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A natureza da experiência da tentação

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4.3 ANÁLISE REDACIONAL

4.5.1.3 A natureza da experiência da tentação

Provavelmente seguindo a fonte Q, o relato lucano da tentação declara que Jesus “foi guiado em espírito no deserto” (êgeto en tô pneumati en tê erêmô). A construção sintática de Lucas é diferente da que aparece em Marcos e Mateus. Em Marcos (1,12) é dito que “o Espírito o [Jesus] impeliu para o deserto” (tó pneuma auton ekballei eis tên erêmon), dando a entender que Jesus foi levado (expulso) para o deserto pelo Espírito Santo. O texto de Mateus (4,1) traz o seguinte: “foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto” (Iêsous anêchthê eis tên erêmon hypo tou pneumatos). Na construção elaborada por Marcos, o Espírito Santo é o sujeito da ação do verbo principal – “impeliu” –, indicada pela presença do hypo com genitivo, sendo Jesus o objeto desta ação. Já no texto mateano, o Espírito é o agente da voz passiva expressa pelo verbo principal – “foi levado” –, sendo Jesus o sujeito que sofre esta ação. Tanto em Mateus quanto em Marcos, emprega-se a preposição grega eis, usada espacialmente para expressar um movimento em direção a algum lugar, no caso, o deserto (ARNDT e GINGRICH, 1957, p. 227). Por outro lado, na construção lucana, o espírito não é o sujeito nem o agente da ação denotada pelo verbo principal, mas o âmbito no qual a ação expressa pelo verbo principal – “foi guiado” – acontece. Isso é indicado pelo emprego da preposição grega en em lugar de eis. Neste caso, a preposição en está sento empregada para indicar a esfera na qual a ação do verbo acontece (WALLACE, 2009, p. 372).158 Deste modo, como ressalta Schiavo (2005b, p. 129), a expressão en tô pneumati (“em o espírito”) indica, “não o sujeito da ação (o Espírito Santo), mas a natureza da ação, caracterizada por um movimento interior, espiritual”.

De acordo com Nogueira (2003, p. 19), a expressão “em espírito” (en pneumati) “é uma indicação de estado extático, de transe de tipo visionário”. Schiavo (2005b, p. 117) acrescenta que a expressão “ser levado em espírito” (êgeto en pneumati), “mais do que qualquer outra, traduz na Bíblia a experiência do êxtase”. Ela indica a

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Wallace (2009, p. 373-374) contesta a teoria de que possa existir no Novo Testamento o emprego de en + dativo para expressar agência pessoal, o que poderia ser o caso em Lc 4,1.

experiência através da qual o indivíduo entra num estado alterado de consciência, “tendo acesso ao mundo divino e às revelações de Deus”. Schiavo (2005a, p. 103) declara ainda que “as semelhanças semânticas, sobretudo com os textos de Apocalipse, levam-nos a afirmar que ēgeto en tō pnéumati (levado em espírito) seja um termo técnico referente ao êxtase e à visão”. De fato, a expressão “em espírito” aparece 4 vezes no Apocalipse (1,10; 4,2; 17,3; 21,10) para indicar que o profeta sai do nível terreno e é inserido no âmbito do transcendente. Neste caso, “a experiência extática é entendida, simbolicamente, como um abandono do corpo por parte do espírito” (SCHIAVO, 2005a, p. 103).

Embora Fitzmyer (1987, p. 397) não postule que as tentações de Jesus, narradas por Lucas, tratam-se de experiência extático-visionária, ele afirma que elas “não tiveram lugar como fenômenos externos e reais, no qual o demônio adquiriu uma forma visível para enfrentar-se com Jesus, nem que realmente se produziram as mudanças físicas de lugares entre as diversas tentações”. Para este autor, elas são símbolos das tentações e oposições reais que Jesus teve que enfrentar ao longo de todo seu ministério. É provável, pois, que consciente disso, Marcos (1,12- 13) – seguido por Mateus (4,1-11) – a tenha apresentado como uma experiência corporal de Jesus e a Fonte Q – seguida por Lucas (4,1-13) – a tenha descrevido como uma experiência extático-visionária.

