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Figuras de transição: as tipologias humanas superiores

No documento 2015DioneiMartello (páginas 98-101)

2.4 Considerações sobre a concepção nietzschiana de homem superior

2.4.3 Figuras de transição: as tipologias humanas superiores

Nietzsche usou vários termos ao se referir aos homens superiores. Na juventude, nos primórdios de seu percurso intelectual, ele trata desses sujeitos com naturezas mais evoluídas como “gênios”. O gênio, como nos referimos em outra oportunidade, tem como característica transformar os horrores da existência, a tragicidade primordial da vida, em matéria prima para sua produção. Por tal motivo, está atrelado a uma, por assim dizer, “cosmologia artística”. Ou seja, enquanto um transmutador dos elementos naturais, que, em suas mãos, tornam-se “fenômenos estéticos”, o gênio consegue mesclar e expressar a dupla condição humana, tratada por Nietzsche através das pulsões apolínea e dionisíaca. Em outras palavras, o fundamento trágico natural, inerente à própria vida, e sua pulsão característica (dionisíaca), transforma-se em matéria prima no processo criativo engendrado pelo artista, pelo seu poder criador (pulsão apolínea). Ele é a expressão máxima dessa tensão e, a partir dessa sua característica, como já tratamos em tópicos anteriores, ele consegue ser o meio a partir do qual o seu povo e sua época se perpetuam (ALMEIDA, 2014, p. 12).

Eis a razão pela qual o gênio poderá imprimir um selo de perenidade à obra de suas mãos e, por conseguinte, estabelecer um vínculo entre o seu povo e a eternidade, libertando-o assim da efemeridade dos instantes fugazes. Mas tudo isso ele só poderá fazer – conclui Nietzsche – quando for amadurecido e nutrido no seio materno da cultura (Bildung) de um povo (ALMEIDA, 2014, p. 12).

No entanto, no decorrer de sua obra e com o amadurecimento de seus conceitos, tais indivíduos, dependendo de seus atributos e objetivos, recebem outras denominações. Em meio as suas críticas à moral Nietzsche apresenta a figura do “espírito livre”. Nietzsche chega até essa imagem exemplar pelo caminho de autossuperação e conhecimento que ele mesmo teve que trilhar. Os sintomas cada vez mais acentuados de sua doença, o afastamento dos antigos mestres,

a grande empreitada contra a metafísica, o isolamento, o pouco caso de seus contemporâneos, todas essas adversidades, ao invés de fazerem Nietzsche se entregar ao desespero, recrudescem seu empenho e vontade de lutar. O corolário é a tipologia do espírito livre, imagem afirmativa, reação positiva advinda em meio ao sofrimento.

Os espíritos livres são aqueles com inteligência para perceberem o engodo dos princípios da moralidade e com coragem para assumirem essa atitude crítica. A tradição, a ordem pré-estabelecida, os juízos de valor, cada elemento calcificado na mentalidade dos homens e no seio da sociedade entram na mirra dos espíritos livres, cuja tarefa é derrubá-los, destruí-los e ridicularizá-los, se preciso for. Porém, como veremos adiante, os espíritos livres não representam o cume da filosofia de Nietzsche. O passo seguinte, após o ataque às estruturas sociais axiomáticas, é a construção de novos valores, que emergem, a partir daí, não como preceitos metafísicos reificados, mas baluartes de uma razão livre e com poderes de criação (WEBER, 2011, p. 214-219). Em suma,

É chamado de espírito livre aquele que pensa de um modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra [...] de resto, não é próprio da essência do espírito livre ter opiniões mais corretas, mas sim ter se liberado da tradição, com felicidade ou com um fracasso. Normalmente, porém, ele terá ao seu lado a verdade, ou pelo menos o espírito de busca da verdade: ele exige razões; os outros, fé (NIETZSCHE apud WEBER, 2011, p. 214).

O homem que pega para si a missão de afirmar a vida, apesar dos infortúnios inerentes a ela; com firmeza de caráter para enfrentar aqueles que ainda não conseguiram se desvencilhar da tradição, da moral e de Deus; com consciência depurada e a força construtiva canalizada em prol da autossuperação, de si e do mundo, é qualificado por Nietzsche como o “além do homem” (ou super-homem, como ficou conhecido em língua portuguesa, principalmente no Brasil). Em Assim

falou Zaratustra, Nietzsche se refere a ele nesses termos;

Os mais preocupados hoje indagam: “Como se conservará o homem?” Zaratustra, porém, foi o primeiro e único que indagou: “Como se superará o homem?” [...] pelo super-homem, almeja o meu coração, é ele o meu primeiro e único anseio – e não o homem: não o próximo, não o mais pobre, não o mais sofredor, não o melhor. [...] o que posso amar no homem, ó meus irmãos, é que ele é uma transição e um ocaso. E também em vós há uma coisa que em mim suscita amor e esperança (1983, p. 288).

