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6.4 O corpo não reprodutivo

6.4.1 O corpo biológico e os medos da maternidade

“O corpo tornou-se um empreendimento a ser administrado da melhor maneira possível no interesse do sujeito e de seu sentimento de estética.” (LE BRETON, 2007)

Dentre as representações do feminino, o corpo físico ou biológico merece destaque. A imagem corporal tem significados particulares para cada mulher, mas a questão estética está implícita e a relação beleza versus magreza é característica da contemporaneidade. A cultura do culto ao corpo, presente na sociedade hoje, dita as normas da beleza e define os padrões de corpo ideal. O medo das alterações no esquema corporal em função da gravidez também aparece na justificativa da não maternidade.

Embora neste estudo esta questão tenha sido pouco retratada, considera-se relevante a preocupação com o aspecto físico e biológico, entre outros apresentados.

“É... e tem coisas que me preocuparia muito num filho que eu não preocupo tanto com elas, por exemplo, se eu tenho que... eu saio na rua todos os dias, ando de ônibus, eu vou trabalhar de ônibus, eu vou vivendo coisas que, eu vou vendo como o mundo tá ficando, são coisas que eu não queria que um filho meu passasse, vivesse. (...) eu gosto da minha vida, faço de tudo para viver bem, mas eu acho que meu filho não ia me agradecer em nada eu colocar ele num mundo desse aí... sinceramente, não vejo porque que para ele seria bom, viver numa correria, a água acabando... (risos). Então assim eu não vejo porque dar uma vida a alguém que nem sabe que pode ter uma vida. Não vejo assim nada de bom nisso. Depois vem a questão financeira mesmo, que entra a minha responsabilidade, é... eu ganho pouco, meu filho teria algumas... teria que passar por algumas restrições, porque mal, mal, tá dando para mim e dois cachorros, mas dá... mas um filho seria uma coisa bem complicada. E eu me preocupo com tudo, sabe, se eu tivesse um filho hoje, por exemplo, eu tenho que trabalhar, e aí? (...) Outras coisas, por exemplo, aí tirando o financeiro, tem o mundo, o financeiro, a gestação, uma coisa que eu não vejo nada de legal, nada, nada. Eu... a família da minha mãe, que é o tipo físico que eu tenho, é toda muito gordinha, e eu morro de medo, vivo preocupando com meu peso e fico pensando se eu ficar grávida, que trem horroroso que eu vou ficar, não gosto da gravidez, nada de gravidez eu acho legal, quase nenhuma... o que minhas amigas contam, que eu acompanho sabe, não acho nada legal, nada. Vejo o povo falar: ah que lindo mulher grávida. Não sei o que eles estão vendo de lindo nessa grávida, então também é uma coisa que eu não gostaria de passar” (C 12 – casada, 33 anos).

Alguns medos permeiam a narrativa dessa colaboradora, que podem estar presentes em outras mulheres, na atualidade. Entre eles encontram-se a situação econômica, os problemas do mundo contemporâneo e o aspecto corporal.

Os aspectos financeiros inerentes à criação e à educação do filho demandam a saída da mãe de casa para trabalhar e contribuir com o sustento da família. A inserção da mulher no mercado de trabalho repercute na “organização e na estrutura de funcionamento familiar, levando à proposição de novas configurações, arranjos familiares com interferências diretas na relação familiar” (SIMÕES; HASHIMOTO, 2012. p.8). Sua participação no orçamento doméstico é cada vez mais frequente, o que justifica a preocupação com os aspectos econômicos.

Outra questão é que o trabalho reflete na dinâmica familiar, dificultando a conciliação do tempo entre tarefas domésticas, exercício profissional e cuidado com os filhos, exigindo da mulher, em várias situações, delegar o cuidado com o filho a uma outra pessoa. A violência presente na sociedade hoje contribui para a preocupação de deixar o filho com um cuidador, ou ainda, as situações de risco a que todos estão expostos cotidianamente implicam cuidados em todas as etapas de vida deste filho.

Em relação à estética e à beleza, esta preocupação aparece como uma questão de consumo, pois há uma percepção de que o corpo está sujeito à lógica do mercado. A inserção social e aceitação da mulher hoje demandam um corpo belo, magro e esguio que sofre mudanças ao longo do tempo, constitui um valor na sociedade de consumo, produz sentidos e influencia a subjetividade feminina. Se um corpo é jovem, magro e belo, isto é garantia de sucesso (ZORZAN; CHAGAS, 2011; DANTAS, 2011). Uma gravidez pode ser considerada, portanto, um empecilho para este desejado corpo.

Há uma relação entre a estética da magreza, ideal de beleza feminina atrelada aos ideais da modernidade, e a inserção da mulher no mercado de trabalho. Embora o desejo de um corpo modelo seja compartilhado por várias mulheres (PEREIRA, 2010), esta preocupação não está presente em algumas.

