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Capítulo XI – ORLAN: Mártir da Imagem

5. La réincarnation de Sainte Orlan e o universo do Martírio Cristão

Agora que está já descrito, de modo geral, o percurso estético e artístico de ORLAN e, de modo específico, a sua performance La réincarnation de Sainte Orlan, vejamos de que modo se acomoda a performer à investigação que a A Síndrome de Alípio tem vindo a desenvolver: que relação estabelece ORLAN, e a performance La réincarnation de Sainte Orlan em particular, com a problemática dos mártires e do martírio dos primeiros séculos do cristianismo?

Especialmente a performance La réincarnation de Sainte Orlan estipula a convocação inequívoca do martírio cristão e da vida dos santos mártires da nossa era. Analise-se o título da obra, La réincarnation de Sainte Orlan, que reúne em si duas ideias diferentes: a ideia de reencarnação e a ideia de santidade. Tal como a performer sabe, a reencarnação institui-se contra a Igreja Católica169, ao mesmo tempo que se confunde

com alguma facilidade com a ideia de ressurreição. Contudo, reencarnação170 e ressurreição171 não poderiam ser mais diferentes, sendo apenas a segunda via aquela que

é aceite e promovida pela ideia de martírio, pois é a ressurreição que confere a santidade ao martirizado172. Contudo, ORLAN forja a ideia de santidade na reencarnação: a artista coloca uma Santa, ela própria, Santa ORLAN, no centro de uma operação onde o martírio é evidentemente convocado como motor da sua performance a partir do qual, paradoxalmente, faz reencarnar (e não ressuscitar) ORLAN – ela própria – para uma nova vida, num corpo diferente.

169 Com excepção do cristianismo esotérico, a teoria da reencarnação é rejeitada pelas práticas

cristãs, sendo que a Igreja Católica rejeita a reencarnação.

170 A reencarnação consiste no acto de reassumir a forma humana, implica a entrada de uma alma

num corpo que não era aquele que ocupava numa existência anterior, acção que se associa à crença da passagem da alma humana, após a morte de um corpo, para outro corpo.

171 A ressurreição, sobretudo a Ressurreição de Cristo, é um dos princípios do cristianismo e

consiste no acto de voltar à vida, no mesmo corpo, depois de ter perecido. É o acto de uma pessoa, considerada morta, viver novamente, ressurgir. É a reencarnação espiritual do indivíduo no mesmo corpo.

172 Esta ressurreição não é propriamente efectiva, como no exemplo de Cristo. A ideia de

ressurreição no martírio não se associa exactamente ao regresso à vida na terra do sujeito martirizado, mas antes se refere a uma ressurreição celeste deste, junto a Deus, uma segunda vida com o Senhor, que é aliás considerada a verdadeira vida. Para o mártir é necessária a via do sofrimento para chegar a essa vida na paz do Senhor.

A reencarnação de ORLAN serve-lhe precisamente para significar o seu ressurgimento a partir de novas carnes – as suas, mas alteradas – trasladando a ideia de reencarnação para a ideia de “corpo modificado cirurgicamente”. Assim, depois das operações, porque passa a habitar um corpo substancialmente diferente daquele que ocupava anteriormente, ORLAN reencarna. A acção/transformação que denomina como Reencarnação de Santa ORLAN, impregna essa performance cirúrgica da ideia de atribuição de uma vida nova num corpo diferente à protagonista da operação. Por via da cirurgia estética, que podemos denominar cirurgia por recreação173, ORLAN produz uma declaração radical sobre as possibilidades da prática cirúrgica não só como material artístico, mas como via para alcançar uma vida outra num corpo diferente – a real reencarnação dos nossos dias à distância de umas tesouras, uns cortes e uns pontos bem dados. Neste contexto clínico, que desafia os conceitos do catolicismo, ORLAN concebe a sua arte a partir da extrapolação do seu próprio corpo, exibindo a manipulação das suas carnes como a sua obra, a sua performance.

Se a ideia de reencarnação, neste exercício, está já suficientemente explicada, onde encontra a performer a sua ideia de santidade, associada a este processo? Que Santa é esta, que se dá a conhecer em A Reencarnação de Santa ORLAN?

Recordemos a ideia de mártir, como forma de ser testemunha de uma crença ou uma ideia irrefutável, passível de levar à morte quem a ela não renuncie e a defenda acerrimamente. Lembremos também os mártires que, em circunstância de julgamento, nunca cedem aos interrogatórios infindáveis, cujas respostas adicionam mais torturas dos seus carrascos. Revivamos também o seu público, que não abdica de admirar os suplícios dos mártires na pretensão de testemunhar a transformação dos corpos dos condenados até à ascensão à outra vida que proclamam: em La réincarnation de Sainte ORLAN, ORLAN é uma mártir da imagem. Os vídeos existentes do conjunto das suas cirurgias- performances permitem ver, ao pormenor, a intrusão de agulhas, pinças e tesouras no seu corpo, a manipulação da sua carne, vê-se o corpo da artista a ser mutilado, cortado, rearranjado, cosido e reformulado ao sabor de esguichos de sangue, algodão embebido em betadine e suturas médicas.

173 Denomino como cirurgia de recreação toda a prática de cirurgia plástica meramente estética,

cuja finalidade não se prende com qualquer necessidade clínica, mas meramente por capricho do sujeito que pretende “corrigir” elementos que, segundo os seus padrões de beleza, podem ser aprimorados.

Na arena de ORLAN, a maca de operações, vislumbram-se os médicos como carrascos, e os seus utensílios como instrumentos de tortura. Aqui o interrogatório não se prende com a averiguação da fé da performer, mas antes com o verificar da estética que a própria proclama como arte. Não tem um verdugo que a coloque inevitavelmente naquela situação, mas é a artista que, iniludivelmente, se lança para esta experiência – lembrando de resto todos os mártires que se lançaram espontaneamente para as fogueiras, prescindindo de qualquer acusação ou acto de condenação. O propósito desses mártires, tanto quanto de ORLAN, está para lá de qualquer processo inquisitório – prende-se com uma missão maior, de santidade, que comprove aquilo que são, mártires das suas convicções – religiosas, no caso dos mártires, estéticas e artísticas no caso de ORLAN. Por sua vez, a atitude de ORLAN reflecte a situação do mártir, que ali se encontra na ausência de dor, a recitar textos e poemas à medida que se dá a sua transformação, à medida que ascende a uma outra condição.

A performance La réincarnation de sainte ORLAN levanta questões do domínio do cristianismo que se prendem com a transubstanciação da carne e a ressurreição do sujeito. A performer concretiza a transubstanciação da sua carne ao transformar-se numa obra de arte, indo além da substância concreta que é o seu corpo. ORLAN pratica operações que reconfiguram a sua carne, modifica a sua aparência física, e ressuscita do bloco de operações para uma nova vida que será vivida por um corpo renascido, recuperado de uma vivência antiga, onde a artista encaixa o tema da reencarnação de modo inusitado, conforme já foi explicado.