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O Contexto Histórico Geral do Primeiro Século d.C

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1.7 OS ACONTECIMENTOS HISTÓRICOS NOS SINÓTICOS

1.7.1 O Contexto Histórico Geral do Primeiro Século d.C

O período da vida e ministério de Jesus foi marcado pelo governo imperial romano sobre a região da Palestina. Jesus nasceu e morreu sob o domínio deste império mundial. Neste sentido, para se compreender os ensinos e as ações de Jesus é importante que se compreenda o contexto histórico mais amplo sob os quais eles aconteceram.

Após vencer e aniquilar a cidade rival de Cartago, em 146 a.C., Roma iniciou seu programa expansionista sobre toda a área mediterrânea. Os romanos ambicionavam controlar o comércio na região do Mediterrâneo. O próximo passo neste intento foi derrotar as monarquias macedônias e seus aliados gregos. Ainda na última parte do século II a.C. eles consolidaram este intento. A última parte da estratégia expansionista e comercial romana consistiu na expulsão dos partas e na “pacificação” dos piratas marítimos (HORSLEY, 2004, p. 22-24).

O final do primeiro triunvirato, formado por Júlio César, Pompeu e Crasso, marcou também a derrocada da república e o início do Império romano. O triunvirato começou a dissolver-se em 53 a.C. com a derrota e morte de Crasso na batalha contra os partas, em Carras. Em 49 a.C estourou a guerra civil romana entre as forças de César e Pompeu. Um ano depois, César derrotou Pompeu na batalha de Farsália, nas planícies da Tessália, anistiando a maioria dos adversários. Porém, em 44 a.C. Júlio César foi assassinado por antigos partidários republicanos (CROSSAN, 1994, p. 68-69).

Após o assassinato de César, estabeleceu-se o segundo triunvirato, desta vez, formado por Antonio, Lépido e Otávio, filho adotivo de César. O primeiro intento do novo governo foi eliminar os assassinos de César e partidários da república. Em 42 a.C. Cássio e Brutos foram derrotados na batalha de Filipos, morrendo com eles “as últimas esperanças de uma volta da República” (CROSSAN, 1994, p. 68).

Aproveitando-se da guerra civil judaica e das disputas pelo poder entre os príncipes asmoneus Aristóbulo II e João Hircano II, as legiões romanas, sob o comando de Pompeu, conquistaram violentamente a Palestina no outono de 63 a.C. Porém, à conquista romana seguiu-se um período longo de devastação e de lutas pelo poder por parte de facções hasmoneias e por exércitos romanos rivais (HORSLEY e HANSON, 1995, p. 43).

Depois de derrotar as forças de Antônio e Cleópatra, na batalha naval de Ácio, na Grécia, em 31 a.C., Otávio foi saudado como Augusto (o reverenciado, o exaltado), tornando-se o primeiro imperador romano. Ele estabeleceu um sistema provincial de governo, com procônsules e governadores, alguns dos quais prestavam contas ao senado romano, outros ao próprio imperador (GUNDRY, 2007, p. 11). Em pouco tempo ele conseguiu consolidar o seu governo, estabelecendo a Pax Romana – um domínio aparentemente tranquilo, sem muitas revoltas, conseguido por meio do emprego da força, da intimidação e, muitas vezes, da violência (SCHIAVO e SILVA, 2011, p. 24).31 Horsley e Hanson (1995, p. 44) afirmam que “repetidamente, os exércitos romanos incendiaram e destruíram completamente cidades e massacraram, crucificaram ou escravizaram as suas populações” no intento de mantar a “ordem” e a “paz” no mundo.

Num discurso, preservado por Tácito (Apud CROSSAN, 1994, p. 77), Cálcago, um general bretão, antes de uma batalha, chama os romanos de “saqueadores do mundo” e os acusa de pilharem, matarem, roubarem, e chamarem isso de império; de trazerem desolação e chamarem isso de paz. Mais adiante, no mesmo discurso, suas palavras descrevem bem a situação dos povos sob o domínio romano:

Eles (os filhos e a família) são arrancados de nós para serem levados como escravos para terras distantes; as nossas mulheres e irmãs, mesmo quando escapam do desejo de um soldado, são violadas por pretensos amigos e hóspedes; nossas posses são tomadas sob a forma de tributos; nossas terras e colheitas, em requisições de suprimentos; a nossa própria vida e nosso corpo são usados para derrubar florestas e pântanos, sob um coro de zombarias e pancadas.32

Para os camponeses judeus, a dominação romana significou pesada tributação, forte opressão político-cultural e, às vezes, violentas repressões em nome da paz e da ordem. No geral, Roma não implementou nada de novo no regime de governo das áreas conquistadas, mas “basicamente assumiu e perpetuou a civilização e o império helenístico já estabelecido no Oriente” (HORSLEY e HANSON, 1995, p. 43).

