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6.3 Construção cotidiana do feminino e maternidade

6.3.1 Ser mulher em novos tempos

Minha maneira de não ser mais o mesmo é, por definição, a parte mais singular do que sou”. (MICHEL FOUCAULT)

A condição de ser mulher é resultado dos processos históricos e das vivências singulares e coletivas, cotidianamente marcados por discursos e valores sociais. Voltando a Maffesoli (1988) para compreender este processo de construção da condição feminina, é preciso perceber os valores compartilhados no cotidiano.

A subjetividade também se constrói, sobretudo em um contexto social. Por subjetividade entende-se a maneira pela qual o sujeito se apropria do mundo, de forma singular. Assim, a mudança na condição feminina também é o reflexo do processo histórico.

“Porque antes a mulher não tinha liberdade, através daquele movimento, não sei se a senhora chama Pacífico... fulana de tal Pacífico, até de Belo Horizonte, ela lutou muito para a mulher ser independente, e isso concorreu para que nós hoje tenhamos... assim, você vê, a mulher hoje ela trabalha em qualquer setor, basta ser habilitada, não é isso? E presta um benefício muito grande, em qualquer... por exemplo na área médica, na área de parapsicologia, psicologia e ... ah, tem uma infinidade de... em todas as áreas, a mulher tem prestado serviços. E ainda... outro dia um homem falou comigo: ‘eu tô preocupado, a mulher tá ocupando

espaço nosso’, e eu falei: ‘oh, ocupando espaço seus não, é o contrário, vocês ocuparam o nosso muitos anos e cabe a gente lutar para continuarmos com algum direito’. Só que no vencimento não, eu acho um absurdo a mulher ganhar menos que o homem se o trabalho dela é bom... ótimo... porque tem mulheres que trabalham muito bem. Tem por exemplo aviadora, acho legal... é... e outras profissões que merecem respeito da gente. (...) O anticoncepcional, a princípio ele era um horror, o terror, mulher não podia ir à farmácia comprar anticoncepcional, tinha que pedir um amigo.. ou pai... nada, o pai, nossa senhora, não podia nem falar com o pai isso, pedia uma pessoa amiga lá para comprar, uma senhora, uma coisa assim, não precisava ser homem não. Mas a mulher não... a mulher solteira... até lembro... quem é gente, que usava aqui... comprimido... ela era casada... ela usava o comprimido e foi acabou, minha irmã ia à uma cidade próxima, ela foi encomendou. Ela, uai, você conhece o temperamento dela, não sabe falar não, e enfrenta qualquer coisa para atender um amigo. Ai ela chegou na farmácia, pediu lá o comprimido, e o moço... ela disse que: ‘Oh, mas o moço olhou tanto para mim’. Porque será que ele olhou tanto pra você ? ‘Sei lá, será que ele queria era namorar comigo?’ Ah, já vem você com esses namorados, já não chega os que você já tem por ai não? ‘Não, ele olhou foi...’. Não, não foi isso não, deve ser porque não é comum a mulher comprar esse negócio aí, você sabe disso, pede para comprar é uma senhora, você uma menina e ainda por cima o tamanho, é uma criança. Ela...(risos)...aí no fim ela compreendeu que era o fato dela.... olha para você ver, até a farmácia censurava. Fazia uma censura brava. Mas trouxe uma grande mudança, porque através disso evita, nascimentos aí... porque tem que diminuir, senão o mundo não vai caber todo mundo não, a não ser que nós vamos morar lá na lua. Também tem umas que não querem” (C 13 – solteira, 83 anos).

Percebe-se uma diferença de valores das mulheres que vivenciaram o início da pílula anticoncepcional, as mudanças e as conquistas desencadeadas pelo movimento feminista, tudo o que aquele momento representou.

Estas mudanças são apontadas em um estudo sobre não maternidade e vida profissional, no qual “a mulher foi protagonista de mudanças sociais que manifestam uma ruptura em seu modo de ser e agir” (SMEHA; CALVANO, 2009, p.208). Os resultados apontam que a inserção no mercado de trabalho aparece como uma conquista de independência.

Assim há um deslocamento da identidade feminina, a mulher passa à construção do feminino baseada no valor do trabalho fora de casa, ao qual confere um valor de constituição identitária, recusando a identidade exclusiva da maternidade. O trabalho feminino remunerado possibilitou esta nova posição (OLIVEIRA, 2007; LIPOVESTKY, 2000).

Todavia, o trecho “deve ser porque não é comum a mulher comprar esse negócio aí, você sabe disso, pede para comprar é uma senhora, você uma menina” aponta o surgimento de novos valores em conflito com aqueles já arraigados, no qual o ideal feminino estava

atrelado à maternidade e à constituição de uma família tradicional com papéis definidos. Por menina, entenda-se adolescente, por senhora, uma mulher casada, conforme explicação da colaboradora.

Gerações diferentes, valores compartilhados. Em um primeiro momento, a opção era casar e ter filhos.

