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6.3 Construção cotidiana do feminino e maternidade

6.3.2 A não maternidade

“Fica evidente que a recusa feminina à maternidade, não importando os motivos, causava e, ainda causa, um certo espanto e questionamento”. (VASQUES, 2014) A maternidade apresenta diferentes faces, diferentes significados em diversos contextos. Mas é importante entender como as mulheres subjetivaram este valor e fizeram suas escolhas, construindo novas histórias, menos atraídas pelo ideal de mulher-mãe e pelo cotidiano doméstico.

A construção discursiva de que toda mulher deve desejar a maternidade e amar seu filho incondicionalmente está presente no imaginário coletivo. Contudo, algo inerente à condição feminina (VAZQUEZ, 2014b) vem sendo questionado. As experiências femininas produzem novos significados. Mulheres optam pela não maternidade, negando-a enquanto única condição de ser mulher.

Aparecem interessantes justificativas sobre a escolha da não maternidade, fundamentadas nas histórias de vida de cada mulher, como se pode notar a seguir.

“Eu conheci a pessoa com quem eu casei, e foi assim até interessante quando eu conheci. Acho que você já sabe da história, e a pessoa que eu conheci já me veio com uma família formada, não é, assim, ele já tinha separado, já tinha três filhos, eu não tinha filhos e nem pensava em ter filhos quando eu o conheci. Ai conhecemos, moramos um tempo juntos, depois oficializamos o casamento, depois... estamos aí num período de vinte e oito anos casados... e o tempo passa, não é, estamos aí num período de vinte e oito anos juntos. (...) E assim, nesse período todo que... desde que eu vim para Belo Horizonte mesmo, eu já tinha meus vinte e quatro anos, eu já... eu já... acho que tanto aquela experiência tanto que eu vivenciei, de dificuldades, assim, porque querendo ou não querendo, no interior a vida era mais difícil, eu tive uma infância assim mais... mais... como que eu digo, assim... mais batalhadora mesmo. Minha mãe era servente escolar, meu pai era... era caminhoneiro, então minha mãe ela que sempre sustentava mais assim... mais a parte mesmo assim de ser mãe, se dedicava mais a essa parte. Então assim veio aquele período todo, escola, ensino especial, veio a minha escola, e veio todo esse trabalho com criança, e eu vivenciava muito isso, mas isso não foi um fator de eu ter assim pensado em não ter filhos. Aí o que que eu pensei... o que que eu pensava da maternidade, que eu queria mesmo talvez me dedicar a minha carreira, ter minha independência financeira, eu queria assim, ser mais eu. Eu pensava, como eu te falo de eu pensar muito no amanhã, eu falava assim ‘ah meu Deus, se eu separo eu não vou dar conta mesmo de

trabalhar e de me dedicar aos filhos, sem ter muito que..’. Hoje tem as leis, tem tudo, mas anteriormente não tinha tanto isso, então era muita responsabilidade, e isso tudo me vinha em pensamentos. Mas eu... pra te falar a verdade, quando eu conheci meu marido, assim, aí que eu acho que veio me confirmar tudo isso, porque eu não ficava o tempo todo pensando se eu ia ou não ter filhos, nunca pensei... foi assim uma consequência da vida e que foi mesmo... foi um projeto natural, muito natural, hora nenhuma eu parei debaixo do travesseiro para pensar sobre eu não ter, se eu fiz a escolha certa, ou não fiz, não teve isso... eu não tive, hora nenhuma, isso aí eu te falo assim de coração” (C 16 – casada, 52 anos).

Mesmo sem ter refletido para tomar a decisão de não ter filhos, é apresentado aqui o seu não desejo pela maternidade. Para a colaboradora, filho não faz parte do seu projeto devida, dos seus planos. Sua prioridade foi investir na formação, realizar-se profissionalmente, ou seja, a maternidade nunca esteve presente ou foi considerada como perspectiva ou possibilidade. Ela assegura que, embora tenha trabalhado com crianças, não pensou em ter ou não filhos, que a não maternidade foi um processo natural e muito tranquilo. Ao propor em um estudo a questão da escolha da maternidade, Smeha e Calvano (2009) encontraram respostas subjetivas que agruparam como decididas e indecisas. Importa aqui sua análise de que muitas mulheres não se identificam com a maternidade, que deixa de ser destino e única forma de realização. Os resultados apontam que a mulher encontra outras fontes de satisfação, uma vez que a maternidade deixa de ser a única conquista, ela tem outras chances, pois passa a ser reconhecida pelo seu trabalho, ou seja, ao fazer suas escolhas, torna- se protagonista de sua vida.

