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6.3 Construção cotidiana do feminino e maternidade

6.3.3 Outras maternagens

As mulheres maternam. Em nossas sociedades, as mulheres não apenas geram filhos.” (MANSUR, 2003).

Mesmo não exercendo a maternidade, as mulheres muitas vezes exercem esta função. Em alguns casos, justificam desta forma o fato de não terem filhos:

“E aqui estou, realizada claro, sem muitas frustrações, meus sobrinhos preenchem a não maternidade, a família... eu hoje moro... ah, tem que falar isto, eu moro só, ao lado de uma família que me acolhe, que minha irmã mora ao lado, e esta família é a minha família hoje, então eu não me sinto morando só. A gente mora no apartamento uma ao lado da outra, e temos esta vida em comum, quando eu tô muito carente eu vou lá, abraço, beijo os sobrinhos, passeio com eles, faço parte da vida escolar, da vida é... social deles, então eu me sinto uma mãe emprestada. Isto preenche o meu lado de ser mãe, só não preencheu o biológico de ver a barriga crescer e tudo. Mas a emoção tá preenchida. Um pouco, um pouco... as pessoas... na família quando você não constitui uma outra família, todas as pessoas quando precisam de alguém para cuidar, para orientar, para acompanhar, sempre lembram daquela solteira, que não tem...que esta mais disponível na verdade, que tem tempo para cuidar do outro, então comigo não é diferente. Eu sempre tô aí pronta para os amigos, para os irmãos, os sobrinhos, os tios, já que eu não tenho pais e mães, mãe para cuidar, então é... essa... este fato de ser solteira e não ter um compromisso formal de casamento, de relação, me coloca neste lugar de ah, ela pode, ela tá disponível. Então eu tô sempre pronta. Com isto preenche também um lado de... a gente doa mas a gente recebe. E o que a gente recebe é muito bom, é muito importante, a gente fica muito bem de poder ser útil. Eu acho que as pessoas veem tranquilamente...” (C 5 – solteira, 47 anos).

O cuidado, a dedicação e o amor aos sobrinhos, de certa forma, preenchem o possível vazio deixado pela não maternidade. O devotamento foi endereçado a outros, sublimando o

desejo de cuidar de seu próprio filho. Ao afirmar “meus sobrinhos preenchem a não maternidade”, denota-se a maternagem como forma de sublimação.

Entende-se por maternagem a relação que não é condicionada ao aspecto biológico da maternidade, mas ao afeto e ao desejo de cuidar (GRADVOHL; OSIS; MAKUCH, 2014). Gostar e cuidar de crianças aparece como possibilidade de exercer a maternagem em:

“E como eu tenho muitos sobrinhos, eles preenchiam aquilo. Então isto nunca... agora no momento, engraçado, que no momento agora, já há mais tempo, quando as minhas irmãs já começam a ter neto, me bateu assim uma vontade de ter neto, não era filho. E assim me deu ...porque eu adoro uma criança... adoro, e criança também gosta muito de mim. Mas eu nunca me incomodei de não ter filhos não. Eu acho que hoje eu ainda não teria, eu não sei se eu tivesse com alguém, bem, numa situação estável, mas assim não, eu não...nunca tive vontade. E até muito tempo na minha vida eu não incomodava em não ter filhos não. Meus sobrinhos me preenchiam.(...) É que tem isso, as pessoas que seu dinheiro sobra todo para você, tal que não tem nem um pinto para dar água, as pessoas falam... só este lado que as pessoas querem mais de você, achando que porque você não tem filho você pode dar (risos) outras obrigações... família pensa isto, e tudo é você também. Alguém adoeceu, sou eu que vou, todo mundo me cobra isto. Pelo fato... isto aí não é só pelo fato de não ter filho, pelo fato também de não ter marido... então as pessoas me cobram isto muito, que é a parte que eu não gosto, eu posso ir e tudo, mas não quero ser cobrada, e eu sou bastante cobrada neste sentido. É isto aí” (C 6 – solteira, 68 anos)

Identifica-se uma cobrança pela disponibilidade de quem não tem filhos, certa obrigação de cuidar de outras pessoas, de ter tempo para o outro e uma responsabilização no papel de cuidadora. Estas são algumas formas de maternagem que são atribuídas às mulheres, como forma sócio-historicamente determinada de preencher certo vazio que a falta de exercer seu papel de mãe, cuidar de um filho, possa ter deixado. Aceita-se a escolha de não ter filho, mas ela ainda tem que demonstrar sua capacidade de ser cuidadora, são as outras “obrigações” pensadas e cobradas pela família, pela sociedade. Contrariamente, pode-se inferir se houve a escolha de não ser mãe, biologicamente, mesmo que não goste da imposição, o papel de mãe tem que ser exercido.