“Eu sou uma jovem senhora considerada adolescente ainda. Sou uma pessoa muito bem relacionada, incluída na sociedade que eu vivo, né... um extenso grupo de amizades, uma mulher comum que já teve seus sonhos de adolescente, alguns desfeitos, e vida continua... e a gente resolve encarar outros sonhos e outros caminhos. Sou uma pessoa normal, uma cinderela de sapatinho quebrado... (risos) lascado. Sou isto. Algumas escolhas na minha vida não foram bem “escolhas”. A vida nos leva a seguir um caminho. A minha ideia... a minha primeira ideia de mulher, de ser humano, de pessoa, era a que todo mundo tem, eu vou casar, ter filho, constituir família e tudo o mais. Esta era a minha primeira ideia de vida. Mas aí os relacionamentos não... não dão certo, os desencontros surgem, as decepções vêm, e depois, aquelas decepções que você acha que são decepções, tornam-se uma coisa comum na sua vida e que você tem que seguir a sua trajetória sem se frustrar muito e continuar levando sua vida” (C 5 – solteira,47 anos).

A ideia da maternidade como condição naturalizante da mulher faz-se presente, independentemente da idade. Afinal, “discursos culturais, durante séculos, recrutaram mulheres a se identificarem com eles, tornando-os como verdades e constituindo suas identidades femininas” (COLARES; MARTINS, 2016, p. 2). Para a colaboradora acima, a primeira ideia era ser mãe, como isto não aconteceu, ela adaptou-se à situação e apresenta-se como uma pessoa feliz, mesmo sem filhos. Ser uma “cinderela de sapatinho quebrado” deixa transparecer certo desapontamento, sem que o esperado príncipe do contos de fadas aparecesse e lhe trouxesse a possibilidade de ser feliz para sempre, mas nem por isso deixou de ser cinderela.

Em alguns contextos sociais, ainda se considera como o ambiente natural da mulher a esfera doméstica. A maternidade é direito e dever, o seu exercício anula a identidade da mulher (MACHADO, 2007). Na contemporaneidade, a mulher, mesmo sendo independente para fazer sua escolha sobre ter ou não filhos, constata que o imaginário coletivo é fortemente marcado pelo discurso da maternidade como condição de feminino.

“É... eu tô pensando aqui. Eu defino como esta questão de uma... de... é... poder, é... embora ainda numa sociedade extremamente tradicional em relação a algumas questões, de que esta... a maternidade ela não é... a maternidade é uma

escolha, nós, diferentemente de outros animais é... é...não temos esse ... isto não perpassa por uma questão da natureza humana. O que seria da natureza aí é que a barriga vai crescer, ele vai ser alimentado lá dentro, o corpo vai trabalhar num determinado momento para ele sair, não é isto? Mas o que nós construímos em relação a isto, é de uma construção social e cultural. Então nós construímos... e... é... é... então, eu penso que neste contexto eu sou uma mulher que prezo muito para ter uma vida... é... é... onde eu possa, como eu disse, fazer minhas escolhas, responsabilizar por elas, e entendo que esse caminho, eu que construo, não há nada que seja da natureza humana, é algo que é da minha construção, e eu vejo que embora a única questão que eu acho mais complicada, ainda hoje, é... o... o... todo mundo tem esta expectativa, principalmente para quem casa. Porque mesmo que a sua opção de casar seja sua, eu não quero casar, para a maior parte das pessoas é: nossa, coitada, a pessoa não conseguiu casar. Não, ninguém quer saber se você optou por não casar, as pessoas acham ainda que você não conseguiu (risos). Não, você lindamente escolheu, não, não quero, não quero este tipo de parceria não, não quero ninguém na minha casa, dividindo comigo. Só que se você faz isto, aí então aceitar que você fez, e ainda não quer filhos? Porque você poderia do mesmo jeito do discurso: “ah, ela não conseguiu casar, ah, ela não conseguiu ter filhos”. Não, é você dizer não, eu não quero casar, ou então, não, eu não quero ter filhos. E aí, ainda, aí fica e... é... é... eu acho que muito ainda tudo muito organizado, uma sociedade muito organizada para isto, para casamento com filhos. E é muito novo isto na nossa sociedade, assim, as mulheres que não quiseram ter filhos, isto é muito novo, pela escolha é muito novo...” (Colaboradora 2 – casada, 42 anos).

Quando a maternidade torna-se uma escolha e não apenas uma questão da natureza feminina, transforma a condição de ser mulher, além de propiciar o rompimento com os valores sociais construídos historicamente. A crítica, “ah, ela não conseguiu casar, ah, ela não conseguiu ter filhos”, apresenta o preconceito que ainda existe em relação à mulher que escolhe a não maternidade.

Este pensamento é corroborado por diversos autores citados por Fidelis e Mosmann (2013) em um estudo sobre a maternidade na contemporaneidade. Em resumo, os autores questionam a escolha da não maternidade, que é vista como anormalidade, fora dos padrões tradicionais da sociedade, despreparo, objeto de conflitos para as próprias mulheres. As mulheres que têm dificuldade em decidir pela maternidade ou ainda as que decidem não ter filhos são consideradas anormais (COLARES; MARTINS, 2016)

A mulher contemporânea tem outras perspectivas e escolhas não centradas na maternidade, entretanto assumir esta posição ainda é um desafio, por isso enfrenta pressão social e discriminação. Ela constrói novos modelos de funcionamento feminino, na opinião de Mondardo e Lima (1998 apud RIOS; GOMES, 2008).

Entretanto, mesmo que o reconhecimento dessa mudança ainda encontre resistências e seja sutil, as mulheres, ao longo de suas histórias, estão conscientizando-se de seu valor como

sujeito, apropriam-se do seu corpo, decidem-se de acordo com o seu desejo, realizam-se sem a maternidade, fazem outras escolhas.