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A necessária autoridade do mestre e disciplina do educando: a propedêutica formativa

No documento 2015DioneiMartello (páginas 106-108)

2.5 Educação enquanto tensão entre flexibilidade e disciplina: o apolíneo e o dionisíaco na

2.5.2 A necessária autoridade do mestre e disciplina do educando: a propedêutica formativa

Essa educação para o devir, com vistas à autonomia do aluno, cuja flexibilidade torna-se essencial para sua concretização (pela saída dos esquemas predefinidos didaticamente) não deve ser encarada como uma concessão ilimitada de liberdades. Ou seja, não podemos associar a filosofia da educação de Nietzsche a uma caótica e cambaleante tentativa de colocar nas mãos dos alunos sua instrução, mesmo quando os estudantes sejam os gênios tão estimados por Nietzsche. Nesse sentido, Nietzsche crítica à suposta autonomia acadêmica concedida aos estudantes. Esse tipo de educação mais livre, focado na pura e simples oralidade, realiza-se através do abismo pedagógico entre um professor que fala e expõe o que bem entende e vários alunos “sem rosto” (já que as individualidades não são levadas em conta) que ouvem, interpretam e retém aquilo que eles, em sua imaturidade, acharem importante.

Para Nietzsche, nos ginásios de seu tempo se incentivava a produção literária, a escrita e o pensamento reflexivo em jovens que ainda não estavam suficientemente preparados para isso. Em suas palavras,

[Eles] são considerados, sem um exame mais rigoroso, como seres capazes de ter opiniões pessoais sobre os fatos e os personagens mais sérios, embora uma educação correta devesse justamente aspirar, com todos os seus esforços, reprimir as ridículas pretensões de autonomia de julgamento e apenas habituar o jovem a uma estrita obediência sob a autoridade do gênio (NIETZSCHE, 2009 FE, 86).

A liberdade exageradamente consentida a eles fazia com que usassem suas leituras mal digeridas e superficiais como trampolins, muletas para, sendo intelectualmente coxos, conseguirem se locomover de forma cambaleante no mundo das letras. Desse modo, o jovem, imaturo e despreparado, ia criando uma autossatisfação sobre o que escrevia; um pedantismo esnobe; uma falsa ideia de erudição. Assim, aquilo que durante séculos foi trabalho de poucos e brilhantes homens, como é a produção filosófica e literária, passava às mãos de rapazes afoitos e deslumbrados, que iriam fazer de sua “doxologia” algo digno de ser publicado e lido por outras pessoas.

Por conseguinte, “[...] desde o seu isolamento acadêmico, e mesmo depois de ter deixado o ginásio, ele [o estudante] fica privado de toda formação ou de toda direção ulterior que o levaria à cultura, para assim viver por si mesmo e ser livre” (NIETZSCHE, 2009 FE, p. 148). Em outras palavras, esta suposta liberdade acabava destruindo ou restringindo a formação do

jovem, em sua acepção mais sólida e coerente. A não inclusão dele à cultura e à tradição filosófica de maneira adequada o deixava, ulteriormente, sem preparo e competência para, aí sim, pensar por contra própria, após ter digerido o vasto legado teórico das gerações passadas. O efeito colateral seria uma pseudofilosofia construída com base nos prosaísmos de suas experiências pessoais, que iriam se sobrepor aos grandes problemas da filosofia. Para Nietzsche,

Toda cultura começa, ao contrário de tudo o que se elogia hoje com o nome de liberdade acadêmica, com a obediência, com a disciplina, com a instrução, com o sentido do dever. E, assim como os grandes guias têm necessidade de homens para conduzir, também aqueles que devem ser conduzidos têm necessidade de guias: a propósito disso, na ordem do espírito, reina uma predisposição mútua, ou melhor, uma harmonia preestabelecida (NIETZSCHE, 2009 FE, p. 158).

