• Nenhum resultado encontrado

2.4 – A NÃO-ÉTICA DA GUERRA, A COLONIALIDADE DO SER

A colonialidade do ser referencia a experiência vivida da colonização e as suas consequências em relação às subjetividades formadas através da violência e da dominação. Pode-se afirmar que, em Pele negra, máscaras brancas e Os Condenados da Terra, Fanon nos oferece uma análise acerca das expressões existenciais da colonialidade do ser, a descrição fenomenológica do encontro traumático entre o sujeito racializado e o sujeito universal, ou seja, o sujeito europeu. A descrição fenomenológica feita por Fanon e o artigo Sobre a colonialidade do ser: contribuições para o desenvolvimento de um conceito, de Nelson Maldonado-Torres, me serviram de guias pelo debate estabelecido entre a ontologia europeia e a perspectiva do ser subalterno.

Para poder falar de ontologia desde a perspectiva europeia, é fundamental sondar a pesquisa do filósofo alemão Martin Heidegger. Heidegger é tido como um dos mais importantes pensadores do século XX. Sua ontologia, filosofia do ser, é um ataque frontal à filosofia moderna ancorada na produção epistemológica (cogito, ergo sum). Segundo o

88

pensador alemão, a máxima cartesiana representa uma inversão de prioridades da epistemologia ocidental - a ênfase garantida ao pensar em relação ao ser (PENSO, logo existo). Sua proposta de subversão filosófica concentra-se na segunda metade da formulação (penso, logo EXISTO). Para o autor, a metafísica ocidental falhou ao conceber o ser em termos de divindade, configurando uma onto-teologia. Ele propõe que o ponto de partida acerca das reflexões sobre o ser não seja mais deus, a razão, nem mesmo os conceitos degastados pela filosofia ocidental de homem, sujeito ou ser. Em O Ser e o Tempo (1927), Heidegger propõe o Dasein (ser-aí) como ponto de partida para uma filosofia ontológica. Para ele, entre todos os entes que habitam o mundo, o único para quem a pergunta sobre o ser faz sentido é o ser humano. Nesse sentido, o Dasein aparece como uma figura que, apesar de condicionada pelo passado, pela história, é capaz de projetar-se em direção ao futuro. De acordo com Maldonado-Torres, é um conceito que parece referir-se a uma individualidade presa em uma figura anônima coletiva, o Um (das Man). A problematização acerca das formas possíveis para o Dasein se relacionar consigo mesmo e projetar suas possibilidades, libertando-se do Um e atingindo certa autenticidade, é a questão central do filósofo alemão. Para Heidegger, a autenticidade só pode ser alcançada na antecipação e na ansiedade em relação à Morte, o encontro a que nenhum ser humano pode furtar-se. Assim, a Morte se apresenta como fator individualizador singular e sua antecipação é a oportunidade para que o Dasein defina seu próprio projeto de existência, escapando aos condicionantes históricos (MALDONADO-TORRES, 2007).

Nelson Maldonado-Torres nos mostra que a máxima cartesiana também esconde certa relação de colonialidade. Penso, logo existo deixa subentendido uma negação ontológica em relação à alteridade. É a diferença cartesiana entre res cogitans (coisa pensante) e res extensa (matéria) – expressa na dualidade corpo/mente e precedida pela diferença colonial fundada na experiência antropológica entre ego conquistador e ego conquistado, a diferença existente entre sujeitos e objetos, que embasa a conclusão de que “se os outros não pensam (ou não pensam como eu), não devem existir”. Foi assim que a epistemologia ocidental marcou não somente a natureza, mas outros povos e civilizações como dispensáveis, descartáveis. Foi assim que o ceticismo misantrópico resultante da dominação colonial condicionou o ceticismo cartesiano.

Dussel sugiere esta idea: “El 'bárbaro' era el contexto obligatorio de toda reflexión sobre la subjetividad, la razón, el cogito” (1996, p.133). Pero, tal contexto no estaba definido solamente por la existencia del bárbaro, más bien, el bárbaro había adquirido nuevas connotaciones en la modernidad. El bárbaro era ahora un sujeto racializado. Y lo que caracterizaba esta racialización era un cuestionamiento radical