Para algumas mulheres, a não maternidade não está atrelada a alguma experiência traumática ou ruim de outras mulheres, mas fundada no próprio desejo ou visão de mundo:

“Pois é, essa era uma discussão que eu tinha muito com essa professora minha, que as feministas no geral elas não acreditam em instinto materno, elas são contra essa ideia de que toda mulher é um ser maternal e que existe um tipo de instinto, e que seria o instinto materno. É uma discussão que eu sempre tinha com ela, eu não acho que tenha, por exemplo, assim, eu particularmente eu não acho que seja um instinto materno ou uma coisa que, é... sabe assim... aflore dentro de mim, quando eu vejo um neném... às vezes as pessoas me perguntam: ‘mas você vê, quando você passou na ginecologia, na obstetrícia, você não sentiu vontade de ter neném?’ Eu não acho que, não é vendo um neném assim que eu tenho vontade de ter filho, por exemplo, eu acho que é a ideia de eu ter uma pessoa para compartilhar ideias, para ensinar, para aprender, sabe, eu vejo muito mais assim, essa troca. Porque a minha... eu acho que é a relação com a mãe, né, a gente sempre puxa. A minha relação coma minha mãe é isso, é uma troca, é uma pessoa que me ensine coisas, que eu ensinei coisas, briguei, e a gente não dá certo, e a gente dá... eu acho que isso é tão... é tão benéfico, assim. Eu não me

vejo como uma pessoa que não... não quer ter filhos, mas eu não acho que seja obrigatório uma pessoa também ter filhos, eu não acho que uma mulher que não tem filhos seja uma mulher que não vá ser uma mulher de verdade, assim, toda... não acho. É... eu acho que alguns pontos assim interessantes nesse quesito é porque que as mulheres... por exemplo, assim, eu convivo com muitas mulheres, com alto nível de graduação, pós-graduação, e porque que as mulheres não tem filho? É uma coisa também que a gente sempre discutiu, porque que as mulheres não querem ter filho, agora, nessas posições? Você tá fazendo doutorado, é tão difícil a gente estudar e a gente competir com os homens, entre aspas assim, porque se a gente sai, e chega uma coisa assim, quando você sai, você se ausenta um ano da sua profissão, você não tá mais competitiva, quando você volta, tudo já mudou tanto que um dia tudo muda tão rápido, você perde” (C 15 – solteira, 26 anos).

Embora tenha uma visão positiva da maternidade, acredita-se que nem toda mulher quer ser mãe, que isto não é uma obrigação ou condição de ser mulher. Entende-se que a escolha acontece pelo desejo ou outros motivos, inclusive profissionais, uma vez que nos dias atuais a mulher está competindo no mercado de trabalho.

As razões circunstanciais apresentadas para justificar a não maternidade, aliadas ao não desejo de ser mãe permite uma comparação com a reflexão de que é possível pensar “a possibilidade de uma mulher optar por não ter filhos, uma vez que não existe um instinto inato que a faça desejar a maternidade ou amar incondicionalmente a criança que ela gera” (RIOS; GOMES, 2009, p. 216). Nesse sentido, exemplifica-se a seguir:

Não tive filhos, e aí é uma opção, tem sido, eu sempre falo que a... a minha escolha tá pautada na minha cabeça hoje, porque eu brinco que amanhã eu não sei o que vai ser, mas até hoje sempre foi uma certeza não querer ter filhos, então somos eu e ele, e a minha família ampliada, um dia a dia comum, simples, nada... nada demais. Na verdade eu não sei nem dizer se é uma coisa de opção assim, se tem algum momento da minha vida em que eu disse assim: ‘bom, vou tomar uma decisão e essa decisão é de não ter filhos’, não sei se tem um momento concreto que isso acontece. Mas eu nunca tive na minha história o contrário, o desejo de tê-los, então assim, acho que se eu for pensar a minha infância, por exemplo, é... ela não é recheada de histórias de bonecas, de ser mãe, de filhinho, de cuidado. As minhas opções eram sempre os jogos, o esporte, outros desafios, então eu sempre me via mais envolvida com outros tipos de curiosidades, de inquietações, de vontades do que a da maternidade, a da menina, a da boneca, posso contar no dedo eu acho a quantidade de bonecas que eu tive, ou que eu desejei, acho que não é uma opção, né, de não ter, que em algum momento se deu, não. Acho que é isso assim, nunca fez parte a história de pensar em ter filhos, em ser mãe, e tal. Que é diferente de gostar de crianças, por exemplo, eu gosto, eu me relaciono muito bem, em geral as crianças me procuram, grudam, assim, eu sou tia, sou madrinha, sempre tem uma história boa assim. Mas eu gosto muito da hora que eu devolvo, eu brinco assim, a possibilidade de falar: ‘olha, toma que é teu’, assim, então eu gosto de poder escolher a hora que eu quero, a hora que eu tô