O além do homem é uma figura de transição relacional, pois, partindo-se do pressuposto da morte de Deus, ele é o polo afirmativo resultante do niilismo, da ausência de sentido metafísico transcendente, cujo antagonista, o polo negativo, é o “último homem”. Tal

personagem é aquele que percebe o vazio da existência e prefere abster-se de agir e se entregar a tarefa, compartilhada por todos os seres biológicos, de se elevar para além de si (como o processo evolutivo nos ensina). Na relação entre os dois, do além do homem e do último homem, percebemos o contraste entre força versus fraqueza, criação versus estagnação, reação versus prostração, superação versus comodismo, dentro do panorama de caos e vazio decretado pela nova ordem ontológica do devir (WEBER, 2011, p. 233-238).

No entanto, pelo fato de estar vinculado, enquanto figura afirmativa, ao último homem, o além do homem não é o grau excelso imaginado por Nietzsche em seu projeto de constituição do humano. Acima dele está o “homem soberano”, fruto positivo de todas as hipóstases vencidas. Ele, como herdeiro dos resultados angariados pelo além do homem, tem mais liberdade para se locomover e, enfim, criar novos valores, mesmo que transitórios, pois a superação de si e do mundo orquestrada não leva a estagnação. A teleologia deixa de existir e em seu lugar emerge o devir ininterrupto, o eterno processo, a autossuperação permanente que encontra legitimidade e justificação em seu próprio movimento. Movimento esse de afirmação da vontade como um fim em si mesmo, caracterizado por Nietzsche, como vimos, de vontade de potência (WEBER, 2011, p. 238-242).

Essa nova virada argumentativa está presente nas metáforas usadas por Nietzsche nesse período, que representam a oscilação do espírito ao se desprender da tradição (metáfora do barco navegando em meio ao oceano infinito, sem ancoradouros), a amplitude do olhar que, por ter sido liberado do véu da ignorância, se eleva e consegue ter a visão panorâmica do mundo (metáfora da montanha e da águia) e a necessidade de se voltar novamente à terra e usar o que se conseguiu para a criação de novos valores (metáfora da serpente e do leão). Todas elas, em suas respectivas simbologias, referem-se “ao problema da construção do humano como preocupação central” (WEBER, 2011, p. 223-224). E principalmente essa última metáfora deixa claro como, sem a experimentação que desemboca no impulso criativo, haveria o perigo da bestialidade da ausência de valores, ou a superinflação do indivíduo narcisista desarraigado de qualquer tipo de interesse por coisas maiores e duráveis. Mas a metáfora que melhor expressa esse processo é a das três metamorfoses. O espírito transformado em camelo estaria no mesmo patamar do homem de espírito livre, transformado em leão, estaria da mesma forma no patamar do além do homem, e metamorfoseado em criança, estaria no mesmo patamar do homem soberano.

Independente de qual conceito nietzschiano se utilize, seja gênio, espírito livre, além do homem ou homem soberano, fica clara a necessidade de se pensar o homem como uma figura de transição permanente, sem um fim, objetivo ou essência pétrea e imutável. A sociedade deveria

criar meios para proteger e potencializar os indivíduos com dons mais completos, com mais seiva criativa. Assim, o gênio se levantaria mais uma vez, com toda a impavidez de um pensador, fazendo tremer os alicerces da ordem social. Pois, como diz Emerson:

Cuidado, quando o grande deus fizer chegar um pensador ao nosso planeta. Tudo estará então em perigo. É como se, numa grande cidade, um incêndio eclodisse e ninguém soubesse quem estaria ainda a salvo e quando ele acabaria. Assim, não há na ciência que amanhã não pudesse ser derrubado, não há mais qualquer reputação literária que fosse, nem mesmo as celebridades pretensamente eternas; todas as coisas que nesta hora são caras e preciosas ao homem não são senão o resumo de idéias que surgiram no seu horizonte espiritual e que são a causa da ordem atual das coisas, tal como a macieira produz suas maçãs. Um novo grau de cultura subverteria e jogaria no chão todo o

sistema de aspirações humanas. (EMERSOM apud NIETZSCHE, 2009, p. 258 SE, grifo

do autor).

Em decorrência disso, muitas são às vezes nas quais o gênio será cumulado de injúrias. “Suas virtudes são banidas pela sociedade; os seus impulsos mais vivos, que ele consigo traz, desenvolvem-se directamente com as emoções deprimentes, com a suspeita, o medo, a desonra” (NIETZSCHE, 1988, p. 104). Mas somente “[...] na nossa sociedade domesticada, medíocre, castrada, que um homem natural, o qual vem da montanha ou das aventuras do mar, degenera necessariamente em delinquente” (NIETZSCHE, 1988, p. 105), pelo fato desse homem não ter condições para reinventar o mundo, pois seu meio não lhe permite um grau propício de flexibilidade frente aos preceitos e regramentos cultuados e louvados, sejam de qual espécie forem. A seguir veremos como se dá essa tensão entre flexibilidade e disciplina, tão necessária para o bom andamento do processo formativo.

2.5 Educação enquanto tensão entre flexibilidade e disciplina: o apolíneo e o dionisíaco na

No documento 2015DioneiMartello (páginas 98-101)