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Conforme observado anteriormente neste trabalho, uma análise sobre a permissividade do ambiente em relação à interferência criativa do jogador é o ponto de partida para o entendimento das narrativas em jogos digitais. Nesse sentido nos reportamos a uma categorização binária utilizada por Juul (2002;2005) para análise da estrutura dos jogos digitais.

Uma primeira categoria, portanto, seriam os jogos de mundo aberto ou baseados em emergência. Nessa categoria de jogos que inclui recordistas de vendas como as séries de jogos Grand Theft Auto (Rock Star,1997) e Assassin’s Creed (Ubisoft, 2007), é possível explorar ambientes e tomar decisões dentro de um espectro abrangente de possibilidades. Em outras palavras, é o usuário pode explorar o mundo em que está inserido de modo que muitos consideram livre. Naturalmente, discordamos da noção de liberdade adotada nesta definição, mas esta se faz útil na compreensão de que os jogadores se sentem contemplados por uma enorme quantidade de opções.

Nos jogos baseados em emergência é notável a importância das estratégias formuladas pelos agentes humanos. Diante da grande margem para o improviso e inventividade, o jogador passa a ter uma interferência direta no que possa se entender como um resultado narrativo do jogo. O resultado neste tipo de jogo, ainda de acordo com Juul (2005), é fruto da relação entre as regras e a estratégia do jogador. Um exemplo deste primeiro caso seriam os jogos de xadrez, ou conforme trabalhado nesta pesquisa, o Hotel Habbo.

Por outro lado, os jogos sérios em geral se enquadram na segunda categoria. Nesta, contrariamente aos jogos de mundo aberto, o agente deve seguir um curso previamente determinado pelo mecanismo digital. Tais jogos portanto, seriam de mundo fechado ou baseados em progressão. Nesse segundo cenário os jogadores seguem um fluxo previamente estabelecido cujo final foi necessariamente previsto pelo projetista do artefato.

Naturalmente, como pode-se supor é nos jogos de mundo aberto que se encontra maior dinamismo narrativo. Contudo, entendemos que ao analisar narrativas, especialmente em jogos a estrutura deva ser observada como uma característica, mas não limitar o espectro de análise. Nesse sentido, entendemos que as narrativas em jogos possam existir em ambas as manifestações, sendo sua complexidade grandemente determinada pela existência de um mundo aberto ou não.

Secundariamente, é necessário apontar que diferentemente de diversos outros meios narrativos, e de forma próxima ao teatro, os jogos permitem ao indivíduo sentir sua presença no ambiente. Essa possibilidade, trabalhada por Frasca (2003), deriva do caráter imersivo e participativo do ambiente digital.

Entendendo as peculiaridades do computador enquanto meio, Murray (2003) defende que as narrativas que possuem como plataforma o meio digital devem levar em consideração a dinâmica participativa e procedimental deste. Então, produzir uma narrativa adequada a essas plataformas seria “escrever as regras para o envolvimento do interator, isto é, as condições sob as quais as coisas acontecerão em resposta às ações dos participantes” (MURRAY, 2003, p.149).

A partir dos autores portanto, reconhecemos a necessidade de interpretar as narrativas em jogos a partir das escolhas e comportamentos do jogador. A esse entendimento se alia a teoria narrativa clássica que considera a ação como elemento chave para a análise da narrativa (TODOROV, 2011; ARISTÓTELES, 1996).

Entender que as respostas dos meios digitais e, por conseguinte suas narrativas, estão vinculadas ao comportamento do “interator” é reconhecer a decisiva participação efetiva do humano nas narrativas digitais. Esta participação é aqui entendida pelo prisma da materialidade dos signos que dispostos nas narrativas. Afinal, o papel do leitor face ao meio digital e, principalmente, do jogador está diretamente relacionado a uma interferência na disposição dos signos daquela obra, não apenas em uma reconfiguração simbólica, conforme observado na discussão acerca dos cibertextos.

Resta, portanto, analisar as narrativas em videogames sob o prisma da construção de sentido, que defendemos estar ancorada fundamentalmente na leitura subjetiva do indivíduo que utiliza o sistema digital.

3.2.1 A construção de sentido nas narrativas em videogames

importância da narrativa para o entendimento humano sobre o tempo. O autor, em diálogo com a obra de Agostinho (1992) e Aristóteles (1996) propõe que o homem se utiliza da narrativa para compreender o tempo. Afinal, e neste ponto o autor retoma Agostinho (1992), tanto o passado quanto o futuro são abstrações, que não podem sequer ser vivenciadas. O presente também é problemático à medida que sua fugacidade não permite apontar o instante em que ocorre. Para estabelecer então uma medida e uma descrição possível entre esses três marcos temporais o homem se utilizaria da narrativa como artifício para organizar o mundo.