89 o una sospecha permanente sobre la humanidad del sujeto en cuestión. Así, la “certidumbre” sobre la empresa colonial y el fundamento del ego conquiro quedan anclados, como el cogito cartesiano, en la duda o el escepticismo. El escepticismo se convierte en el medio para alcanzar certidumbre y proveer una fundación sólida al sujeto moderno. El rol del escepticismo es central para la modernidad europea. Y así como el ego conquiro antecede al ego cogito, un cierto tipo de escepticismo sobre la humanidad de los sub-otros colonizados y racializados sirve como fondo a las certidumbres cartesianas y su método de duda hiperbólica. Así, pues, antes que el escepticismo metódico cartesiano (el procedimiento que introdujo la figura del genio maligno) se hiciera central para las concepciones modernas del yo y del mundo, había otro tipo de escepticismo en la modernidad que ya era constitutivo al sujeto moderno. En vez de la actitud metódica que lleva al ego cogito, esta forma de escepticismo define la actitud que sostiene al ego conquiro u hombre imperial. Siguiendo la interpretación fanoniana del colonialismo como una realidad maniquea, la relación fundamental de tal maniqueísmo con la misantropía, como indica Lewis Gordon, caracterizaría esta actitud como un maniqueísmo misantrópico racista/imperial, el cual también puede entenderse de forma más simples como actitud imperial (MALDONADO-TORRES, 2007, p.133-134).

Partindo do maniqueísmo misantrópico racista, da atitude imperial, é possível afirmar que o comportamento dos europeus em relação aos povos escravizados e conquistados se assemelhou mais ao comportamento tolerado apenas durante os tempos de guerra do que à ética que regulava as relações sociais entre os cristãos europeus. É por isso que Maldonado- Torres afirma a modernidade enquanto um paradigma da guerra. As relações inter-étnicas são reguladas pela não-ética da guerra. O racismo moderno e a colonialidade são a radicalização e a naturalização dessa não-ética a que estamos nos referindo. Servem para manter a ordem construída pela naturalização da conquista e da colonização. Nas palavras de Maldonado- Torres: “Lo que ocurrió en las Américas no fue sólo la aplicación de esa ética, sino una transformación y naturalización de la no-ética de la guerra, llevada hasta el punto de producir una realidad definida por la condena” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 138).

Maldonado-Torres também enfatiza que, no mundo moderno/colonial, apenas para o homem branco o encontro com a Morte é um evento excepcional. Se o conceito de sujeito é problemático, não é apenas por se tratar de um conceito metafísico relacionado à capacidade de cálculo do sujeito moderno, mas porque faz olvidar que a modernidade não contém em si um modelo singular de ser-humano, o que ela contém são, antes, relações de poder que criaram um mundo de senhores e escravos. A Morte é o cotidiano dos povos colonizados, dos sujeitos racializados. Longe de ser um fator individualizador, a Morte é um fenômeno constitutivo de sua realidade diária. Morte e violação estão inscritas nos corpos dos condenados (em francês damnés, em referência ao livro de Fanon, Os Condenados da Terra). A postura de Heiddeger encarna a afirmação de Fanon “Aos olhos do branco, o negro não tem resistência ontológica” (FANON, 2008, p.104). Assim como Maldonado-Torres e antes dele, Fanon, concluo que, no mundo da guerra, ontologia é maniqueísmo. Passamos a entender a

90

invisibilização e a desumanização como as expressões primárias da colonialidade do ser, como violação do sentido da alteridade humana. A experiência amerikkkana nos conta que a modernidade foi o espaço-tempo em que o alter-ego transformou-se em sub-alter(no) (MALDONADO-TORRES, 2007).

Desde a amérikkka, o problema central da ontologia deixa de ser a autenticidade narcisista e passa a ser a naturalização da guerra. A naturalização da indiferença frente à violação e à morte do diferente. Nas palavras de Maldonado-Torres:

Los cuerpos negros son vistos como excesivamente violentos y eróticos, tanto como recipientes legítimos de violencia excesiva, erótica y de otras formas. “Ser muerto” y “ser violada/o” son parte de su esencia – entendida de forma fenomenológica. La “esencia” de lo negro, en un mundo colonial anti-negro, es parte de un contexto de sentido más amplio, en el cual la no-ética de la guerra se transforma gradualmente en una parte constitutiva de un supuesto mundo normal. En sus connotaciones raciales y coloniales, lo negro es una invención, tanto como una proyección del cuerpo social orientado por la no-ética de la guerra. El cuerpo social asesino y violador proyecta las características que lo definen a unos sub-otros, para así poder justificar como respuesta el mismo comportamiento contra ellos. Las mismas ideas que inspiran actos inhumanos en la guerra, particularmente, la esclavitud, el asesinato y la violación, son legitimadas en la modernidad, a través de la idea de raza, y dichos actos son gradualmente vistos como normales, en gran medida gracias a la alegada obviedad y al carácter no problemático de la esclavitud negra y el racismo anti-negro. Negros, indígenas, y otros sujetos “de color”, son los que sufren de forma preferencial los actos viciosos del sistema (MALDONADO-TORRES, 2007, p.149).

