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A natureza ontológica do trabalho docente a partir da conceituação de autonomia

Capítulo II – A autonomia docente

2.2 A natureza ontológica do trabalho docente a partir da conceituação de autonomia

O espanhol Contreras (2002) observa que o docente é cada vez mais deslocado de sua função principal, qual seja, a de pensar criticamente sobre o ato de ensinar. Nesse sentido, o docente técnico objetiva aplicar o que está previamente posto num currículo, de forma tecnicista, mecânica, sem reflexão, criando uma autonomia ilusória que desvincula a prática da teoria. É o que se entende por “expert infalível”, mais preocupado com o rigor, em extrair uma reprodução do seu conhecimento especializado, do que pela relevância, uma visão global de seu campo de atuação. Logo, se o ensino é a observação sine qua non de um resultado já definido, não pode haver criação, mas apenas reprodução do currículo, do que pensa o professor, ou de ambos (no caso do professor aplicar o currículo integralmente). É essa instrumentalidade no ato de educar para a técnica e não para a totalidade, para a epistemologia do ser, em que se encontra o “expert infalível”, que é o docente técnico garantindo a perpetuação dos juízos de valor que muitas vezes lhes são impostos em detrimento das demandas dos estudantes, dos anseios da comunidade e de sua própria perspectiva de educação.

Concebido o ensino como ciência aplicada, a decisão sobre os fins perseguidos fica fora do que se considera um processo racional e científico. O conhecimento pedagógico, entendido como o meio mais eficiente para a consecução de fins preestabelecidos, não entra no debate de problemas normativos, que se consideram alheios às questões de fato sobre as quais, segundo o positivismo, trabalha a ciência. A pesquisa busca a forma de desenvolver os meios para fins que vem estabelecidos nas políticas educativas ou no pensamento dominante na comunidade. O docente técnico é o que assume a função da aplicação dos métodos e da conquista dos objetivos, e sua profissionalidade se identifica com a eficácia e eficiência nesta aplicação e conquista. Não faz parte de seu exercício profissional o questionamento das pretensões do ensino, mas tão somente seu cumprimento de forma eficaz. (CONTRERAS, 2002, p. 102).

Vale notar que não se trata de fazer uma avaliação acompanhada de um pré- julgamento do professor, individualizando a manifestação de uma questão social. Deve-se, isto sim, analisar quais são as condições que levam à pauperização do trabalho docente ao mesmo tempo em que a defesa da educação como um espaço de resistência, disputa, contradições, de combate à formação de professores como técnicos especializados se coloca (GIROUX, 1997, p. 158). Analisar essa dialética, esses dois movimentos contraditórios, permite compreender que a autonomia docente não é uma discussão que se dá no vazio, na imparcialidade do plano cartesiano, mas na concretude das relações sociais, principalmente

trabalhistas, em que estes profissionais estão envolvidos. A autonomia docente só pode ocorrer dentro de um plano concreto. É na interação do sujeito histórico com as condições materiais de existência do docente que ocorre a observação da autonomia dos profissionais de Pedagogia e Biologia deste trabalho.

O docente como profissional crítico e reflexivo, ao contrário, integra meios e fins do conhecimento pedagógico para criar novas perspectivas, ao invés de esperar o mesmo produto dos estudantes – quase sempre um recorte do conteúdo abordado em sala. Deste modo, o docente e a situação que visa compreender mantém uma relação transacional configurada de duas formas, a saber: a) a dialética entre sujeito e objeto, sem separação entre pensar e fazer e com a modificação constante da avaliação da situação, o que é impossível ocorrer com o docente técnico; e b) a situação-problema também faz parte do docente, não é exterior ao seu juízo de valor, à sua pesquisa para compreendê-la (CONTRERAS, 2002, p. 111). Dada essa configuração de perspectiva docente, há uma outra visão de teoria e prática, agora não mais centrada em atender demandas estranhas aos sujeitos do processo pedagógico e que por essa razão criam o sentimento de pertencimento nos sujeitos. O sentimento de pertencimento é possível porque integra a ação do docente reflexivo com o educando, num processo de emancipação que não é linear, portanto não unívoco, e que liberta em conjunto os seres para que aprendam um com o outro.

A racionalidade técnica vê a ação profissional como externa a uma realidade alheia69. Subentende-se assim que a autonomia não pode ser obtida dentro da racionalidade técnica, senão sob a sua forma ilusória, conforme expõe Contreras (2002). Para que o docente possa realizar seu trabalho numa concepção ontológica, em sua totalidade, deve ter liberdade para transformar o currículo de acordo com as situações que encontra, e não adaptar modelos pré- moldados às distintas realidades que se apresentam tanto na sala de aula como na comunidade em que atua:

(...) a tendência de reduzir os professores ao status de técnicos especializados dentro da burocracia escolar, cuja função, então, torna-se administrar e implementar programas curriculares, mais do que desenvolver ou apropriar-se criticamente de currículos que satisfaçam objetivos pedagógicos específicos. (GIROUX, 1997, p. 158).