É com o intuito de descrever a relação entre o homem e a narrativa que Ricoeur (2012) recorre ao conceito Aristotélico de tríplice mimese. Para o filósofo francês, a primeira operação mimética consistiria na compreensão do mundo ainda não narrado. Nesta instância há uma pré-configuração de mundo. Já a segunda operação mimética consistiria na configuração simbólica do tempo com a incidência do elemento poético e discursivo da narrativa carregado da intencionalidade do autor. Nesta fase, o autor constrói sua configuração do mundo, que por sua vez será recebida pelo espectador.

Na terceira operação mimética (Mimese III) o leitor completaria a experiência relacionando as duas primeiras operações em uma reconfiguração desse mundo ficcional por meio da leitura.26 A partir da teoria proposta, é possível entender a narrativa como experiência que é simultaneamente fruição e compreensão de mundo. É reflexão e construção. Na abordagem mimética da narrativa, que abdica da linearidade rígida proposta na análise estrutural, reconhecemos o processo de fruição e pensamento nos videogames.

Igualmente relevante é notar que a percepção da narrativa em ambientes lúdicos como processo mimético de compreensão de mundo contribui para o entendimento das particularidades narrativas dos jogos digitais, grandemente questionadas em um momento de amadurecimento da reflexão acadêmica sobre o tema.27

É fundamental, contudo, notar que a negação da narrativa em jogos por alguns autores se deu sempre em relação a uma percepção estrutural das mesmas, o que não é o caso da abordagem aqui adotada (AARSETH, 2001; FRASCA, 2003; JUUL, 2005). Conforme argumento de Aarseth (2001), os games seriam radicalmente diferentes de estruturas como a literatura por se tratarem de sistemas que funcionam a partir da base para o topo, ou seja, por

26 O autor tem como escopo obras literárias, por essa razão adotamos o termo “leitura”a fim de preservar o sentido original conferido pelo autor.

27 Em uma obra de referência para o estudo dos jogos Juul (2005) negou a aplicabilidade das teorias a respeito de narrativas em jogos digitais, tendo como base a impossibilidade de uma temporalidade linear nesses artefatos. Para o autor os games constroem “mundos ficcionais”o que não coincide necessariamente com narrativas no sentido clássico. A tese de que videogames não apresentam narrativas é compartilhada por Frasca (2003).

se tratar de sistemas baseados em simulação os jogos dependeriam incialmente da interferêncai do jogador. Para o autor, a literatura, ou mesmo os hipertextos seriam “labirintos estáticos” (AARSETH, p.1) onde a vontade do autor necessariamente determina a configuração do labirinto que será percorrido pelo leitor. Já em uma estrutura ancorada na simulação, argumenta Aarseth (2001) tratamos de “sistemas complexos baseados em regras lógicas” (os algorítmos) o que implicaria em um sistema comunicativamente e cognitivamente diverso.

Concordando com os termos propostos pelos autores da ludologia28, entendemos que é necessário respeitar a condição cibertextual dos jogos digitais. Por outro lado, consideradas tais especificidades, entendemos a possibilidade da existência da narrativa em jogos, não pautada pela estrutura, mas sim pela enquanto obra aberta à interferência do leitor, como proposto por Ricoeur (2012).

Nesse sentido, a proposta teórica de Ricoeur (2012) tem importância fundamental por enfatizar a questão da temporalidade nas narrativas em detrimento da estrutura, colocando o leitor em condição semelhante à do jogador, à medida em que este também configura o universo ficcional.

Da mesma forma, entendemos que todo jogo digital, embora ofereça espaço para interferência do jogador, consiste em um discurso pré-construído onde a possibilidade de interferência do jogador se dá tanto na materialidade da obra (significante), quanto na instância simbólica da narrativa (significado). Essa interferência, porém, não obscurece a força discursiva do designer do sistema, pelo contrário, apenas reforça a natureza procedimental dessa autoria, conforme defendido por Murray (2003).

Ou seja, nos games, o programador constrói um universo cuja configuração implica o jogador em uma determinada quantidade de escolhas possíveis. Ainda que a emergência permita ao jogador elaborar estratégias que vão além do controle do autor, a marca e condução deste sempre se fará presente nos consequentes desdobramentos do jogo.

É com base neste entendimento que doravante discutiremos o papel de controle exercido pelo autor do jogo na formação de possibilidades narrativas. Seguindo a linha de interesse desta pesquisa nos deteremos sobre os mecanismos de controle que o projetista do

28A ludologia notabilizou a tese de que jogos não possuem narrativa por discordarem da aplicabilidade da análise estrutural das narrativas aos jogos. Já autores como Murray (2003) e Jenkins (2005) ficaram conhecidos como narratologistas em razão defenderem posição favorável à presença de narrativa em jogos.

jogo possui sobre a usuário, procurando sempre que possível mapear os elementos distintivos dos jogos enquanto discurso persuasivo.