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As memórias religiosas no contexto da performance: o Martírio Cristão como

Capítulo VII – O Martírio como uma estética da morte

5. As memórias religiosas no contexto da performance: o Martírio Cristão como

A performance é sempre lida à luz da cultura que a produz e por tal razão é passível de nela identificar parte da memória religiosa que lhe pertence. É por isto que a performance alcança a sua exibição e apreciação da dor e do corpo em sofrimento por via da convocação de imagens, episódios e símbolos cristãos, que se relacionam com o padecimento de Cristo. Só assim a performance se torna efectiva no tipo de transformações que pretende concretizar no seu público, e nos seus performers.

A eficácia da leitura da performance e seus efeitos está directamente associada ao tipo de referências que convoca nas suas acções. Na nossa cultura, um corpo em chaga é, quase sempre, o corpo de Cristo, a Paixão cristã. O imaginário cristão está presente nas produções de body-art. E, por sua vez, este tipo de expressão performativa lida intrinsecamente com questões de identidade como matéria prima – a identidade pessoal do performer e a identidade cultural em que se insere que, conforme foi já descrito, se manifesta de modo propositado ou acidental no tipo de imagens que confere ao objecto performativo. Assim o pratica Marina Abramovic nas suas performances quando afirma que a dor é como uma porta, uma passagem, e que tem de se seguir, através do sofrimento, até esse outro lugar155, precisamente os mesmos critérios de qualquer mártir cristão em situação de martírio. Daniel Tércio (2010: 99), afirma: na performance contemporânea, apresentar a ferida, a pele marcada, o sangue ou algumas porções de material orgânico coloca o corpo de novo (desde o martírio, acrescento eu) no centro da criação artística.

Nos objectos performativos de body-art, o corpo pode ser entendido como um corpo que expõe os discursos ideológicos e culturais que o produzem. Assim, não raras vezes, temos o ritual do martírio convocado e abordado em inúmeras performances deste género de expressão. As performances praticam as referências do martírio não apenas formalmente, procuram alcançar o mesmo tipo de efeitos superadores da fisicalidade do corpo, e investem numa relação particular com o seu público. É frequente a revisitação artística de elementos da religião cristã nas performances que deram origem ao

movimento de body-art, como é o caso das exposições performativas de Gina Pane em La Prière des Pauvres e Le Corps des Saints (1989/90), de Orlan em La Réincarnation de Sainte Orlan (1990), e as apresentações já bastante referidas de Marina Abramovic Lips of Thomas (1975). Não raras vezes estas performers tomam a imagem de Cristo, ou de um mártir, como leitmotiv das suas obras: a dor e o sofrimento do corpo, as representações de santos inspiram as interpretações que as suas performances convocam nos espectadores. Aplicam referências que se aliam à mortificação da carne, à reincarnação e à transubstanciação do cristianismo. São simbologias e temáticas que ocorrem com frequência nas suas performances, manifestando a herança cultural na sua expressão artística.

A exibição da dor como espectáculo a ver é a circunstância que torna especial o martírio como proto-performance da body-art. Claro está que, sobretudo no domínio do martírio cristão, o suportar da dor insere-se num domínio religioso e ritualístico que nem sempre é procurado pelos exemplos de body-art performance contemporâneos.

É a performance de um tipo de dor particular que reúne mártires e body-art performers, pois o tipo de experiências dolorosas que vivem e exibem são substancialmente diversas da dor comum: a posição de uma pessoa que é torturada, que está em situação de doença, ou de alguém que se encontra no gabinete de um dentista é, em muitos sentidos, diferente da daquele sujeito que experiencia a dor num contexto ritualístico ou artístico como no caso dos mártires/ performers. Dois aspectos demonstram as diferenças substanciais para tais tipos de dor: o primeiro prende-se com a duração da experiência dolorosa, o segundo com o controlo do sujeito que protagoniza esse sofrimento.

A dor é necessária, de modo prolongado e intensivo, em termos ritualísticos/artísticos. Tal facto prende-se com o propósito da dor - a aproximação do indivíduo de alguma força divinamente intuída, ou de algum propósito artístico superior. Só assim se opera a alteração de estados e a transformação do sujeito, a ascendência a uma presença diversa daquela que o indivíduo possui naturalmente, só assim se conclui a proposta estética156, enfim, a transformação.

É na experiência dolorosa, capaz de anular o indivíduo, conciliada com a persistência deste em aguentar tal dor de modo extremado, que se encontra a experiência ascética, mística, mágica. Gera grande atracção um indivíduo que se prepara tão afincadamente, como o mártir/ performer, para o suplício da dor. A sua atitude de perseverança, fruto de um grande trabalho de preparação, é absolutamente magnético. Estar perante um mártir/performer é estar perante um super-humano, que reage contranaturalmente àquilo que o afecta.

A ausência de dor é “a presença do mundo, a presença de dor é a ausência do mundo”, nas palavras de Scarry em Body in Pain, the making and unmaking of the world: o suplício doloroso destrói o mundo físico, a aspiração à dor total confere o caminho de acesso a novos mundos, não terrenos. É na prática destes “novos mundos” que encontramos os mártires cristãos e os consequentes performers que dão a ver ao seu público o corpo em sofrimento, mais por recreação e por pretensão artística, do que por alguma missão espiritual. Abrigam-se sob o tema da religião e dos mártires que os inspiram para configurarem as suas performances como novos martírios, e os artistas que as concretizam como novos mártires, mártires por uma causa, a arte.

A tríade “ritual”, “performance” e “body-art” é constituída por termos que têm a capacidade de se reunir sob o evento do martírio cristão. Investir na ideia de martírio como proto-performance da body-art performance é participar na preservação da memória do martírio por via de um discurso que celebra o sofrimento nas suas formas mais extremas: o sofrimento sofrido ao serviço de uma ideia e / ou uma identidade comunal, o sofrimento concretizado e sofrido de bom grado ou, talvez com mais precisão, através da sublimação da vontade de um à vontade de outro; sofrimento que requer uma audiência e uma interpretação. Todas estas dinâmicas de relação dificilmente se apropriam do nosso bom-senso, é com dificuldade que retiramos o véu da ética, da moral e do decoro para recebermos em plenitude tal discurso. Contudo, ainda assim, o sofrimento é, de facto, na presente investigação, o espectáculo a ver.