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6.2 As políticas públicas de saúde e o corpo reprodutivo

6.2.2 A maternidade como construção social

“A mulher incompreensível à primeira vista explica-se por sua missão especial, uma e única, embora complexa (...) é que a mulher foi criada para ser mãe...” (GUIMARÃES, 1872).

A legitimação da maternidade como ideal feminino a partir do século XVIII, por um lado garantiu à mulher um lugar de destaque, por outro negou-lhe a possibilidade de escolher se queria ou não ter filhos. O papel de mãe, assim como outros papéis, foram determinados para atender às necessidades e aos valores sociais e, no momento em que a mulheres começaram a buscar emancipação, foram reconduzidas ao papel de mãe. O amor materno, como um sentimento humano, é frágil e imperfeito, entretanto a valorização da maternidade modifica os comportamentos femininos, e as mulheres são convencidas de sua importância como mães, validando assim o interesse do Estado, ou seja, a “produção” de seres humanos (BADINTER, 1985).

As condições em que as mulheres construíram esta “paixão” pela maternidade estão relacionadas ao processo de subjetivação ao qual foram submetidas pelos aparatos ideológicos do poder, ou seja, a maneira pela qual se apropriaram destes valores. A teoria foucaultiana propõe as relações de poder como algo que forma os sujeitos, assim o discurso da maternidade como ideal feminino foi subjetivado pelas mulheres e reproduzido socialmente. Mesmo com a emancipação da mulher, a mudança de valores e os novos papéis ocupados por ela na contemporaneidade fazem-se presente no imaginário coletivo.

“A sociedade cobra, te cobra... e eu acho tão engraçado que as pessoas chegam assim: ‘mas você não tem vontade de adotar, não?’. Até hoje eu ouço isso. Eu falo assim: ‘oh gente, eu tive tanta oportunidade de ter tido’, logicamente eu posso adotar sim, no futuro, não é por uma questão assim de outras situações, agora, não porque eu fiz uma escolha errada, talvez, ou escolher pra fazer isso ou mesmo pra mostrar que eu não fui mãe e agora eu posso ser, não é assim, não é? Mas sou cobrada até hoje, aí tem hora que eu brinco assim...pela família, hoje até que não por causa da idade, hoje eu tô com cinquenta e dois anos, mas até os quarenta e cinco tinha gente falando assim: ‘mas dá tempo, dá tempo, né’. Mas assim, é pela família, porque isso é normal e tal. Aí foi desse jeito, então eu sinto que a gente ainda é muito cobrada, muito cobrada. Aí hoje sabe o que eu respondo? Aí falam assim: ‘ah, mas você tem filhos?’, aonde você vai, ‘você tem filhos?’ ‘Não, por opção’, já respondo assim pra nem assim... pra prolongar talvez, porque parece que choca as pessoas ainda, eu sinto... choca, tem hora que choca. ‘Como não, seu marido adora, faz tudo pra você, faz isso, você ia ser assim... um casal...’. Porque meu marido realmente faz tudo, me dá tudo na mão se eu quiser...(...) Aí então até nas conversas as pessoas: ‘ah, você não é mãe, então você não pode falar, você não conhece...’ esquecem que nós já fomos filhas, já tivemos mãe, então assim é como se fosse um assunto que só interessa mesmo quem é mãe.(...) Vou acrescentar, esses dias eu li um texto que uma amiga minha divulgou no face. Ela questionando... questionando não, ela assim, é... se perguntando porque que as pessoas optam por não ter filhos, sabe, que ela não consegue entender, ela não tem nada contra quem não tem filhos, não, sabe... mas assim, ela falando da importância de ter filhos, e que parece que quem não tem pode deixar uma página em branco na vida, que não deixou... é... como se diz, assim, deixou.... você não vai deixar ninguém com seu nome, ninguém com a sua... com as suas características, é como se fosse uma página em branco, sabe. E que não é nem uma questão de gostar ou não gostar de criança, porque ela até fala isso, porque muita gente fala que não gosta de criança, porque uma coisa ela fala com muita propriedade, e ter ou não ter filho não é uma questão de gostar ou não gostar de criança, se fosse assim eu teria milhões, porque eu trabalhei com tantas crianças e amo crianças. E mesmo porque, que criança, ela passa um período muito rápido, então você não pode não ter filhos e falar que você não gosta de criança, eu achei bacana. Mas ela questiona isso, de ter filhos que você vai deixar um legado na vida, pensando lá na vida, de você não ter deixado nenhum herdeiro, não ter deixado uma pessoa, como se fosse uma página em branco, eu não vejo assim. Eu me vejo uma página muito colorida, todo mundo vai lembrar de mim, daquilo das minhas relações, quem eu fui, o que eu fiz, o que eu fui, o que eu penso, é isso que a gente em que pensar, não é?” (C 16 – casada, 52 anos).

