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A mudança de perfil: consolidação da indústria cultural

RADIODIFUSÃO NA REALIDADENACIONAL

4. IMPLANTAÇÃO NO BRASIL

4.2 O pioneirismo do rádio

4.2.2 A mudança de perfil: consolidação da indústria cultural

A abertura de uma nova frente de atuação do sistema radiofônico transforma totalmente seu objetivo inicial. De estratégia militar e passando por mecanismos de integração o rádio adquire o formato que o caracterizará definitivamente e que, mais adiante, caracterizará todo o sistema de comunicação de massa. Há consenso entre os analistas do rádio como veículo de comunicação que o grande marco de transformação de sua estrutura foi o decreto de número 21.111 de 1º de Março de 1932. Dentre outras deliberações ele apresentou as diretrizes para a introdução da publicidade na programação, como referendado pelo artigo 73:

Durante a execução de programas é permitida a propaganda comercial, por meio de dissertações proferidas da maneira concisa, clara e convincente à apreciação dos ouvintes, observadas as seguintes condições: a) o tempo destinado ao conjunto dessas dissertações não poderá ser superior a dez por cento (10%) do

tempo total de irradiação de cada programa; b) cada dissertação durará no máximo 30 (trinta) segundos.23

Atrelado ao princípio do mercado, seu principal objetivo agora será a integração com vistas ao consumo, ou seja, do trabalho em torno do convencimento de uma massa de supostos futuros compradores. Assim como em qualquer cultura, não é a exposição pura e simples dos artefatos que garante o êxito de sua utilização, mas da criação de necessidade em torno destes artefatos. Neste caso, no que concerne aos veículos de comunicação, além da divulgação em massa das mercadorias, lhe foi destinado o papel de “inserir” no público a vontade e o desejo que possam garantir a sua aquisição:

O rádio e o jornal, por certo, incumbiram-se, junto com o sistema informal de comunicação, de levar ao conhecimento dessas pessoas incorporadas ao sistema de consumo os produtos que eram postos no mercado. De um lado, fizeram com que as massas urbanas conhecessem novos produtos e, do outro, alargaram o seu consumo. (CAPARELLI: 1986, 83)

A mudança de comportamento visa à aceitação de novos valores em detrimento dos anteriores. Este é o papel da publicidade e, por conseqüência, do rádio exercendo a publicidade, ou seja, o auxílio à criação de uma cultura de massa para o consumo.

A introdução da publicidade altera significativamente não apenas a programação, mas também a própria organização interna das entidades. Até então as emissoras, por caracterizarem-se como entidades amadoras, se organizavam em termos administrativos da mesma forma. Os novos contratos a serem estabelecidos com os patrocinadores reforçam a necessidade de departamentos específicos, como o financeiro e o de publicidade. À medida que os contratos surgem as emissoras se estruturam como empresas privadas, principalmente no tocante à contratação de mão de obra especializada para todos os setores da “produção”, o que inclui, naturalmente, artistas, produtores e apresentadores.

23

GURGUEIRA, F. “Integração Nacional pelas Ondas: o rádio no Estado Novo”. Dissertação de Mestrado. Departamento de História / FFLCH: Universidade de São Paulo (USP), 1995. In (SOUSA: 2004, 12-13).

Caracterizadas desta maneira, as mensagens sonoras do rádio podem, no nosso entendimento, ser denominadas como mercadoria, integrando-se assim na concepção ampla que forma a relação capitalista de produção. Esta lógica se coaduna ao que já expusemos aqui acerca dos paradigmas apresentados pelos críticos, principalmente sob o ponto de vista de Adorno e Horkheimer.

Como qualquer mercadoria, sua reprodução em larga escala requer, em contrapartida, um consumo também em larga escala para a efetivação do processo. Por sua peculiaridade – a transmissão de mensagens sonoras –, e atrelado aos incentivos na fabricação de aparelhos receptores24, o rádio passa a alcançar uma massa marginalizada em termos da influência dos veículos de comunicação, propiciando a ampliação no índice de consumidores. Este processo logo foi percebido pelos empresários ávidos por divulgar os seus produtos, principalmente no tocante ao caráter “democrático” apresentado.

O rádio comercial e a popularização do veículo implicaram a criação de um elo entre o indivíduo e a coletividade, mostrando-se capaz não apenas de vender produtos e ditar ‘modas’, como também de mobilizar massas, levando-as a uma participação ativa na vida nacional. Os progressos da industrialização ampliaram o mercado consumidor, criando as condições para a padronização de gostos, crenças e valores25.

Inserido no contexto do livre mercado, o rádio atravessa um processo de adequação às regras que estruturam o capitalismo. Sérgio Caparelli ressalta a diferença existente entre o modelo brasileiro, que passa a se organizar sob as normas da livre iniciativa, com o europeu, caracterizado pela proibição à publicidade. Segundo Caparelli, enquanto o modelo europeu previa um pagamento do indivíduo pela mensagem recebida, o brasileiro, em função do contrato com o patrocinador, insere este custo na mercadoria, ou seja, no consumo que o receptor virá a realizar. (CAPARELLI: 1986, 83). Sendo assim, as empresas de rádio estabelecem, por conseqüência, uma concorrência pelos anunciantes e pelos profissionais que podem ser decisivos no processo.

