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Capítulo IV O Mártir como Performer: Relação do discurso e atitudes do mártir

2. Os protagonistas da arena

Os protagonistas dos jogos têm duas naturezas distintas: a primeira classe de mortos da arena corresponde a sujeitos que se dedicam a uma vida de jogos, indivíduos livres que se aplicam como atletas a treinar e a combater nos jogos de sangue. Assim é por exemplo nas lutas de gladiadores, com alguns gladiadores livres86, ou com os bestiarii87,

84 Nas venationes são exibidos animais selvagens vindos sobretudo do território romano

conquistado em África. Os animais utilizados são sobretudo grandes felinos como leões, leopardos e panteras, mas existe registo também de rinocerontes, girafas, avestruzes, hipopótamos, elefantes e crocodilos na arena. O número de animais em jogos romanos é impressionante: no ano de 107, por ocasião da celebração da vitória de Trajano na Dácia, em 123 dias os jogos dispuseram de 11 000 animais e 10 000 gladiadores.

85 As lutas entre mulheres aconteceriam em menor número do que os combates entre homens.

Apesar de terem existido, é também em menor número que se verificam as lutas entre mulheres e animais.

86 Existem os gladiadores que se davam como voluntários para essas lutas, perdendo a liberdade,

para tentar ganhar o que lhes permitisse pagar as dívidas que tinham contraído.

87 Existem duas categorias de bestiarii: os condenados à morte por exposição a animais e os que

fazem da luta com animais a sua profissão voluntária. É deste último caso que nos fala Cipriano na sua

o nome dado aos homens que combatem contra animais ferozes no anfiteatro ou no circo. Na sua Epistola ad Donatum (I-7), Cipriano refere-se a este género de espectáculos que não acontecem por punição:

O homem é abatido para que o homem seja gratificado, e a habilidade de matar é um exercício e uma arte. O crime não é apenas cometido, mas é ensinado. O que pode ser mais desumano - o que pode ser mais repulsivo? Investe em treinos para adquirir o poder de assassinar, e a perpetração do crime é a sua glória. Que estado de coisas, pergunto-vos, pode ser este em que os homens, que ninguém condenou, homens de idade madura, suficientemente belos e bem vestidos com roupas caras, se oferecem aos animais selvagens? Homens vivos são adornados para uma morte voluntária; Homens miseráveis gabam-se das suas próprias misérias.

Lutam com animais, não por condenação, mas pela sua loucura. Os pais olham para os seus próprios filhos; (...) E ao olhar para cenas tão espantosas e tão ímpias e tão mortíferas, eles não parecem estar cientes de que são parricidas com os olhos.

Cipriano critica esse gosto romano pelo sangue de sujeitos que, por vontade própria, se predispõem diariamente ao confronto com a morte, fazendo dele profissão88. No excerto citado é sobretudo relevante o convívio do olhar com tais espectáculos excêntricos, que corresponde a uma vontade de desafiar a morte diariamente por livre e espontânea vontade. Tal exemplo de jogos apresenta-se como sendo absolutamente gratuito, sem outra função que não o mero entretenimento.

À concessão de tal luxo extraordinário, composto por sangue de animais exóticos e de homens entregues à matança, associa-se a segunda classe de vítimas do anfiteatro: os criminosos e marginais condenados à arena, cujas penas são tão diversas, tortuosas e

88 Há vasta literatura sobre a prática e sistema de formação de gladiadores, e existe mesmo registo

de elementos da elite romana que se empenharam no treino e nos combates na arena, facto que terá levado à proibição de que os estratos sociais mais elevados abraçassem tal actividade, pois as práticas da arena devem ser desempenhadas pelos indivíduos de baixa condição.

cruéis quanto a imaginação conceba. É aqui que encontramos os mártires cristãos que, sendo cristãos, são criminosos.

O juízo e, sobretudo, a tortura de um réu é um espectáculo público grato ao povo romano. A cidade inteira junta-se para satisfazer a sua vontade de espectáculos. Estes homens que morrem na arena perante os olhos de todos correspondem ao vastíssimo número de criminosos que é necessário castigar e eliminar, apresentando-se o evento público dos jogos como uma excelente ocasião de propaganda do regime e do poder instituído. Nestas circunstâncias, as gentes que morrem na arena são infractoras. Estes participantes dos jogos são sobretudo escolhidos pelo sistema judicial, os criminosos são sentenciados aos ludi e à arena. Assim, as vítimas do sistema tornam-se efectiva e literalmente as suas vítimas mais apreciadas, tal como nota Futrell (1997:190), “victims of the system thus quite literally became its victim”.

