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A mudança paradigmática no pensamento: do mito à razão

Um dos mais imponentes fatos históricos que pode exemplificar com efetivo significado a dimensão abrangida pela ocorrência de uma mudança paradigmática foi a radical transformação ocorrida no pensamento quando da passagem de uma lógica mental mítica para uma lógica racional. Este processo implicou num denso movimento que mobilizou estruturas solidificadas de compreensão da realidade e formas alicerçadas de entendimento do mundo. É notório que a implementação de uma alteração profunda numa determinada visão do contexto abrangente não prevalece senão quando um conjunto de fatores contribui para esta transformação. Quando ocorre, essa associação complexa de fenômenos encorpa uma guinada capaz de alterar um determinado rumo estabelecido.

O salto ocorrido com o advento da forma racional de compreensão em substituição da mentalidade mítica denota uma gestação de novos tempos que se escorava numa dinâmica

acontecimentos inerentes a esse período de transição foram paulatinamente forjando uma outra realidade cultural e econômica que não mais trilharia os antigos moldes até então estabelecidos. Esse poderoso deslocamento de foco foi determinante para a construção de uma outra civilização que passou a fundamentar seus conhecimentos, valores e conceitos em concepções de cunho reflexivo e desligado das elaborações míticas.

O centro gerador e irradiador desta mudança paradigmática, que realizou uma trajetória epistemológica que transitou do mito até a razão, foi a Grécia, civilização que teve o seu apogeu no denominado período clássico (séculos V e IV a. C.) e cuja influência está impregnada no mundo ocidental até os dias atuais. Na gênese do pensamento racional grego estavam sendo cunhadas a filosofia e o incipiente conhecimento científico. Porém, a demonstração da força do arcabouço mítico está na constatação de que, ao menos na fase inicial, tanto a filosofia quanto a ciência ainda elaboravam os seus postulados contendo alguns resquícios da perspectiva apoiada na herança advinda do mito. Alguns dos fatores que explicam essa persistência inicial são: a crença na interferência do sobrenatural, o respeito que se cultivava pelos valores da tradição e a consideração pelos antepassados.

A crença nos mitos definia a visão coletiva julgando que, sob o talante da influência do fator destino, praticamente todas as forças e as ações estavam previamente determinadas. Nesta lógica, não havia espaço de atuação para o exercício do livre arbítrio e as decisões estavam definitivamente condicionadas pelos inquestionáveis poderes dos deuses. Porém, em que pesem essas limitações atreladas à dependência da vontade divina, a noção de virtude que presidia as atuações, principalmente as praticadas pelos heróis, não era abalada e nem sofria nenhuma forma de desmerecimento. A disposição firme do guerreiro belo e bom em aceitar sua missão deveria suplantar as vaidades temporais vivenciadas pelos homens considerados comuns.

Aranha (1986) tomando posição sobre a lógica do pensamento mítico afirma o seguinte:

Como todo o real é interpretado através do mito, e sendo a consciência mítica uma consciência comunitária, o homem primitivo desempenha papéis que o distanciam de si como sujeito propriamente dito. A decorrência desse coletivismo é o dogmatismo: a consciência mítica é ingênua, desprovida de problematização e supõe a aceitação tácita dos mitos e das prescrições dos rituais (ARANHA, 1986, p.24).

Portanto, sendo o mito uma forma fantasiosa de entender a realidade e uma potência determinante para a interpretação que o homem primitivo fazia do mundo concreto, seus componentes conceituais permaneceram impregnados nessa cultura durante um considerável período. Ao longo do tempo, porém, a efervescência de alguns elementos produziu mudanças conjunturais e processos comunitários diversificados que lançaram novos pilares sobre os quais os sujeitos e os agrupamentos sociais embasaram suas interações, negociações e relações existências. A aceitação passiva e a sujeição ingênua, procedimentos típicos da atmosfera mítica, não prevaleceriam e não mais seriam os balizadores que monitorariam a ação dos homens e dos grupos.

Dentre as novidades que emergiram no contexto da sociedade grega, que implicaram as esferas sociais, culturais, econômicas e políticas, e culminaram numa profunda mudança paradigmática, podem ser mencionadas: a pólis, a escrita, a lei e a moeda. Esses fatores compõem o conjunto de circunstâncias que favoreceu o aperfeiçoamento desta civilização. É relevante salientar também que todos esses aspectos foram cunhados na dinâmica do pensamento reflexivo, base epistemológica que se coloca em contraposição à crença mítica. A reflexão, cujo significado é pensar o já pensado, não se coaduna com o modelo mítico de leitura da realidade, pois, nesta modalidade não cabe o dissenso e a abordagem fantasiosa responde comodamente aos anseios coletivos. Por outro lado, no âmbito da estrutura racional, não é possível a ocorrência dos raciocínios lógicos a não ser na circunscrição da conduta reflexiva (ARANHA, 1986).

