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Os estudos históricos

No documento 2015DioneiMartello (páginas 56-58)

1.2 O homem como construtor de verdades: crítica à “reificação” dos conceitos e um novo

1.2.3 Um novo olhar sobre a ciência

1.2.3.1 Os estudos históricos

Os ataques à metafísica e a todas as concepções de mundo que queiram ocupar um lugar privilegiado, respaldado por esse novo olhar sobre as ciências, permitiram a Nietzsche expandir seus horizontes de pensamento. Nesse sentido, a psicologia (não necessariamente o que entendemos hoje por psicologia) e a história foram extremamente importantes para aprofundar suas críticas, pois ao não se considerar a temporalidade e a subjetividade dos fatos, facilmente se cairá nas armadilhas idealistas das supostas essências.

Assim, na visão de Nietzsche, a investigação psicológica para se compreender a natureza humana e a origem dos condicionamentos que direcionam e restringem a vontade dos homens é essencial. A análise psicológica e o estudo histórico dos alicerces mantenedores da eticidade de um grupo humano específico descortinam os mecanismos da moral, pela sua gênese e razões justificadoras. O resultado prático de tal empreitada é a relatividade e dessacralização dos preceitos morais. O critério decisivo para validá-los, como vimos anteriormente, é a utilidade de seus resultados. Ou seja, da categoria de princípios a priori, o conjunto de regramentos morais e fundamentos intelectuais passam, nas palavras de Nietzsche, à mesa de dissecação, para serem separados de seu conjunto, analisados e apresentados na forma que realmente são.

Mas não é só isso. Com esse olhar sobre os estudos históricos Nietzsche lança suas críticas à modernidade. A ideia de expansão e abertura, característica da modernidade, encara o tempo, o passado e a história meramente como cadeias de um silogismo cujo corolário é sempre o devir, a eterna sucessão de “agoras” ligados a contragosto com o obsoleto do “antes”. Essa objetivação do passado como uma simples estrutura fixa no tempo e que necessariamente deve ser superada, não se sustenta. Somos “seres históricos”; a história nos determina, não dentro de um sistema teleológico inexorável, mas continuamente.

O passado é dinâmico, ele se reinventa através de novos olhares sobre os fatos, na descoberta de novos fatos ou na reinterpretação deles. Portanto, o referencial deve sempre ter o seu lugar no mundo, não pela assimilação passiva e mimética, que, muito provavelmente, cairia num ridículo absurdo, mas no olhar crítico, perscrutador e selecionador do horizonte histórico, com vistas a acomodá-lo nos contornos da imediaticidade. Ou seja, o objetivo não é negar os alicerces do modernismo, já que o próprio Nietzsche defende o eterno devir das coisas, como

também recrimina a fossilização de tradições, e sim trazer junto a ele a tradição que, em muitos casos, o pressupõe (WEBER, 2011, p. 21-24).

Em outras palavras, a consciência histórica de um indivíduo e de um povo, quando bem formada, pode servir como uma ferramenta para se compreender as estruturas factuais responsáveis pela formação de um conjunto cultural e civilizatório. Ela serve como um elo que nos une aos grandes acontecimentos e personagens, fazendo com que o edifício da civilização humana tenha continuidade e ressonância através dos séculos. Assim, haverá a perpetuação dos sentimentos mais nobres e dos impulsos criativos de outrora.

Do mesmo modo, a identidade cultural de um povo conseguirá sobreviver pelas mãos das gerações mais novas, cujo objetivo será encontrar significado e importância no legado de seus predecessores. Contudo, como referido anteriormente, não na forma de um simples mimetismo, mas sabendo adaptar e interpretar esse legado histórico sob a luz de novos conceitos, coerentes e relevantes para e com a realidade imediata. Ou seja, o mais importante para a formação de uma consciência histórica é encarar a história como uma caixa de ferramentas, que pode ou não se encaixar a um determinado propósito.

Um voltar ao passado, sem juízos de valor pré-concebidos, permitirá ao pensador entrar em contato com as mais variadas cores do grande mural pintado pela civilização humana. É como um pintor que, pela proximidade da paisagem a ser reproduzida, não consegue captar o conjunto harmônico do seu modelo, sendo necessário retroceder até o ponto exato em que cada elemento possa ser visto em seu contexto. Desse modo, cada uma das verdades e das crenças enraizadas no fundo da alma do pensador parecerão até mesmo ridículas. A ciência possui todos os pré- requisitos para tal empreitada.

Porém, quando a consciência histórica é constituída de um jeito equivocado acaba trabalhando em prol da fossilização veneranda do horizonte valorativo histórico, o que acaba por impedir a emergência do novo, da transformação e da evolução, consequências de um processo iconoclasta destrutivo, necessário à vida e à sociedade. Consequentemente, “o conhecimento do passado só é desejável quando se põe a serviço do passado e do presente, e não quando enfraquece o presente e arranca os germes vivos do futuro” (NIETZSCHE, 1955 CI, p. 105). Em outras palavras, “quando, atrás do instinto histórico, não há um construtor em ação, quando não se destrói e desentulha a fim de que um futuro vivo em esperança estabeleça seu domicílio no solo livre, quando a justiça reina sozinha, o instinto criador se enfraquece e se desencoraja” (NIETZSCHE, 1955 CI, p. 109).

Toda boa educação começa com um direcionamento adequado da racionalidade, visando o seu emprego livre das armadilhas da tradição e da reificação. Os erros de raciocínio e a teimosia em não reconhecê-los foram a causa principal do fortalecimento dos elementos antirracionais e do seu vício pelo comodismo. Mas não devemos ficar apenas na posição crítica, bem pelo contrário, temos que olhar o passado da humanidade, aquilo que nos precedeu no tempo, como etapas sucessivas necessárias para o progresso da civilização. Cada geração inicia seu trabalho assimilando aquilo que as gerações anteriores produziram, para, num segundo momento, deixarem a sua marca. Foi nesse passo lento e necessário que a humanidade viu florescer a cultura e a ciência, antecedida pela religião e pela arte.

No documento 2015DioneiMartello (páginas 56-58)