ponto de vista, a acusação de Séneca, baseada na ideia de respeito do indivíduo, é bastante

Apesar de Futrell e Castelli assumirem que existe um lado intrinsecamente sociopolítico neste tipo de diversão, que, nas palavras de Futrell (1997: 46), passa pelo apoio “of the establishment or the maintenance of the status quo”, tal interpretação dos eventos sanguinários acaba por resgatar o entendimento dos jogos da necessidade de ver sangue e morte só por si. E se estes autores assumem que tais práticas se associam também à provocação de terror nos espectadores, para que o imperador possa providenciar uma lição sobre o que acontece a quem se dissocia do regime e da lei instituída95, tal explicação só debilmente explica o carácter popular, a diversidade e imaginação dos eventos sangrentos, dessas execuções que são perpetradas na arena. Se assim não é, como se explica a permanência de tais práticas, como os jogos romanos, por tão prolongado tempo? Se, de facto, tais acções são mais de terror do que de diversão, como se compreende que estes jogos se constituam como um consumo de massas, onde a aversão e a repulsa não têm lugar?

Não destituindo as restantes funções, a diversidade e o culto dos jogos romanos inserem-se mais no fervor destas práticas de “crimes espectacularizados” do que em qualquer sentimento moral ou político. Existe, aos olhos romanos, algo de genuinamente gratuito e leviano no prazer de ver morrer. E este prazer manifesta-se sobretudo pela variedade de suplícios da arena, que eles testemunham entusiasticamente.

A perspectiva de Castelli vinca sobretudo o carácter judicial de tais execuções ao denominar tais espectáculos como punições. O castigo do condenado depende exclusivamente da sua condição, o tipo de marginal levado à arena determina as variações de espectáculos a que se pode assistir e, simultaneamente, o público que assiste efusivamente à liquidação de determinado ser humano sabe, pelo tipo de morte que lhe é destinado, qual o delito que terá cometido. Os castigos variam substancialmente e em importância, e baseiam-se não apenas na natureza e gravidade do crime, mas também no estatuto social do agressor. Os de estatuto mais elevado escapam aos castigos mais humilhantes e cruéis - espancamentos e flagelações, exposição aos animais, crucificação

95 Nas palavras de Futrell (1997: 47): “More than that, public execution was an exercise in terror.

By making a spectacle out of the suffering and death of the individuals, the ruler emphasized his own power and his own superiority. It was meant to be cruel and unusual to maintain order, the emperor provided an object lesson for the Roman people, a warning about the fate of those who dared to offend the state. Public execution was a tool of a totalitarian government, a public statement about power”.

- enquanto aqueles de condição livre mais humilde ou escravos podem esperar castigos excepcionalmente dolorosos, como a condenação a trabalhos forçados e, muito provavelmente, uma morte ignominiosa96. Esclarecedor disto mesmo é a afirmação de G. Boissier em La fin du paganisme (1891: 354-355), quando refere:

Il y avait des écoles publiques de cruauté où toute la population devait être éduquée. Je parle du grand massacre d’hommes avec qui le peuple a été cité en exemple lors de fêtes publiques. Il y voyait du sang couler, un plaisir difficile à vivre une fois devenu coutume.

No contexto da pax romana em que surgem os jogos de violência, o prazer com a carne humana está perfeitamente instalado. O Império tem recursos infindáveis para alimentar um gosto tão grotesco. A eliminação de sujeitos é útil ao entretenimento do gosto romano e sobretudo é necessária à manutenção do Império, pois há a necessidade de eliminar presos e criminosos, aos milhares, que advêm das mais recentes conquistas, o que se explica não só por uma cultura bélica97 sustentada por escravos e prisioneiros de guerra, mas também pelo surgimento de uma nova religião, ou seja, o surgimento do cristianismo, sendo uma ameaça à estabilidade romana, transforma-se também numa fonte de condenados da arena.

96 Nas palavras de Castelli (2004: 39): Punishments varied both in substance and in significance,

and they were based not only on the nature and severity of the crime but also on the status of the offender. Those of higher status could escape the more humiliating and cruel punishments – beatings and floggings, exposure to the beasts, crucifixion – while those of the lowly free status and slave status could anticipate exceptionally painful punishments, condemnation to hard labor, and most likely an ignominious death.

97 Rome was, in its origins, a militaristic society. The Roman was no longer required to serve on

the front lines. He could perhaps now find the emotional equivalent of actual warfare at the arena. The blood, the dust, the death, the gladiators dressed like foreign nationals: the games were war at its best and offered no real risk to the individual spectator. The utility of the blood-spattered example in promoting discipline for the common good seems to have been consciously realized by the Romans themselves (Futrell, 1997: 49).

4. Especificidades do sistema governativo que alteram o paradigma das