Vemos, desse modo, que a ação docente interfere diretamente no tipo de profissional que se quer formar. É possível, então, um docente reflexivo formar um docente técnico, ao passo que o caminho inverso também permanece, pois esse não é um processo linear e toda

ação é condicionada, tem uma interferência externa, além da própria autonomia do discente que é um fator relevante. Há elementos do docente crítico e reflexivo e do docente técnico em um mesmo sujeito. A descoberta crítica que liberta o oprimido, não raro, é negada por este, pois “num primeiro momento deste descobrimento, os oprimidos, em lugar de buscar a libertação, na luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou subopressores” (FREIRE, 1987, p. 17). É por ser parte da situação, de estar envolvido no problema, que o professor tende a reproduzir o que é a sua prática, o seu pensar e fazer. Toda autonomia sofre alguma interferência externa, em maior ou menor grau, com consequências na formação dos discentes70. Nesse aspecto, há convergência de Contreras (2002) com o pensamento de Freire (1987), quando este último afirma que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987).

Quando se encontram situações em que não há respostas predeterminadas, uma espécie de cumprimento de manual, é o momento de se refletir sobre a racionalidade prática71. A racionalidade prática permite com que o estudante aprenda autonomamente, livre, estando em oposição à racionalidade técnica, que vê o discente como um ser incompleto que necessita ser transformado prioritariamente por um agente externo, nesse caso, o docente. O docente deve exercer a autonomia sem se esquecer de ouvir outras pessoas envolvidas no processo pedagógico para que não caia na armadilha retórica de achar que autonomia é sinônimo de liberdade para agir sozinho. A autonomia não pode ser uma prática vinculada somente ao docente, senão estar-se-ia definindo autoritarismo. É por se reconhecer que existem sujeitos aprendizes e autônomos e que o conteúdo ensinado exige uma responsabilidade social, envolvendo um conjunto de pessoas mais amplo que a sala de aula, que a autonomia deve ser praticada sempre sob uma ótica de construção coletiva. É a partir daí que toma forma e torna- se prática do docente reflexivo. Para que o docente tenha autonomia, aqui compreendida em sua forma emancipada, ampla, e não em seu caráter ilusório, esse conceito deve ser analisado não puramente na relação que o profissional tem com estudantes, mas também com a gestão do curso e a sociedade que é atendida por essa instituição, como vê-se a seguir:

Entende-se que autonomia, no contexto da educação, consiste na ampliação do espaço de decisão, voltado para o fortalecimento da escola e melhoria da qualidade de ensino que oferece, e da aprendizagem que promove pelo desenvolvimento de sujeitos ativos e participativos. Autonomia de gestão escolar é a característica de um processo de gestão que se expressa, quando se assume, com competência, a

70 O conceito de autonomia vinculado à educação a distância, como a autonomia operacional (FEENBERG, 2010), foi tratado mais adiante.

71 Contreras cita as contribuições de Schön e Stenhouse quanto à racionalidade prática, analisando seus fundamentos aristotélicos, substancialmente no que tange às atividades práticas e técnicas.

responsabilidade social de promover a formação de crianças, jovens e adultos, adequada às demandas de vida em uma sociedade em desenvolvimento, mediante aprendizagens significativas, a partir de decisões consistentes e coerentes, pelos agentes, levando em consideração, objetivamente, as condições e necessidades expressas desses jovens e crianças, devidamente compreendidas, no contexto de sua sociedade. (LÜCK, 2006, p. 91).

De acordo com Lück (2006) é latente observar que dentro de uma visão democrática de educação a autonomia é vista sempre de forma coletiva, objetivando o aperfeiçoamento do processo de ensino-aprendizagem e dando voz aos sujeitos participantes, não apenas ao docente ou à aplicação do currículo. Outro ponto importante é que mesmo quando não se analisa a autonomia de forma institucional, praticada pela gestão, nota-se a importância de decisões em grupo e relacionadas à conjuntura vivenciada pela comunidade. Fala-se então de autonomia no âmbito político, de concepção de educação, que é diferente de autonomia financeira, também importante para se garantir a autonomia docente. A autonomia financeira pode ser tanto institucional, quando relacionada à forma de captação e gestão dos recursos de uma instituição, como numa esfera menor, individual, ao tratar de remuneração percebida por profissionais que trabalham no Sistema Universidade Aberta do Brasil. O estudo da autonomia na legislação, como visto no subcapítulo “2.1 – Autonomia na legislação: um olhar a partir da organização da educação brasileira”, pontuou que autonomia financeira é um termo que aparece no Art. 207 da Constituição Federal da República, limitando-a a forma de captação e aplicação de recursos das universidades. As duas esferas da autonomia financeira não estão em sistemas distintos, separadas, mas dependem uma da outra e, em se tratando de uma instituição pública, devem coexistir dentro da mesma organização.

Saber o que não é autonomia é tão ou mais importante quanto conceituar a palavra. A simples transferência de responsabilidades ou até a alocação de recursos financeiros sem liberdade de planejamento para execução, ou a exclusão de atores do processo de eleição para dirigente da instituição, são exemplos da perda de autonomia (LÜCK, 2006, p. 102-103). O ato de ensinar exige do docente uma série de atributos, que vão da competência à compreensão e, sem eles, o processo de aprendizado não acontece:

Como professor, tanto lido com minha liberdade quanto com minha autoridade em exercício, mas também diretamente com a liberdade dos educandos, que devo respeitar, e com a criação de sua autonomia bem como com os ensaios de construção da autoridade dos educandos. (FREIRE, 1996, p. 37).

Freire (1996) revela a importância da liberdade, mas também da autoridade para a prática docente. Liberdade e autoridade são conceitos aplicados tanto ao docente como ao educando, de forma que ambos sabem o limite do outro e se respeitam nessa relação.

2.3 A autonomia do professor em cursos EaD: o Programa UAB/UnB como