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4 MUNDO DE JOGO: VIDEOGAMES COMO VERDADE E

4.1 O MUNDO DE JOGO COMO ABORDAGEM METODOLÓGICA

4.1.2 O mundo de jogo enquanto verdade (saber)

Por se tratar de uma ferramenta digital, não seria possível definir uma estrutura ou repertório do uso de gráficos de forma discursiva. Tampouco é este o objetivo deste trabalho. Por outro lado, não é difícil observar a reincidência do uso de alguns recursos gráficos na formação de ideias favoráveis ou contrárias a uma ou outra causa.

Um primeiro elemento gráfico que chama a atenção na composição ideológica em jogos são os cenários. Neste trabalho, analisamos o Mc Donald´s videogame, cujo propósito declaradamente político facilita a observação de que todos os cenários do jogo foram escolhidos para retratar aspectos específicos da rede de fast-food.

Em uma seara inteiramente diferente do Mc Donald´s videogame é possível encontrar um outro exemplo que ilustra o quanto que cenários são utilizados em jogos não apenas para contribuir para a formação de uma nova perspectiva sobre algo, mas também como reflexo de visões de mundo. Na série Street Fighter (CAPCOM,1987), é possível notar que cada personagem possui um cenário que representa seu país de origem. No caso do personagem brasileiro, em uma única imagem é possível notar uma profusão de clichês a respeito do país. Ali figuram uma cobra enroscada no que parece ser uma sequóia à beira mar. No caso do lutador americano, o cenário retrata uma base militar da força aérea americana.

Em ambos os cenários é relevante notar que se trata de um retrato realizado por uma empresa japonesa para um jogo cuja finalidade é o entretenimento. Não pretendemos aqui defender a ideia de que o jogo pretende retratar algum tipo de superioridade americana. Antes, interessa aqui ressaltar as representações estereotipadas e até que ponto estas servem à composição do jogo enquanto instrumento de transmissão de ideias.

Nesse sentido, ao que parece no Street Fighter II interessa retratar o Brasil como um país exótico, ao passo que os Estados Unidos são representados por seu militarismo. Em ambos os casos, o cenário convém noções que são laterais ao jogo, não fazem parte do que se pode considerar o núcleo de um jogo de luta. Ao mesmo tempo, os cenários são parte marcante da franquia e, certamente, fazem parte do imaginário de gerações, sendo inclusive atualizado, já que versões mais recentes do jogo mantém o mesmo padrão no que tange aos cenários.

Ainda na mesma franquia de jogos de luta é possível observar o uso de outro recurso gráfico para a composição de um mundo carregado de propaganda. Não é possível jogar Street Fighter, ou mesmo observar as imagens dispostas acima sem notar a composição gráfica de seus personagens. Novamente, aqui, o jogo serve como um exemplo emblemático para a noção de mundo de jogo defendida neste trabalho.

Assim que escolhe um lutador no jogo, o gamer está intrinsecamente fazendo uma escolha não apenas por um determinado estilo de luta, mas por um personagem peculiar cujas características podem ser deduzidas a partir de seus maneirismos, trajes, biotipo, corte de cabelo e assim sucessivamente. Mais uma vez, os gráficos do jogo servem para corroborar ou conduzir a uma certa visão de mundo. Novamente este não é o objetivo primário do jogo, que oferece o combate físico entre dois personagens, mas ali estão escolhas que vão além do combate. E essas escolhas fazem do tecido do jogo, diferenciando-o de outras tantas franquias.

É justamente pela relevância de tantos aspectos laterais ao jogo que escolhemos Street Fighter para exemplificar alguns aspectos do que chamamos aqui de mundo de jogo. Aqui o conceito pretende enfatizar o fato de que, na condição de dispositivo, o jogo não é apenas o

que se apresenta. Parece evidente que nos jogos persuasivos há uma clara intenção ideológica perpassando cada escolha, como é o caso do jogo crítico à McDonald´s ou do Pleasure Hunt. Exemplos como Street Fighter, entretanto, revelam que também jogos com fins de entretenimento carregam em seu tecido formador uma carga ideológica inerente ao próprio uso da linguagem. Em muitos dos casos, porém, como entendemos ser o do exemplo em questão, o componente discursivo possui importância, especialmente se considerado o papel cultural desempenhado por jogos para a atual geração de jovens e adultos com até 40 anos, como descrito no capítulo inicial deste trabalho.

Outro aspecto decisivo para a incorporação do usuário na experiência é a noção de narrativa. Ainda que alguns jogos não necessariamente possuam uma pretenção narrativa, é notável a força de elementos narrativos no envolvimento do jogador. Basta elencarmos alguns jogos considerados clássicos como Super Mario Bros., Space Invaders e, o já citado, Street Fighter para observar o quanto que elementos narrativos contribuem para o envolvimento do jogador. No caso do primeiro a história do encanador que vai em busca de salvar uma donzela em perigo numa torre, já o segundo evoca o célebre receio de uma invasão alienígena, ao passo que o último discorre sobre dois amigos lutadores (Ken e Ryu) em busca da excelência. Embora muitos jogadores sequer saibam a história que motiva os lutadores em Street Fighter ou a origem dos inimigos no Space Invaders, a narrativa se revela um elemento chave na construção de sentido de jogos. O caso do Space Invaders é emblemático pela capacidade de sintetizar em uma mecânica rudimentar, uma nave atirando contra inimigos difíceis de discernir, o medo ancestral do que nos é estranho. Numa combinação feliz entre título, mecânica de jogo e gráficos, ainda que rudimentares, o Space Invaders evoca um sentimento de patriotismo amplamente representado em filmes de Hollywood.

