• Nenhum resultado encontrado

Capítulo XI – ORLAN: Mártir da Imagem

8. ORLAN e a negação da dor

A estética de ORLAN é sobre a carne, mas não é sobre a dor. A artista não pretende exibir ao máximo as suas potencialidades conciliadoras entre estética e dor, antes pretende praticar acções aparentemente dolorosas sem sentir qualquer espécie de sofrimento, facto que, na realidade, parece ser um reflexo dos efeitos do martírio nos condenados cristãos: no martírio, o aconchego na dor verifica-se ao ponto de os mártires se comportarem, em situações excruciantes, de acordo com uma absoluta ausência de dor. Só assim produzem discursos, discutem as suas penas, e empregam cânticos de enaltecimento da sua fé. E, na realidade, talvez os mártires sejam tomados como heróis da dor, porque é o que as descrições dos seus súplicos, por terceiros, narram. Mas, se

atentarmos no conteúdo das descrições do comportamento dos mártires, de facto não encontramos neles um sentimento doloroso. Os mártires revelam antes um perfeito bem- estar na situação de suplício, e anseiam permanecer o máximo de tempo possível mergulhados nas dores que lhes aplicam (que, na verdade, parecem não sentir). Deste modo, podemos questionar: quem sente dor, serão estes mártires? Ou aqueles que testemunham, de forma mais distanciada, o flagelo dos seus suplícios?

A dor é sempre uma dúvida para quem não a sente. A dor é algo que não pode ser confirmado, mas também não pode ser negado. Ao longo da obra Body in Pain (1985: 13), Elaine Scarry argumenta: “To have pain is to have certainty; to hear about pain is to have doubt”, ou seja, não há linguagem para a dor, além de um meio fragmentário de verbalização. Assim sendo, só na ausência de dor se produzem os longos discursos dos mártires no anfiteatro. A dor que transparece das Actas localiza-se na sensação do leitor perante as descrições das torturas dos mártires, mas a sua atitude não traduz, na realidade, um comportamento de dor. Ainda assim, as narrações dos martírios dedicam-se sobretudo às descrições dos suplícios dolorosos, criando imagens de corpos mutilados e lacerados que não deixam de contrastar, no entanto, com a profunda alegria do cristão na arena. A fé é o anestésico possível para esses condenados fiéis a Cristo, uma anestesia absolutamente eficaz nos seus efeitos. La réincarnation de sainte ORLAN é composta das mesmas premissas, mas a sua anestesia é composta por químicos.

A ausência de dor na artista transforma em absoluto a sua performance. Contudo, as acções cirúrgicas que promove como performance, como espectáculos a ver, exibem elementos que suscitam a dor, por identificação, no público que assiste. Não é possível à audiência de ORLAN não se arrepiar com as imagens do seu corpo aberto, ou da sua pele ensanguentada. A performer, conforme foi já descrito, está desperta e consciente e investe na sua performance com órgãos e músculos a descoberto. Se tivesse tido dor, seguindo o raciocínio de Scarry, ORLAN não poderia ter lido textos, poemas, ou ter respondido às transmissões por satélite no Centro Pompidou ou no Centro de Toronto durante a sua obra La réincarnation de sainte ORLAN. Não poderia ter feito mais nada senão concentrar-se na dor, e tentar livrar-se dela. Então, estar resguardada de toda e qualquer dor é a primeira premissa da performer para se submeter às operações. A autenticidade da cirurgia é perturbadora. ORLAN comenta que, assim que vemos um corpo aberto, é quase impossível o público não se identificar com ele. No corpo que vê ser operado, o público não se liberta da ideia de vitimização do sujeito ali em questão. No entanto, segundo a

perspectiva de ORLAN, um corpo aberto não é sinónimo de dor, na verdade, é realmente ao seu público que dói quando observa as imagens da artista nas suas performances- cirurgias177.

A negação da dor é, até certo ponto, uma negação do corpo físico. Na ausência de dor, ORLAN está a investir num corpo pós-humano, que reage em circunstâncias que lhe são nefastas e dolorosas – tal como os mártires no martírio. Nas performances La réincarnation de sainte ORLAN existe uma dissociação entre o corpo que é matéria biológica e o corpo em performance. Por outro lado, na pretensão de se afastar da dor física, ao experimentar um corpo que, perante as atrocidades, não sofre, ORLAN aproxima-se ainda mais da ideia de mártir: tanto ORLAN como qualquer dos mártires analisados na presente investigação estão em circunstância de dor, mas exibem um discurso, um bem-estar, e uma atitude que é comparável ao mesmo corpo anestesiado da artista nas suas performances, que se coaduna com o gozo dessa circunstância. A coerência do discurso (que, segundo Scarry, é a primeira coisa a desaparecer em situações dolorosas), e a vitalidade com que mártires/ORLAN se dão a conhecer ao seu público, são os mesmos. O público da performer e o público dos mártires, ambos se encontram em situações simétricas – imaginando a acção penosa perpetrada no corpo da artista/ dos mártires, não se conseguem dissociar da ideia de sofrimento que o quadro performativo (do martírio e da cirurgia-performance) exibe, apesar da atitude daqueles que a sofrem ser em absoluto estranha (não conforme ao estádio de dor).

As performances-cirurgias de ORLAN aconteceram ao vivo, em directo e com público presente. Contudo ORLAN também registou esses eventos em filmes. Apreciar as performances desta artista em vídeo tem um impacto no espectador necessariamente diferente do impacto que a experiência tem num público ao vivo. A dimensão fílmica para o trabalho, no entanto, oferece a ORLAN a oportunidade de falar a partir da posição de um corpo em performance, e de espectador. Sobre as suas performances-cirurgias, a artista diz que apenas sentiu dor como espectadora dos filmes das suas operações, e nunca como performer cujo corpo estava a ser intervencionado.

As performances de ORLAN interrogam noções de presença e ausência, e os limites da representação do corpo material através da dor e da performance –

performances que podem ser comparadas com a forma utilizada pelos mártires na averiguação, afirmação e consolidação da sua fé. É na fisicalidade, dos mártires e da performer, que se verifica a sua relação com o mundo, no modo como ambos utilizam o corpo como matéria de expressão extremada daquilo que os move.

O corpo material na dor é uma confirmação da sua corporeidade, estar com dor é talvez a certeza mais segura da existência de um indivíduo. Para os mártires, a existência do corpo está em absoluto associada à criação de imagens de dor, em semelhança a Jesus Cristo, para que consigam alcançar uma existência superior, a divina. Em ORLAN, o corpo que existe é a matéria da sua identidade artística e, apesar de reclamar a ausência de sofrimento nos exercícios que pratica, não consegue, por todos os motivos já descritos e declarados, não ser tomada como uma mártir da sua arte, uma vez que a sua estética se confunde com os princípios do martírio na sua relação com a carne, com o corpo, com o sujeito e com a dor.

Na realidade, o trabalho das performances-cirurgias de ORLAN é uma actualização do sentido e da precepção da ideia de mártir dentro do contexto artístico. As suas acções podem ser interpretadas à luz dos princípios martirológicos e, apesar de ORLAN se afirmar acerrimamente contra a religião e contra a Igreja Católica, a sua obra aproxima-a, muito mais do que desejaria, da conduta dos mártires em situação de martírio. ORLAN institui-se, assim, como um dos exemplos da memória dos martírios que se expressa em matéria artística, e revela a relação que as suas performances estabelecem com esse evento que se inaugura como proto-performance da linha artística em que surgem ORLAN e as suas obras.