O nascimento das cidades gregas, as pólis, foi determinante para o advento do pensamento reflexivo por diversos motivos. Num determinado aspecto, pode ser destacado o espaço originado pelo estabelecimento da praça pública para a realização dos debates. Esses verdadeiros fóruns de discussão, que pairavam acima das decisões que pautavam a defesa dos interesses particulares dos grupos privilegiados, abrangiam os dilemas que alcançavam os problemas de interesse comum. Assim, a praça, situada no centro da polis, era um tipo de agência democratizadora da participação social e oferecia oportunidade à voz dos cidadãos comuns, que procuram argumentar acerca das intenções e dos objetivos comunitários.

É nesse contexto que se situa a gênese da política. Inicialmente, mediante a possibilidade gerada pela oportunidade do posicionamento argumentativo através do uso da

coletiva, atitude intrínseca ao modelo mítico de interpretação do mundo. Com os novos tempos, o sujeito estava usufruindo da abertura de colocar a sua própria leitura da realidade e fazer florescer a sua personalidade individual. Este nascedouro da individualidade não significou uma alienação do agrupamento comunitário, mas uma afirmação da subjetividade no tratamento das questões coletivas e na construção da sua historicidade.

Cotrim (1991), estabelecendo um contraponto entre o conhecimento racional ou filosófico e o conhecimento mítico, apresenta o primeiro como um tipo especial de sabedoria, surgido do uso metódico do pensamento, da investigação demonstrativa e da busca do saber. Ele afirma:

O mito é um sistema de explicação fantasioso do mundo, expresso em narrativas fabulosas referentes aos deuses, forças da natureza e seres humanos. Ao contrário do mito, o saber filosófico procurava explicar o mundo por princípios racionais. A Filosofia preocupava-se com o desenvolvimento de raciocínios lógicos, tendo como finalidade desvendar as relações de causas e efeitos entre as coisas. O mito, por outro lado, tem um conteúdo explicativo que não busca convencer a consciência racional do homem (COTRIM, 1991, p.17).

A cidade, portanto, aninhou e nutriu uma série de alterações fundamentais ocorridas na civilização grega, em especial, os movimentos que convulsionaram a sociedade na passagem do governo estabelecido pelo conhecimento mítico para a forma de pensamento racional e filosófica. Nessa mudança paradigmática, que engendrou uma nova visão de mundo, deve ser salientado o surgimento da democracia, cuja melhor representação se alojada nos debates políticos travados na praça pública. Estes momentos compartilhados entre os homens não mais estavam na dependência de fatores como nascimento, privilégios, hierarquias ou riquezas, mas na condição participativa do cidadão que passou a gozar do direito de se expressar e defender suas posições.

Outro fator considerável neste processo de transformação foi a escrita. Esta construção abstrata, embora carregasse nos primeiros tempos um caráter sagrado e fosse restrita às autoridades religiosas e políticas, foi progressivamente se laicizando e se multiplicando. Essa mudança encontrou terreno propício na sociedade grega, que obteve dos fenícios este ganho cultural. Desembarcando no continente grego, já praticamente dessacralizada, a escrita torna- se popular e os registros, que antes eram reservados apenas aos privilegiados, podem ser

consultados, alterados e submetidos ao crivo da discussão. Esta abertura para a utilização da escrita numa atmosfera permissiva projetou uma promissora perspectiva para a condição cognitiva dos indivíduos.

Se antes os rituais sagrados estabeleciam uma veneração intocável e indiscutível para com os dados escritos, com os novos rumos trazidos pela mudança de paradigma uma antes impensável condição crítica passa a ser estimulada com relação aos registros. Os textos passam a ser disponibilizados para as ponderações alheias e as produções são submetidas aos questionamentos dos diferentes pontos de vista. Esse ambiente de criticidade, que passou a envolver os procedimentos afetos ao fenômeno da escrita, alavancou o estabelecimento de uma atitude mais preocupada do escritor quando da elaboração dos seus apontamentos, tendo em vista que os mesmos seriam confrontados em público com outras idéias.

Um dos resultados dessa nova caminhada cognitiva, proporcionada pela diferente configuração no tratamento das atividades vinculadas à escrita, é a transformação da própria forma de pensamento. A exigência de um maior rigor no trabalho de escrituração suscita uma postura diferenciada do cidadão da polis. Em decorrência, as estruturas mentais são mobilizadas com um grau diferente de rigorosidade para dar conta das demandas culturais, racionais, filosóficas e políticas da sociedade urbana emergente. Esse esforço culminará em uma alteração da condição intelectual deste sujeito citadino, pois, servirá como um estímulo para o desempenho do equipamento cerebral na produção do conhecimento e em situações de emulação nas questões referentes ao saber.