A partir da modernidade, pode-se reconhecer três tipos de diferenças relativas aos “seres” e fundamentais à compreensão das relações inter-raciais e da supremacia branca no mundo moderno/colonial: a diferença ontológica (entre os entes e o ser), a diferença transontológica (entre o ser e o que está além do ser) e a diferença sub-ontológica (entre o ser e o damné, o condenado). A diferença sub-ontológica é um conceito muito próximo ao da diferença colonial de Mignolo, ambos relacionam-se com o poder. O primeiro enfatiza o papel do poder na produção do ser, o segundo na produção de uma geopolítica do conhecimento. A diferença sub-ontológica é a diferença que se reproduz quando insistimos em adotar a guerra e a subalternização como paradigma social. As subjetividades racializadas a partir do paradigma da guerra, a partir da diferença sub-ontológica, compreendem o mundo a partir da coexistência de pelo menos dois campos simbólicos sobrepostos: o imposto pela colonialidade e o anterior, doravante, subalternizado. É o caráter pluri-tópico das subjetividades colonizadas que leva Mignolo a afirmar a busca por uma epistemologia de fronteira ancorada em traduções. É a diversidade das experiências de colonização, a heterogeneidade das subjetividades mestiças, que leva o autor a afirmar a diversidade como projeto universal. A superação das diferenças colonial e sub-ontológica não significa um

91

relativismo cultural e tampouco a criação de outro universal abstrato. É, antes, a existência de totalidades distintas interconectadas entre si através do diálogo entre projetos que, apesar de historicamente e epistemologicamente distintos, carregam algo de similar porque fundamentados no combate à colonialidade, no conflito entre as diversas cosmologias e a cosmologia ocidental (MIGNOLO, 2002).

Por sua vez, a diferença trans-ontológica aponta para a mais fundamental das relações humanas, a alteridade. Maldonado-Torres busca no filósofo judeu Levinas e no latino- americano Dussel as premissas para reclamar o restabelecimento da relação trans-ontológica na base das interações sociais (MALDONADO-TORRES, 2007). Segundo Levinas, quando encontramos a ontologia no fundamento da filosofia, a alteridade é secundarizada e abre espaço para que a Morte apareça como elemento central na busca de uma autenticidade narcisista. Porém, ao encararmos nossa finitude para além do ego moderno, percebemos que a nossa subjetividade, a nossa razão e o nosso próprio ser existem apenas em função de um momento trans-ontológico. É a traição deste momento que leva o ser a afirmar-se como fundamento da realidade - ocultando a relação trans-ontológica, o ser renuncia à justiça e à responsabilidade radical sobre a realidade compartilhada. Ao transformar a relação trans- ontológica em relação sub-ontológica, a modernidade materializou o abandono radical do significado de ser-humano. Parimos um mundo estruturado sobre a ausência de reconhecimento ontológico da maior parte da humanidade, parimos um mundo onde a cor da pele é sinônimo de pobreza, de criminalização e de morte precoce. Frente ao sofrimento e à violação repetida dos corpos “de cor”, a indiferença e o distanciamento dos administradores “brancos”. Nas palavras de Maldonado-Torres:

La guerra es el opuesto de la relación an-árquica de absoluta responsabilidad por el Otro, que da nacimiento a la subjetividad humana. La guerra de conquista y dominación no es sólo guerra contra un pueblo cualquiera, sino también guerra contra ese Otro que llama a la responsabilidad. A su vez, la obliteración de lo trans- ontológico, a través de la indiferencia ante otros seres humanos y de la violencia, cria el terreno ideal para la guerra. En la modernidad occidental, estos elementos – guerra, violencia/violación e indiferencia – se conjugan perfectamente a través de la idea de raza. De aquí el significado preciso de la colonialidad del ser: la traición radical de lo trans-ontológico en la formación de un mundo donde la ética de la guerra es naturalizada por medio de la idea de raza (MALDONADO-TORRES, 2007, p.155).

Se é a naturalização da não-ética da guerra que, por um lado, animaliza os brancos e, pelo outro, mata e mutila os negros, índios e mestiços, é um apelo por sua subversão o que se escuta nos gritos dos excluídos. É do corpo racializado e subalternizado, objeto preferido da violência moderna, que sai o chamado para o diálogo, para o restabelecimento do Ser através

92

de uma epistemologia trans-moderna, pluri-versalista, fundada sobre a primazia das relações trans-ontológicas. Assim sendo, o objetivo central aos projetos de descolonização e des-gener- ação (o desmonte das relações orientadas pelas diferenças entre gênero) é a superação radical do paradigma da guerra. Em última análise, são formas de existir que não se ancoram na ansiedade em relação à Morte, mas na visão do corpo como abertura radical ao Outro e no escândalo frente à Morte e à violação dos corpos assujeitados. Para o autor, no mundo moderno/colonial, Re-existir é a práxis da subversão ética necessária para o restabelecimento da Liberdade e do Ser.