24

Nélia Bianco afirma que o surgimento das válvulas, em substituição ao sistema de galena, barateia o custo da produção, facilitando o acesso das camadas populares. (BIANCO: 1999, 186-187)

25

MIRANDA, Orlando. “A era do rádio”. Nosso Século, Abril Cultural, p.72. In (ORTRIWANO: 1985, 19)

A profissionalização passou a ser a marca registrada dessa fase. Se na década de 20 não havia um quadro de funcionários fixo e remunerado, agora era necessário criar um cast profissional. Contratar os melhores cantores, redatores, atores, músicos e animadores, disputá-los com as concorrentes oferecendo-lhes melhores salários e fama. A improvisação que marcava os programas seria substituída pela organização profissional. (BIANCO: 1999, 187)

Este novo cenário, motivado pela importância da publicidade, propicia o surgimento de agências publicitárias que terão a incumbência de criar as propagandas a serem veiculadas. E é justamente esta conjuntura que irá proporcionar o surgimento do que Caparelli considera como “A grande publicidade”, ou seja, a consolidação das agências estrangeiras no Brasil para a divulgação dos produtos relacionados às corporações norte-americanas. Segundo Lia Calabre, entre o final da década de 1920 e início de 1930, ocorre uma expansão neste setor, tendo como precursoras as empresas Thompson e a Mc Cann – Erickson. Afirma ainda que estes dois segmentos – das agências norte-americanas e do setor radiofônico – entrelaçaram-se e desenvolveram-se juntos. (CALABRE: 2002, 14)

A nova realidade comercial fez com que o rádio inaugurasse uma transformação na programação visando à ampliação do alcance das mensagens. Como o objetivo passa a ser o aumento da audiência com vistas à satisfação dos patrocinadores, a programação ganha um perfil popular, relacionado diretamente com a cultura específica desta grande camada da população. As áreas de esporte, humor, música e a radionovela constituem uma variedade na programação diária voltada essencialmente para o lazer e a diversão. O rádio se constitui, assim, em mecanismo de entretenimento, alterando o perfil antes estabelecido na fase amadora.

A introdução de mensagens comerciais transfigura imediatamente o rádio: o que era ‘erudito’, ‘educativo’, ‘cultural’ passa a transformar-se em ‘popular’, voltado ao lazer e a diversão. O comércio e a indústria forçam os programadores a mudar de linha: para atingir o público, os ‘reclames’ não podiam interromper concertos, mas passaram a pontilhar entre execuções de música popular, horários humorísticos e outras atrações que foram surgindo e passaram a dominar a programação. (ORTRIWANO: 1985, 15)

A efetivação desta programação diversificada contou com a ampliação de profissionais da comunicação, treinados exclusivamente para este fim. Os locutores, humoristas, apresentadores e artistas contratados ganham grande inserção no público ouvinte e o seu trabalho passa a ser determinante para o sucesso dos programas criados e, por conseguinte, da projeção dos produtos que os patrocinam.

Por este motivo, o rádio propicia o que aqui denominaremos personalismo, ou seja, a projeção de indivíduos junto ao público ouvinte. Este fenômeno ocorre de tal maneira que o personagem que representam ou as opiniões que emitem têm grande significado, facilitando assim a aquisição da fama. Ao estabelecer vínculos entre estas personalidades e o produto a ser comercializado, a perspectiva de sucesso é iminente. E este vínculo pode ser estabelecido tanto de forma indireta, com a inserção de reclames nos intervalos, como de forma direta, com a criação de programas que levam o nome do patrocinador.

Existiam fortes ligações entre a produção da programação das emissoras e o mercado, como pode ser observado nos sugestivos nomes dos programas irradiados, tais como Rádio Almanaque Kolinos, Acontecimento Aristolino, Repórter Esso ou Cancioneiro Royal (CALABRE: 2002, 29)

Outra estratégia adotada no intuito de popularizar a programação foi a criação de programas de auditório. Eram programas que contavam com a participação do público e, segundo Calabre, o significado foi tão expressivo que diversas emissoras, sedentas por esta fatia de “público-ouvinte”, ampliaram os auditórios, cobrando inclusive ingressos para os interessados em acompanhar o programa. (CALABRE: 2002, 27). Ver ao vivo aquilo que até então apenas se ouvia, além de poder estar perto dos famosos artistas, forma os combustíveis necessários para o sucesso deste novo entretenimento.

Em suma, a passagem para o rádio comercial pressupõe também a passagem de um mecanismo elitista, representado pelas sociedades educadoras, para um mecanismo popular, de massa, vinculado aos ditames do mercado e, portanto, com vistas ao consumo. No sentido dado por Macdonald isto representa, como vimos, a instauração de uma estrutura cultural claramente alienada e, portanto, controlada pelos interesses privados. No

entanto, a nosso ver – e à luz da realidade brasileira, isto representa antes uma forma de ampliação das possibilidades da massa da população frente aos instrumentos de informação. É certo que as mensagens, configuradas como mercadoria, têm, como vimos, o fim do lucro, mas é importante ressaltar que tais mensagens também “informam” o sujeito, contribuindo para seu estabelecimento social.

Esta função de organização social evidencia-se ainda mais claramente se analisada dentro do horizonte político. Nele, o papel dos veículos de comunicação é fundamental se pensado pela ótica da condição que o indivíduo inserido na massa terá para participar do processo, principalmente nos regimes democráticos. Porém, mesmo sob uma organização política de cunho mais “fechado”, como é o caso das ditaduras que se instauraram no Brasil, os sistemas de comunicação, em especial a radiodifusão, foram fundamentais para seu processo de legitimação.

Como relatamos anteriormente, é no bojo dos movimentos deflagrados a partir da década de 1920 que o rádio torna-se objeto de cobiça dos grupos políticos. O veículo, que já havia experimentado uma ação política direta durante o processo eleitoral de 1930 se transforma, como veremos, em importante suporte para os conflitos estabelecidos durante a Revolução Constitucionalista.