Sobre os novos efeitos gerados pelo advento de um diferente padrão de escrita, incorporado numa dimensão leiga, despojado de esoterismos e, ao mesmo tempo, vinculado aos princípios da problematização, Aranha (1986) afirma:

A escrita gera uma nova idade mental, fixando a palavra e, consequentemente, o mundo, para além daquele que a proferiu. A escrita exige do próprio autor uma postura diferente, pois nunca se escreve como se fala. Além disso, a retomada posterior do que foi escrito e o exame pelos outros, não só de contemporâneos mas de outras gerações, abrem os horizontes do pensamento, propiciando o distanciamento do vivido, o confronto das idéias, a ampliação da crítica (ARANHA, 1986, p.33).

Resultante desse processo de laicização e, consequentemente, de uma maior amplitude na aplicabilidade da escrita, se deu o advento da lei. Ou seja, as reformas legais ocorridas na Grécia seguiam as transformações que floresciam em diversos outros setores sociais, mantendo uma conexão especial com o desenvolvimento do fenômeno da escrita. A codificação dos preceitos legais e das normas de convivência numa forma de registro escrito referendou um novo marco na administração e no controle da vida comunitária. Além disso, a vantagem trazida pela fixação da palavra normatizadora se situava na possibilidade de uma rejeição aos ditames legais não convencionados em grupo e inaugurados pela vontade dos que se julgavam acima da lei.

Esta escalada percorrida pela lei para atingir a sua forma cada vez mais humanizada se consolidou num processo de rompimento com o arcabouço hegemônico representado pelo pensamento mítico e pela crença no sobrenatural. Este patamar inicial instaurou um modelo legislativo que se apoiava na arbitrariedade das autoridades aristocráticas e nos infalíveis desígnios divinos. Estes parâmetros, longe de serem questionados, eram aceitos resignadamente pelos habitantes da pólis. Porém, a nova ordem legal proposta é fundada no ideal de igualdade e formulada com base no princípio de que as normas deveriam ser comuns a todos os homens e as regras não teriam vigência e ascendência apenas sobre um grupo.

Se nesse novo desenho do sistema jurídico a lei deveria valer para todos os membros da sociedade, por outro lado, as normas estabelecidas não deveriam perdurar indefinidamente, sob o risco de se tornarem obsoletas e revitalizarem privilégios já anteriormente superados. As mudanças propostas neste âmbito estavam alinhadas com um novo senso de justiça que se distanciava do molde hierárquico e se adequava a um aspecto vinculado à idéia de imparcialidade. Nesse sentido, as leis eram examinadas e debatidas e não se posicionavam numa situação incólume aos efeitos da modificação. Ou seja, a possibilidade de alteração do corpo legal era um fator que proporcionava a preservação da atualidade da lei e, ao mesmo tempo, corroborava e dava credibilidade ao princípio nascente de democracia.

No aspecto econômico, a pólis se destaca como um agrupamento urbano que produzia praticamente os bens básicos para a subsistência dos seus cidadãos. A manutenção das necessidades da comunidade se encontrava garantida com os recursos resultantes das suas atividades laborais. No entanto, com o desenvolvimento do comércio e o intercâmbio mercantil estabelecido com os outros povos, novas demandas foram surgindo no sentido de

otimizar os negócios e os empreendimentos. É nesse contexto de acirrado contato comercial que surgiu a moeda como instrumento de mediação nas compras e vendas realizadas. Esta invenção racional tipifica com propriedade o nível diferenciado de abstração que a comunidade grega havia atingido. Portanto, a criação da moeda não se refere apenas à confecção de um objeto de utilização financeira, mas ao emprego da capacidade racional no estabelecimento de uma convenção coletiva.

Chalita (2002) assim sintetiza a evolução da civilização grega neste percurso de mudança paradigmática do pensamento e da cultura:

Durante séculos, ainda na Antiguidade, questionou-se a primazia da Grécia, na elaboração dessa nova forma de pensamento. Apesar disso, e ainda que a discussão permaneça aberta e subordinada a avanços de estudos, pesquisas e descobertas arqueológicas na área da História antiga, todos os historiadores concordam em afirmar que a civilização grega foi a primeira a elaborar uma forma de pensamento que se desvincula das explicações míticas e religiosas e parte para a investigação científica e racional do princípio e da natureza das coisas, constituindo uma disciplina independente da religião (CHALITA, 2002, p. 10).

1.4 A mudança paradigmática na ciência: do Modelo Clássico para o