O poder do sacrifício humano na arena funciona como símbolo de Roma na guerra, e é evidente e necessário, pois age como padrão que encoraja e estabelece a identidade de grupo89. A propósito da dinâmica e interpretação das acções da arena, diz ainda Castelli (2004: 107), “they provided spatial, performative and symbolic idioms for defining, articulating and reinscribing social identities and hierarchies” ou, nas palavras de Futrell (1997: 209), “the arena was the embodiment of the empire”.

A tortura é procedimento corrente aplicado aos réus para que confessem os seus crimes. As descrições mais espectaculares das execuções na arena mais espectaculares chegam até aos nossos dias preservadas nos documentos em estudo nesta investigação: é nas actas dos mártires cristãos e nas palavras dos Padres da Igreja que temos as melhores provas das acções destes amantes do sofrimento. Vejamos por exemplo as palavras de C. Gallina, em Los mártires de los tres primeros siglos (1944: 60-63), que concedem uma descrição esclarecedora do tipo de suplícios reservados a condenados cristãos que podemos encontrar em contexto romano:

El instrumento típico de la tortura era el caballete, a cuyos espasmos se asociaban otras especies de sufrimiento. Las torturas

89 “The spectacles served the public good as well as the interests of roman center. Here was public

pleasure as cruel as law and order, here was the new balance a working sociopolitical order” (Futrell, 1997:213).

en el caballete, por su crueldad y dolor, solían compararse a los suplicios supremos, y si había alguna diferencia consistía en que las torturas se aplicaban antes de la sentencia y los suplicios después (...). Al arbitrio del juez tal evento se prolongaba por más o menos tiempo, tanta tortura a veces durante horas y cuando a intervalos se daba una nueva vuelta en la rueda se seguía un nuevo y más fuerte estiramiento. Pero esto todavía era poco pues aflojados los tornillos y bajado del caballete el paciente, lo suspendían horizontalmente debajo del mismo o lo atacaban por las manos a barrotes o ganchos con el fin de hacer entrar en acción otros tormentos. Y entonces se aplicaban los peines de hierro, en forma de garra felina, con que se le desgarrar el pecho y la espalda; y los ejes ardientes, compuestos de materiales inflamables como estopa, cera y pez, o de ticiones resinosas; los hierros rojos, las tablas relucientes y las tiras incendiadas con plomo derretido que, con crueldad, derramaban lentamente sobre las partes más delicadas del cuerpo, como sobre el pecho y el vientre.

As acções sobre os condenados são de facto impressionantes, enumera-as também Séneca (Cartas a Lucílio, 14.5), as “cruzes, cavaletes, ganchos, o pau que atravessa todo o corpo e acaba por sair pela boca, os carros lançados em direcções opostas que despedaçam os membros (....) e tudo o mais que a crueldade foi capaz de inventar”... E quanto mais se avança por entre as palavras, actas judiciais e os escritos dos Padres da Igreja, mais impressionantes suplícios se dão a conhecer: o condenado pode ser atirado às feras, (como foi o caso de Inácio de Antioquia)90, lançado à fogueira (como o foi São Policarpo)91 ou decapitado (como aconteceu com Santa Felicidade)92, entre outras variações como as que descreve também Castelli (2004: 39):

90 Santo Inácio de Antioquia terá sido condenado às feras por Trajano. Nas sua Epístola aos

Romanos refere-se à sua pena de morte na famosa expressão: "Trigo de Cristo, moído nos dentes das feras".

91 A acta de São Policarpo data do século II e descreve o modo como o mártir, condenado sob

poder de Herodes pelas suas práticas cristãs, se dirige prontamente para a fogueira que o faz arder.

92 A acta de Santa Felicidade data do século II e descreve o processo judicial que leva a mártir à

morte por decapitação, juntamente com os seus sete filhos. Felicidade é condenada à morte pelo imperador Antonino. A pena por decapitação é reservada aos condenados de alta condição, tal como Felicidade, que

Capital punishments in particular could take a wide diversity of particularly cruel forms. One could be thrown to the beasts, set afire, forced to drink molten lead, crucified, beaten to death, sewn into a sack with a number of animals and drowned, burled from the Tarpeion Rock, condemned to became a gladiator, and so on.