De forma ainda mais abrangente as histórias de Super Mario Bros. e Street Fighter deram vazão não apenas a uma série bem sucedida de jogos, mas sobretudo de uma enorme idolatria no universo pop, especialmente sobre o primeiro, hoje um dos símbolos da cultura popular japonesa.

A narrativa, assim como as regras, contribui para a construção de uma camada de sentido sem a qual seria difícil distinguir um jogo de um passa tempo qualquer. Tal fato pode ser observado a partir do contraste entre jogos de baixa ou nenhuma complexidade narrativa, como baralho, e jogos como os RPGs onde a narrativa exerce importância fundamental. Se os primeiros tendem a servir ao propósito de passar o tempo os últimos ocupam uma posição expressiva na memória dos jogadores, tendo alguns inclusive sido transformados em filmes.

A importância da narrativa e dos elementos signíquicos que a acompanham é de interesse deste trabalho especialmente no que tange à sua formação enquanto discurso. Para um aprofundamento da análise do poder discursivo dos jogos digitais pretendemos discutir as implicações do envolvimento do indivíduo neste tipo de experiência sob um prisma ideológico. Para tanto, tomaremos como exemplo o gênero dos jogos de tiro em primeira pessoa ou FPS (sigla em inglês para First Person Shooter), seguido da análise de um caso específico no segmento.

Nesta categoria, um desafio comum para o jogador é em um determinado mapa (ambiente) invadir a base inimiga, algo semelhante à brincadeira de barra bandeira comum entre crianças no Brasil. Assim como no barra bandeira FPS em geral exigem dos jogadores trabalho em equipe, concentração e, claro, um raciocínio que permita operacionalizar o entendimento das regras rapidamente.

Todavia, em sua versão digital (FPS) adquire traços muito particulares. Assim como as tecnologias audiovisuais permitiram a criação de ambientes apenas imaginados por leitores de livros e peças teatrais, o meio digital permite a construção de ambientes complexos. Na construção desses ambientes uma relação rudimentar entre oponentes, por exemplo, pode ganhar contornos muito mais específicos e não necessariamente declarados abertamente na construção de cenários, trajes dos personagens, biotipo, sons e um número quase sem fim de recursos audiovisuais que aprofundam a expressividade do jogo e do discurso.

Nessas nuances, questões ideológicas ganham força sobretudo por se tratar de um ambiente em que, novamente, o envolvimento do jogador, sua compreensão das regras que regem aquele ambiente, seu conhecimento do território em que atua, sua atenção aos detalhes enfim, são a chave para a vitória ou para a derrota. Para a vida ou morte, no jogo, claro.

Segundo Calleja (2007) a relação de imersão do jogador no game seria melhor descrita como incorporação. Para o autor o termo faria justiça ao fato de o jogador efetivamente fazer parte do ambiente de jogo numa relação bidirecional em ambiente e jogador exercem influência mútua. A partir do conceito o teórico sugere que ao jogar o sujeito esteja envolvido de forma integral no ambiente.

Um exemplo usado pelo autor, também sobre jogos de tiro, descreve a situação em que um personagem exerce a função de atirador de elite e aguarda calmamente seu alvo. Durante a espera o jogador se mantém em estado de alerta sem que nenhum movimento precise de ser executado.

Logo, argumenta Calleja (2007), a relação não pode ser analisada apenas em termos de estímulos e resposta. Ainda que nada ocorra no ambiente de jogo durante o período de espera

descrito, a atenção do jogador é dedicada pois este aguarda um evento potencial. Trata-se antes de uma relação complexa de incorporação em um ambiente dinâmico, uma vez que o agente humano também é responsável pelo desenrolar dos eventos no ambiente digital.

Tomando como ponto de partida os pressupostos acima mencionados caminhamos no sentido de argumentar que os jogos se caracterizam por estrutura arquitetônica projetada para, assim como as estruturas do mundo concreto, receber agentes humanos. De modo não semelhante às prisões e escolas, entendemos que os jogos anunciam em suas relações de visibilidade suas relações de poder, saber e subjetivação.

Assim, no jogo, a lógica processual contribui para que o jogador trilhe uma trajetória de construção de verdade onde suas escolhas implicam em resultados relevantes não apenas sob um ponto de vista recreativo mas também retórico, como sugerido por Bogost (2007). Já a narrativa seria responsável por permitir ao jogador uma apropriação pessoal do universo lúdico.

Por fim, há no jogo a composição arquitetônica, os elementos de visibilidade que expressam tudo que interessa que o jogador perceba através de seus sentidos mais imediatos. Estes elementos são os componentes audiovisuais da obra. São exemplos desse tipo de elemento os cenários, aspectos visuais dos personagens e trilha sonora.

Embora as escolhas possam parecer fruto de uma tentativa de representar a realidade, entendemos que as escolhas que compõem o mundo do jogo se aproximam mais de uma arquitetura disciplinar. Em outras, palavras, nesses ambientes é possível descrever uma realidade, e por conseguinte, estabelecer parâmetros de normalidade que tendem a ser naturalizados pelo jogador, uma vez que estes tendem a se mostrar coerentes com os demais elementos deste universo.