A ideia de continuidade no filho ou mesmo de realização apenas pela maternidade aparece como única possibilidade de uma existência feliz para a mulher. É difícil para muitas pessoas aceitarem que uma mulher escolheu não ter filhos, que ela não tem o desejo de ser mãe, assim criam outras possibilidades como a adoção ou buscam relacionar o fato à infertilidade.

O relato de cobranças pelo fato de não ter filhos, principalmente pela família, é corroborado por estudo que busca entender como as mulheres encaram a maternidade. Os resultados mostram que as entrevistadas afirmam ser cobradas logo após o casamento, mas que aprenderam a lidar com isto (BARBOSA; ROCHA-COUTINHO, 2007). Outro estudo sobre a não maternidade concorda com a existência de cobranças e afirma que há preconceito ou discriminação em relação às mulheres que escolheram não ter filhos (FIDELIS; MOSMANN, 2013).

Embora questione-se a fragilidade da mulher, a maternidade ainda é considerada sinônimo de feminilidade e associada à condição feminina pelos seus aspectos ligados ao corpo e à natureza. Existe uma pressão coletiva, uma atribuição excessiva de valor à maternidade que muitas vezes leva a mulher a ter filhos mesmo sem desejar ou questionar. (SMEHA; CALVANO, 2009; MANSUR, 2003).

As mulheres que optam pela não maternidade enfrentam este desconforto, conflitos de relacionamentos, cobranças familiares e se veem na obrigação de justificar sua escolha, o seu não desejo, porque o natural é querer ser mãe.

“Na verdade, pra mim nunca foi uma opção ter filhos, mesmo quando eu era criança, mesmo quando eu tava brincando de casinha, eu nunca queria ser a mãe, eu nunca me imaginei, continuo não me imaginando, por mais que as pessoas falam que eu vou mudar, eu acho que não, não consigo me imaginar tendo filhos. Sim, principalmente... principalmente familiares, pra família é muito difícil compreender que uma mulher escolhe: número um, não ter um relacionamento, principalmente uma família um pouco mais tradicional, que questiona: ‘ah, mais... você já tá na idade de casar... quando eu tinha a sua idade eu já tinha até filho, e tudo mais’. A família... a família tem um pouco de dificuldade de entender, principalmente porque tem pessoas na família que já estão começando a se casar, começando a ter filhos, começam aí os questionamentos de: ‘ah, porque que você também não?... você não vai casar nunca? Você não vai ter filho? Você não vai me dar neto?’ (risos) eu tenho uma irmã mais nova que já tem filhos, então já cria essa coisa de: ‘ah, sua irmã já... olha só, sua irmã já é casada, já tem filho, você não vai casar?’. É um pouco complicado. Relacionamento assim com amigo até que não, porque meus amigos todos têm uma tendência de não terem filhos, de não serem casados, até porque a gente é muito novo ainda. Mas em relacionamento sim, porque... já terminei um relacionamento porque a pessoa queria, tinha o projeto de vida de, não exatamente no momento casar, mas de um dia casar, um dia ter filhos, e acaba sendo um projeto de vida muito diferente daquilo que eu busco, então acaba criando sim algumas... alguns conflitos.” (C18 – solteira, 26 anos).