mais disponível, a hora que eu tô com mais vontade de fazer, de brincar, de ir pro chão, de fazer bagunça, de fazer sujeira, de... de curtir, mas eu gosto muito da hora de devolver e de voltar pra minha... pra minha vida, que não tem acho que... nem, pelo menos até agora, espaço para essa construção que talvez fosse uma coisa cotidiana, essa coisa dessa... coisa da maternidade mesmo. (...) É uma decisão individual mesmo, pessoal, esse desejo não existe, não tá no campo do desejo. Eu acho que o desejo da liberdade, o desejo da individualidade, o desejo do tempo só meu, é... talvez seja egoísmo? Uma visão um pouco egoísta diante do mundo? Talvez... não sei o que justifica essa escolha, uma escolha que não passa por medos, nem biológicos, nem sociais, vamos falar assim, mas que tem a ver com uma decisão particular mesmo? Eu, Fulana, mulher, com quarenta e um anos, não desejo... não desejei, e não desejo ter filhos. Mas gosto do cuidar, gosto das crianças, mas no meu tempo, no tempo da minha escolha, no momento em que eu não estou fazendo outras coisas que eu desejo fazer mais do que ter filhos... acho que é isso (C 17- casada, 41 anos).

A emancipação feminina permite à mulher novas possibilidades, garantindo-lhe o direito de decidir sua vida, ter suas próprias escolhas, ser livre para pensar o que quer fazer, o que gosta e o que não gosta. Com autonomia sobre o seu corpo e sua vida, embora o ideal mulher-mãe ainda permeie o imaginário coletivo, muitas mulheres assumem a não maternidade com mais tranquilidade.

Ao reafirmar que a escolha pela não maternidade passa pelo desejo, a narrativa corrobora dados de um estudo que afirma que “a mulher se ressignifica em meio ao pano de fundo das contínuas transformações que têm configurado historicamente sobre seu papel na sociedade” (COLARES; MARTINS, 2016, p. 45).

Para Miranda (2005, p. 83), “a mulher na pós-modernidade, faz questão de usufruir a liberdade, a autonomia, e de escrever o texto da própria vida, podendo dar um sim ou um não à maternidade, ao sabor da sua própria escolha”.

As possibilidades são muitas, assim como as justificativas: a independência financeira pelo trabalho que possibilita sustentar a escolha, o desejo de liberdade, a diminuição da cobrança social e da obrigatoriedade de ser mãe, os medos, as influências sofridas, as perdas não elaboradas, a identificação maternal, a preocupação com a imagem corporal, entre outras coisas podem definir a escolha pela vida sem filhos (SMEHA; CALVANO, 2009; RIOS; GOMES, 2009).

Não ter filhos por escolha, consciente ou inconscientemente, torna-se cada vez mais comum. No mundo inteiro aumenta a ausência voluntária de filhos. Muitas mulheres se questionam se querem ou não ter filhos, contudo descobrem outras experiências além da maternidade (RIOS; GOMES, 2009; BARBOSA; ROCHA-COUTINHO, 2007).

A escolha pela não maternidade permite inferir que as experiências femininas na contemporaneidade são marcadas por novos significados e que “as identidades que estabilizaram o mundo social moderno por meio da fixação de papéis para as mulheres estão em declínio” (PATIAS; BUAES, 2012, p.301).

Embora a maternidade ainda hoje seja incentivada como marca da condição feminina na atenção à saúde, as mulheres têm se posicionado e feito a sua escolha. Elas conquistaram liberdade em seu trajeto histórico e vão decidir sobre seus desejos e seus corpos.