O domínio romano no Oriente Médio era geralmente exercido por meio de governos indiretos, com reis e governadores nativos vassalos de Roma (HORSLEY,

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Horsley (2010) descreve o ciclo de opressão e violência perpetrado pelo domínio romano sobre os povos conquistados, em especial na Palestina.

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2004, p. 37). Durante a última parte do I século a.C. Herodes reinava como vassalo dos romanos na Palestina. Ele chegou ao poder aproveitando-se das rivalidades dentro da dinastia asmoneia e do apoio dos romanos. Seu reinado foi estabelecido após haver vencido o grupo pró-asmoneu e controlado uma série de distúrbios e insurreições surgidas na Galileia (CROSSAN, 1994, p. 209-213).

Herodes dominava “como déspota, arrogando-se o direito de nomear a seu bel- prazer os sumos sacerdotes”. Ele era de origem idumeia e se inclinava aos usos e costumes helenistas (BARBAGLIO, 2011, p. 146-147). Herodes tinha mania de grandeza e gastou vultosas somas de dinheiro em obras de construção e caríssimos presentes visando agradar o governo romano. Sua corte real era marcada pela pompa, sendo uma das mais caras da época. Para mantê-la ele recorria a pesadas tributações, especialmente sobre os camponeses israelitas (HORSLEY, 2004, p. 38- 39). Além disso, a dinastia herodiana não possuía legitimidade para ocupar o trono judaico, uma vez que, além de não proceder de uma família real ou sacerdotal judaica, tinha origem estrangeira. Por estes e outros motivos, o governo de Herodes sofreu forte oposição de grupos importantes na Palestina. A resposta dos herodianos a esta oposição foi através de repressões violentas (THEISSEN, 2008, p. 306-311).

Após a morte de Herodes, em 4 a.C., o território sob o seu domínio foi repartido entre seus três filhos, que o sucederam no governo da Palestina. Arquelau tornou-se etnarca sobre a Idumeia, Judeia e Samaria; Herodes Antipas exerceu domínio sobre a Galileia e Pereia; e Herodes Filipe, governou sobre a região ao norte e nordeste do mar da Galileia (CROSSAN, 1994, p. 127-128). Após uma série de tumultos, Arquelau foi denunciado por uma comissão de líderes judeus, tendo sido destituído e exilado na Gália, em 6 d.C. A região sob seu domínio foi entregue a um prefeito romano. No geral, os príncipes herodianos, seguiram a mesma política opressora do pai, especialmente no que diz respeito à cobrança de impostos.

Durante a primeira parte do século I d.C., a Galileia esteve sob o governo de Herodes Antipas. Tiberíades e Séfores eram os principais centros urbanos da Galileia. Estas cidades foram construídas por Antipas para servirem de centros administrativos em seu governo na região, em consonância com “o programa imperial de romanização pela urbanização para a comercialização” (CROSSAN, 2009b, p. 16). Por volta do ano 19 d.C., a nova capital, Tiberíades, foi construída em homenagem a César, sobre um antigo cemitério judaico (THEISSEN, 2009, p. 58).

Herodes Antipas pretendia reinar sobre toda a região antes dominada por seu pai.33 A fim de alcançar seus ambiciosos projetos, ele sobrecarregou a Galileia com altíssimos tributos (CROSSAN, 2009b, p. 16-19). Durante o primeiro século d.C. os galileus estavam sujeitos a três tipos de impostos: impostos religiosos destinados ao Templo em Jerusalém; impostos aos tetrarcas nativos, no caso, a Herodes Antipas; e impostos destinados a Roma. Numa sociedade tipicamente agrária, estes impostos pesavam especialmente sobre os camponeses. Calcula-se que eles perfaziam cerca de 30% a 50% de toda a renda que o campo produzia (STEGEMANN, 2012, p. 314- 315).

O sistema de tributação romana não produzia quaisquer benefícios às populações do império e servia apenas para o benefício das elites romanas e locais (MALINA, 2004, p. 37-38). Neste tipo de sociedade a riqueza concentrava-se nas mãos de uma pequena elite – entre 2% a 10% –, que morava em luxuosos palácios e era possuidora de extensas áreas de terra.34 Malina (2004, p. 29,33) afirma que, embora sendo minúscula minoria, estes “grandes proprietários de terra formavam a agenda da vida diária para a sociedade inteira”. Estes latifúndios concentravam sua produção na exportação (THEISSEN, 2008, p. 216). Por outro lado, a grande massa da população vivia com o mínimo necessário à sobrevivência e, em alguns casos, até abaixo disso. Stegemann (2012, p. 327) afirma que “a grande maioria da antiga população campesina vivia no limite estreito entre assegurar a sobrevivência e passar fome”. A diferenciação entre ricos e pobres se demonstrava principalmente pelo problema das dívidas. As situações a que um devedor se submetia incluíam a prisão, tortura e escravização (p. 319-329).