A mulher é incentivada de diversas formas a ser mãe desde o seu nascimento. Na infância, ela é direcionada à maternidade e ao cuidar de bonecas e da casa em suas

brincadeiras. Mesmo com o incentivo aos estudos e profissionalização nos dias atuais, há uma expectativa que ela se torne mãe, uma vez que continua submetida a antigos valores sociais.

Entretanto, surgem novas possibilidades para as mulheres, seja o adiamento da maternidade ou a decisão de não ter filhos (BARBOSA; ROCHA-COUTINHO, 2007). Assim, “gerar e criar filhos passa a ser social e culturalmente definido como um projeto de vida” (MEYER, 2003), condição que está subentendida no universo feminino.

As cobranças por não ter filhos reforçam os argumentos que fazem parte do cotidiano da sociedade, o que permite lembrar aqui a experiência do sentimento compartilhado pelos que vivem em determinado grupo social, os valores que são reconhecidos no coletivo e influenciam o imaginário individual (MAFFESOLI, 1988, 1995, 2010). Neste sentido, ilustra- se este processo, assim:

“Não querer ser mãe... na verdade eu nunca fui uma criança que sonhou em casar, entrar numa igreja, é... cuidar da casa. Não, eu gostava de viajar, já me imaginava uma mulher independente, empresária... por incrível que pareça, empresária, mas viver por viajar, nunca nem imaginei em ter alguém. Sempre gostei muito da minha liberdade, e hoje ... ter um filho, para mim, gerar é uma coisa fora de cogitação. Eu nunca imaginei, não tenho vontade de ser mãe. E neste ponto... e com esta correria, com esta opção sexual minha que torna um pouco mais difícil o acesso, já não ter vontade de ter filhos, agregou isto, gosto de tudo o que eu faço, gosto de ser livre...acho que é uma responsabilidade “gigantesca” ser mãe.(...) Mas na minha casa, na minha família, todo mundo está muito aberto a isto. Então ser mãe por ser mãe, não entra em discussão. Hoje eu entro em contradição, em conflito interno porque a minha parceira tem vontade de ser mãe. Então é uma coisa que recentemente vem se discutindo muito. É a vontade dela de gerar, de ser mãe, e a minha de não querer me prender e saber da responsabilidade, então é assim...ainda mais nas condições nossas que é um pouco mais complexo que um casal dito normal, casal heterossexual. Uma família convencional, então a minha não seria convencional. Eu não estou pronta para ver meu filho passando por algumas coisas na escola, de brincadeiras, de bullying, então assim, eu não teria estrutura para isto” (C 8 – casada, 27 anos). Mesmo sem o desejo de ser mãe, os argumentos apontam a ação do imaginário coletivo: “ainda mais nas condições nossas, que é um pouco mais complexo que um casal dito normal, casal heterossexual”. A maternidade, portanto, está vinculada ainda a uma família convencional, tradicional, ou seja, prevalece o discurso do ideal, uma família estruturada no modelo burguês – pai, mãe, filhos. A noção de família para os dispositivos das normas, ideia de família divulgada pelo Estado, pela mídia e pela sociedade ou seja, pensar a maternidade numa relação homoafetiva contraria estes valores.

Martinez e Barbieri (2011) corroboram esta afirmação quando dizem que é inegável a mudança no cenário das famílias que se reconfiguram em famílias recompostas, monoparentais, homoparentais, adotivas, etc. A maternidade se modifica, mas os conflitos permanecem. A representação da maternidade associada à determinação biológica feminina, mesmo frente à diversidade vivencial, faz parecer perversa qualquer ação, prevalecendo assim o modelo de família tradicional.

Constata-se, portanto, a maternidade como uma construção social, fomentada pelos discursos ideológicos de instituições, pelos símbolos e normas sociais. Pensar a maternidade no contexto de novas vivências e configurações familiares torna-se ainda mais complexo que desmistificar o ideal mulher-mãe.