As representações tradicionais de gênero são transmitidas no contexto familiar e relacionam-se à maternidade. Assim, mesmo sem filhos, a mulher assume a “maternagem” como uma atribuição natural, pois esta representação foi inserida no cotidiano feminino por diversos discursos (VAZQUEZ, 2014a).

Dessa forma, se a maternidade não se fez presente, o cuidado como forma de expressão do feminino apresenta-se para cumprimento de um dever:

“Cuido das minhas irmãs, faço tudo. As meninas falam que eu tinha que ser enfermeira. Eu cuido de todo mundo, de minhas irmãs, meus sobrinhos, de quem precisar de mim.(...) Eu nasci para ser mãe diferente, para cuidar dos meus sobrinhos. Eu cuido dos meus sobrinhos... hoje mesmo eu cuido...de todos se precisar, mas eu tenho um sobrinho, da minha irmã mais nova, é como se tivesse saído de mim, trato dele mesmo, trato bem. Ontem mesmo eu estava meio chateada porque o irmão dele tem um problema de vista, e a gente pensava assim...quando o médico falava que com 21 anos ele poderia fazer cirurgia. Só que ontem eu levei num especialista, que era o dia, fez todo tipo de exame que podia, tomografia dos olhos, tudo, e chegou à conclusão que ele não pode fazer cirurgia. Então você fica meio...frustrada. Então eu sou assim...e eu tenho esta desvantagem...ou é vantagem...eu não sofro por mim, eu sofro pelos outros. (...)eu não tenho o dom da maternidade de mim, mas ao mesmo tempo eu tenho de cuidar dos meus sobrinhos, entendeu? Cuido, eles conversam comigo...tem problema, eles conversam com a mãe deles? Eles sentam aqui e conversam comigo, de namorada, de problema...” (C 10 – solteira, 52 anos)

Este cuidado pode ser exercido com outras pessoas além dos sobrinhos, pais, irmãos mais novos, até mesmo com animais. Para algumas mulheres, o fato de não ter filhos pode não ser tão tranquilo, entretanto, maternar sobrinhos ou irmãos mais novos pode compensar esta situação.

Os discursos políticos, sociais, religiosos garantiram à mulher a função de cuidadora, associando-a à maternidade. Ainda presente no imaginário coletivo, esta concepção perpetua a função de cuidados até mesmo com outras gerações da família (PATIAS; BUAES, 2012), como se vê no caso das maternagem. Um cuidado que tanto pode preencher o espaço de filhos, quanto influenciar a escolha pela não maternidade:

“Uma principal escolha que eu fiz na vida foi pela minha carreira, então eu às vezes, hoje, eu avalio que eu deixei muita coisa pessoal, no sentido de tá priorizando a carreira, a formação (...) Hoje o meu principal papel é de cuidadora, porque minha mãe mora comigo depois que ficou viúva, há onze anos, quase doze, e meus sobrinhos também, que acabam vindo para cá para estudar e ficam lá em casa. Eu costumo até brincar que eu sou mãe sem ter tido nenhum filho. (...)Desde criança, quando eu mudei para a cidade, eu por ser a irmã mais velha das mulheres, eu tinha irmãos mais velhos que eu, eu tive que assumir a casa como se eu fosse a dona da casa, então isso de certa forma inviabilizou de viver outras coisas. Então eu tinha que cuidar da casa, eu tinha que estudar, depois muito cedo eu comecei a trabalhar, também, isto foi uma coisa importante para mim, e minha vida é isto, meu cotidiano é este” (C 7 – solteira, 52 anos). Desta forma, o exercício da maternagem, seja com irmãos, sobrinhos, pais ou alunos vem legitimar o discurso da maternidade como forma de realização. O cuidado dispensado na

maternagem ou no exercício da docência fazem parte do papel de mãe. Considerando que a colaboradora é professora e cuida de sobrinhos e da mãe. É possível inferir que a narrativa deixa transparecer certa realização no exercício destas funções.

Para Donzelot (1986), algumas profissões se estabeleceram em função de atribuições consideradas femininas, reafirmando o lugar do cuidado, como, por exemplo, professora. Assim como o trabalho doméstico de cuidar da casa e dos irmãos. A docência como vocação favoreceu a entrada das mulheres no mercado de trabalho, balizando os discursos de modernização da sociedade que consideravam o magistério como ideal, associando-o à maternidade (MOREIRA, 2012).

Entretanto, ao relatar a maternagem como uma possibilidade de exercer um “papel feminino”, aponta certo incomodo pelo fato de não ter filho, o que permite inferir que o processo de cuidar de outro, de certa forma, possa redimi-las de uma culpa e, ao mesmo tempo, justifica a não maternidade. Ressalta-se que a maternagem também é uma construção social, os homens também podem exercê-la, pois não é um aspecto feminino.