Pesquisas arqueológicas na região da Palestina indicam que durante o período da expansão romana os pequenos proprietários foram paulatinamente diminuindo, enquanto houve um aumento das grandes propriedades rurais (MALINA, 2004, p. 42). Isso significa que o endividamento provocado pelas taxas e tributos, por colheitas ruins e por empréstimos de dinheiro, fazia com que muitos camponeses perdessem suas terras, seu status social e fossem foçados a se tornarem meeiros, diaristas ou vagabundos. Em casos extremos, além das propriedades, suas famílias

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Crossan (2009b, p. 16-18) descreve a saga de Antipas na tentativa de reinar sobre a antiga região dominada por seu pai em seis atos. Porém, sua estratégia fracassou e ele acabou sendo exilado na Gália.

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Horsley (2004, p. 39) nos informa que pesquisas arqueológicas no período herodiano indicam que as ricas famílias sacerdotais construíram mansões cada vez mais luxuosas na colina que dava para o templo a partir do oeste.

precisavam ser entregues para saudar as dívidas contraídas. Este processo provocava o desabamento da infraestrutura socioeconômica tradicional sobre a qual a sociedade palestinense estava fundamentada (HORSLEY, 2010, p. 10). Esta situação empurrava muitas pessoas à ruína, à escravidão ou até ao banditismo social.35

Bryan Wilson (apud CROSSAN, 1994, p. 108) demonstra que, sempre que um grupo de pessoas “não encontra mais uma maneira adequada de se proteger do mal dentro do escopo tradicional de sua religião”, reagirá de diversos modos, na tentativa de se adequar, compensar ou superar o problema percebido.36 Samuel Eddy (apud CROSSAN, 1994, p. 141) alista quatro formas principais de resistência “diante da dominação de uma cultura estrangeira que ameaça destruir ou modificar a antiga”: a resistência passiva, a resistência militante, a resistência messiânica e a resistência proselitista. Obviamente, é possível que mais de uma destas formas de resistência possam combinar-se.

Nota-se que, no contexto da Palestina do primeiro século d.C., houve variadas reações à situação de opressão e exploração empreendida, tanto pelo império romano quanto pela elite nativa que o apoiava. Alguns destes movimentos eram pacíficos, outros recorriam à violência; alguns deles tinham feições mais proféticas, outros, mais messiânicas; alguns tinham mais apelo político-militar, outros, mais religioso. Porém, na maioria das vezes, estes elementos se fundiam ou se combinavam. Estes vários movimentos de resistência e revoltas desembocaram, finalmente, na guerra judaico-romana de 66-70 d.C. (HORSLEY, 2010).

Barbaglio (2011, p. 151-152) afirma que durante o primeiro século d.C., em todo território de Israel, “floresceram movimentos que perseguiram com violência ideais político-religiosos, o fim do domínio estrangeiro e a instauração de uma nova ordem, conforme as promessas proféticas […]”. Flávio Josefo descreve, com riqueza de detalhes, os líderes destes movimentos e suas principais ações (BARBAGLIO, 2011, p. 152-157). Tais movimentos geralmente se inspiravam em antigos atos de libertação realizados por Deus narrados no Antigo Testamento. Como afirma Horsley (2004, p. 68-69), era esperado que num contexto de opressão e espólio por parte

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Para uma descrição sobre o banditismo social na Palestina do tempo de Jesus, consultar Crossan (1994, p. 203-241) e Theissen (2008, p. 200-202).

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Bryan Wilson (apud CROSSAN, 1994, p. 109) alista sete reações de pessoas para se protegeram do mal, no âmbito da religião: os conversionistas, os manipulacionistas, os taumatúrgicos, os revolucionistas, os introversionistas, os reformistas e os utópicos.

das elites políticas e religiosas de Jerusalém, surgissem movimentos que se apegassem às tradições proféticas de pregação da justiça social, crítica e anúncio de juízo. Como afirma Samuel Eddy (apud CROSSAN, 1994, p. 140), “a profecia é o recurso universal dos derrotados”.

De acordo com Weber (2000, p. 335), “toda necessidade de salvação é uma expressão de „indigência‟ e, por isso, a opressão social ou econômica é, por sua própria natureza, uma fonte muito eficiente de sua gênese […]”. Neste caso, “sua necessidade específica é a salvação do sofrimento”. Portanto, o movimento liderado por Jesus de Nazaré foi um dentre outros movimentos de reação e de resistência à situação de opressão político-econômica e de imposição cultural-religiosa. Seu movimento se insere no contexto dos movimentos profético-carismáticos propondo uma resistência simbólica e renovação comunitária no contexto de desestruturação da vida tradicional das aldeias da Galileia (HORSLEY, 2004).

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