Berger (2011, p. 155) esclarece que, para as pessoas da época neotestamentária, “a percepção visionária não é ou não precisa ser per se algo sobrenatural […], mas uma forma de percepção ao lado de outras”. Neste sentido, de acordo com o pensamento da Antiguidade, a alma (ou espírito) do ser humano pode sair de seu corpo por algum tempo (p. 174). Morton Smith (apud MCGINN, 2012, p. 40) afirma que as ascensões ou viagens podem ocorrer de quatro modos: “em sonhos, em visões enquanto acordado, da alma deixando o corpo, ou ascensões corporais quer nesta vida ou na ressurreição […].” Provavelmente a experiência de Jesus narrada por Lucas, é apresentada como sendo do segundo tipo, ou seja, da alma deixando o corpo.

De acordo com Weber (2010, p. 31), a manifestação de faculdades extáticas e visionárias era vista como um “carisma”. Ele declara que o extase é “o estado que especificamente representa ou transmite o carisma” (WEBER, 2000, p. 280). Para ele, os estados alterados (êxtase) “foram considerados como especificamente consagrados e divinos devido à sua singularidade psíquica e devido ao valor

intrínseco dos respectivos estados por eles provocados” (WEBER, 1982, p. 321). De acordo com Schiavo (2005b, p. 112), as experiências extáticas e visionárias servem para expressar “certos carismas ou „santidade‟, condições indispensáveis para se ter acesso à divindade e passar a ter um lugar de prestígio na sociedade, sendo respeitada, temida, procurada”. Neste sentido, os relatos de visões têm principalmente o objetivo de legitimar figuras carismáticas. Tratando do Cristianismo das origens, Berger (1998, p. 261) esclarece que “as visões se tornam, então, uma experiência central e uma legitimação fundamental”. Em muitas situações de controvérsia, as visões foram utilizadas como último recurso apologético (p. 271). Portanto, provavelmente, o objetivo do relato da visão da tentação de Jesus é legitimá-lo como carismático, que venceu o diabo numa batalha travada no âmbito hermenêutico da Torah.

Entretanto, embora se possam identificar elementos místicos na narrativa da experiência de Jesus da tentação, ela se mantém na tradição profética, uma vez que lhe faltam alguns elementos típicos da tradição visionária apocalíptica. Mcginn (2012, p. 43) esclarece que a diferença básica entra a visão do profeta e do vidente apocalíptico é que, na visão do profeta ele se mantém na terra, enquanto o místico é ascendido aos céus. Além disso, na narrativa da tentação de Jesus não há a presença de um angelus interpres, típico da experiência apocalíptica de viagem celestial.159 Por outro lado, embora a experiência da tentação de Jesus esteja dentro do campo das experiências místicas – tais como visões, locuções, êxtases e similares (p. 19) –, ela não pretende estabelecer comunhão ou encontro imediato com Deus – o que é o propósito da experiência mística –, mas demonstrá-la por meio do confronto com o seu oponente, o diabo.

Conclui-se que, embora a experiência da tentação de Jesus no relato lucano esteja no âmbito das experiências extático-visionárias e apresente elementos místicos e apocalípticos, ela não pode ser classificada totalmente nestes termos. Pelo contrário, tal experiência se mantém na tradição das experiências extático- visionárias proféticas, tais como as que aconteceram com Jeremias, Zacarias e, especialmente com Ezequiel. Além disso, não se pode dizer que se trata de uma experiência apenas espiritual ou psicológica, pois também o corpo de Jesus esteve

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Schiavo (2005a, p. 107) entende o angelus interpres como sendo o próprio Diabo, todavia, esta identificação dificilmente pode ser sustentada, uma vez que na literatura apocalíptica conhecida o

envolvido ao longo de todo o processo: sentindo fome, sendo levado de um lugar para o outro, vendo os reinos mundiais, sendo tentado a pular do pináculo do templo.

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