Nietzsche expõe esse misto de flexibilidade e disciplina até mesmo ao tratar da produção artística e literária. Uma obra não pode ser de modo algum avaliada segundo um critério rígido e inflexível. A arte, bem como a literatura (que não deixa de ser uma forma de arte, pelo menos no sentido grego), não é ciência, toda forma de tentar tratá-la com exatidão tende a restringi-la. Sendo assim, o artista deve ter liberdade de criação e deixar que sua obra siga o impulso de sua criatividade e as nuances de seu humor. Também é interessante, principalmente no que se refere à escrita, ao invés do desenvolvimento detalhado e exaustivo de uma ideia, a exposição incompleta e lacunar, preservando um tom obscuro que incite a imaginação do leitor, que dê brechas para ele mesmo completar e enriquecer o pensamento ali tratado.

Todavia, por mais que se queira dar liberdade ao artista, não se deve desobrigá-lo a se manter dentro de certos limites impostos pela tradição. Caso contrário, se cairá num caos produtivo, no qual não se terá mais condições de saber o que é ou não arte. Isso é muito comum em nossos dias. A arte abstrata, em cada uma de suas acepções, por vezes é tão absurda que o valor e o nível artístico somente podem ser encontrados no simbolismo da interpretação. É uma arte de legenda, em que o valor em si e a fruição deixam de existir.

Voltando ao assunto, se essa liberdade exagerada pode macular e “despotencializar” até mesmo o gênio, quem dirá o homem vulgar. O homem vulgar, que na verdade representa a maioria dos homens, de acordo com Nietzsche (2005, p. 187-192) é obtuso, arrogante, egocêntrico, volúvel e extremamente maleável em seus juízos e opiniões. Ao mesmo tempo em que não abrem mão de emitir seus pontos de vista, costumam adequá-los aos pontos de vista de seu meio. Isso se não forem teimosos, pois aí, da mesma forma que jamais recuam ao exporem seus juízos, também não suportam que alguém os contradiga. “Como falta tempo para pensar e tranqüilidade no pensar, as pessoas não mais ponderam as opiniões divergentes: contentam-se em

odiá-las. Com o enorme aceleramento da vida, o espírito e o olhar se acostumam a ver e julgar parcial ou erradamente, e cada qual semelha o viajante que conhece terras e povos pela janela do trem” (NIETZSCHE, 2005, p. 175).

Quando tal postura se estende a um grupo grande de indivíduos, quando se torna uma característica preponderante numa sociedade, quando um único sujeito desse grupo pega para si a missão de expressar as opiniões gerais, temos um tirano e um regime ditatorial. Ao fracassarem em seus intentos ou perceberem que o mundo e eles mesmos não são do jeito que imaginavam, procuram bodes expiatórios para receberem a descarga de sua ira. Para esse tipo de pessoas o mestre deverá ser ainda mais duro, e jamais deixar que seu pulso firme esmoreça. “Na luta contra a estupidez, os homens mais justos e afáveis tornam-se enfim brutais. Com isso podem estar no caminho certo para a sua defesa; pois a fronte obtusa pede, como argumento de direito, o punho cerrado” (NIETZSCHE, 2005, p. 191-192).

Em suma, ao mesmo tempo em que uma educação condizente com os ideais “aristocráticos” de Nietzsche deva, com todas as forças, criar estratégias para a elevação dos sujeitos mais insignes, lançando mão dos recursos que estiverem disponíveis (sempre com um alto grau de flexibilidade), igualmente não pode abrir mão da figura do mestre e de seu papel de guia para os educandos. Ou seja, é preciso de um braço forte que coíba as pretensões de liberdade numa época em que ela não deva existir, devendo ser suplantada pela obediência e disciplina para com o professor.

No caso do indivíduo, a tarefa da educação é a seguinte: torná-lo tão firme e seguro que, como um todo, ele já não possa ser desviado de sua rota. Mas então o educador deve causar-lhe ferimentos, ou utilizar os que lhe produz o destino, e, quando a dor e a necessidade tiverem assim aparecido, então algo de novo e nobre poderá ser inoculado nos pontos feridos. Toda a sua natureza o acolherá em si mesma e depois, nos seus frutos, fará ver o enobrecimento (NIETZSCHE, 2005, p. 143).

Mas, de acordo com Nietzsche, qual seria a imagem mais digna de mestre para levar adiante essa tarefa?

No documento 2015DioneiMartello (páginas 106-108)