“Não, eu acho que independente de filho, tem a parte de estética que, pra mulher a gente sempre... é quem gosta de se cuidar, tem vaidade, fica com medo de, como dizem, cair tudo, mas isso também, certo ou errado... a gente ouve muita gente falar que é errado pensar assim, mas já pensei também, entendeu... mas é... pra mim é tranquilo. Tem muitas mulheres que eu vejo, minhas amigas, que super bem resolvidas, tem... ou gordas ou magras tem... são felizes com seus filhos, e outras já acham ruim porque, ‘ah engordei, não consigo voltar par ao meu

corpo’. Então a minha questão quanto a isso é tranquila” (C 14 – casada, 38 anos).

A narrativa demonstra que o aspecto físico não influenciou a decisão pela não maternidade. Mesmo apresentando preocupação ou cuidados com o corpo, a colaboradora afirma que a estética não determinou sua escolha. Embora as questões estéticas sejam como uma marca da contemporaneidade, mesmo não sendo determinantes, elas se fazem presentes para muitas mulheres em maior ou menor grau.

O medo da gravidez ou do parto e a preocupação com as mudanças físicas que a maternidade acarreta podem ou não interferir nesta escolha.

“Acho que assim a gente não falou, por exemplo, da questão... eu falei aquela hora do físico, no sentido biológico... a minha decisão também não passa por essa perspectiva assim, não tem nada a ver, porque eu conheço pessoas, por exemplo, que não têm filhos, que têm medo da gestação. Medo da transformação do corpo, medo do momento do parto, medo de uma gravidez, por exemplo, complicada, ou de uma criança com uma necessidade especial, tem muitas pessoas que a justificativa tá... tem gente que fala assim: ‘ah, eu vou adotar uma criança, mas eu não quero gestar’, então quer ser mãe no sentido do cuidado, da educação, da convivência, mas não quer gestar, né. No meu caso não é... não tem a ver isso, assim, não tenho medo da gestação em si, do que que poderia ser, medo do que poderia vir... não passa mesmo pelo desejo, não tá no campo do... do desejo. (...) assim, eu já escutei de todas as naturezas, então assim, a minha decisão não passa por isso, ela passa por uma questão individual, é uma questão particular” (C17- casada, 41 anos).

A contemporaneidade é regida por imperativos de aparência, na qual o corpo deve ser construído a partir de padrões estéticos estabelecidos. Para algumas mulheres, as alterações físicas implícitas numa gravidez não são importantes no momento da escolha pela maternidade ou não maternidade, pois esta se liga ao desejo de ser ou não ser mãe. Outras, entretanto, privilegiam a forma física, uma vez que temem mudanças corporais.

A preocupação com a aparência ancora-se em um modelo de corpo ideal que vigora na contemporaneidade. A sociedade de consumo impõe uma moralização da beleza, direcionando os investimentos para o corpo, visto que as marcas da gravidez são indesejadas. A maternidade não é mais o único ideal feminino e a busca por um corpo magro e jovem reflete as preocupações com as transformações físicas inerentes a ela. As marcas da feminilidade vão desaparecendo do corpo ideal feminino (BRAZÃO, 2010; NUNES, 2003).

Imaginários ou reais, estes medos se fazem presentes para muitas mulheres, porque podem influenciar sua decisão de ter ou não filhos, ancorando, assim, sua escolha. Esta

constatação permite trazer aqui o questionamento de Badinter (1985): por que o instinto materno não se manifesta em todas as mulheres, uma vez que muitas se recusam a ser mães? Para a autora, o amor materno, conhecido como instinto feminino, é um mito, algo socialmente construído, pois o que existe é uma pressão social para que a maternidade seja a única possibilidade de realização. Ao caracterizar o instinto materno como mito, pergunta-se se o desejo de ser mãe seria legítimo ou resposta às coerções sociais (BADINTER, 1985).

Assim, torna-se perfeitamente aceitável que a mulher seja normal sem ser mãe e que o amor materno, como todo sentimento humano, seja incerto, frágil e imperfeito. A mulher é um ser histórico dotado de capacidade de simbolizar e o desejo de ser mãe é bastante complexo e difícil de precisar e isolar na intrincada rede de fatores psicológicos e sociais (PRA, 2010; MANSUR, 2003).

É na ideia de corpo feminino que se define um papel, mas não a condição de ser mulher. A recusa à definição da natureza feminina pela maternidade demonstra uma apropriação do corpo, como uma escolha subjetiva, uma não conformidade com um modelo preestabelecido. Muitas mulheres vão encontrar realização fora do lar, em outros espaços, ao vislumbrarem, portanto, novas possibilidades de realização pessoal e profissional.