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Sobre os defensores da igualdade: o despotismo mascarado

No documento 2015DioneiMartello (páginas 85-87)

2.3 A cultura enquanto um produto para poucos homens

2.3.1 Sobre os defensores da igualdade: o despotismo mascarado

Esse desejo do homem por um “amanhã melhor”, por uma época na qual sua vida fosse plena de felicidade e em que todos pudessem conviver de forma igualitária, sempre esteve presente em cada indivíduo e grupo humanos. De acordo com Nietzsche, esse desejo advém da época em que, após uma longa e extenuante caçada, o homem primitivo sonhava com o momento de sentar e relaxar. Nos tempos modernos, a busca pelo paraíso terrestre se atrelou a um horizonte político, à ideia de uma organização social composta de elementos diretivos cuja plena efetividade seria responsável por um destino feliz para aqueles abrangidos por ela.

O comunismo, e sua versão menos radical, o socialismo, de todas as formas de idealização política, foram as que mais adeptos conseguiram reunir em torno de si. Afinal, como não desejar um sistema governamental assentado em conceitos como igualdade, não apenas de direitos jurídicos, mas econômica, e fruição compartilhada dos benefícios do progresso tecnológico?! No entanto, como diz o ditado, de boas intenções o inferno está cheio. Apesar do discurso utópico, o comunismo, para Nietzsche, na prática, almejava tomar para si o poder absoluto para gerir o Estado e condicionar as pessoas que nele viviam, para que elas, como células do organismo e, portanto, descartáveis, vivessem em consonância com seus postulados. Ou seja, era só uma variação dos governos despóticos, dos quais a história está cheia, e, por isso, se assentava, além da lavagem cerebral maciça, na força e no terror.

O socialismo é o visionário irmão mais novo do quase extinto despotismo, do qual quer ser herdeiro; seus esforços, portanto, são reacionários no sentido mais profundo. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como até hoje somente o despotismo teve, e até mesmo supera o que houve no passado, por aspirar ao aniquilamento formal do indivíduo: o qual ele vê como um luxo injustificado da natureza, que deve aprimorar e transformar num pertinente órgão da comunidade (NIETZSCHE, 2005, p. 231, grifo do autor).

Talvez a grande diferença do comunismo em relação a outros sistemas despóticos, seja o fato da religião não fazer parte de seu universo de ação. Todos os Estados se valeram de um fundamento religioso para apaziguar as paixões humanas e conter as revoltas. Afinal, já que o céu está além da vida, não é relevante essa ser ou não suportável e recheada de sofrimentos. A grande meta para pensarmos numa sociedade melhor é conseguirmos construí-la sem nenhuma forma de alienação ou muleta, mantida e fortalecida por homens de uma natureza mais completa, e não na crença na extinção de privilégios e classes sociais, levada a efeito por sistemas políticos extremamente centralizadores.

Por isso, Nietzsche tinha uma verdadeira aversão ao conceito de Estado defendido em sua época, em especial o Estado alemão. Para ele, como vimos acima, a frieza astuciosa, denominada burocracia, paradoxalmente ligada à exaltação entusiástica dos espíritos subalternos, tornou o Estado um ídolo venerável, assim como outrora foram as religiões. A grandeza, a identidade e os valores dos povos não dependem da égide de uma força institucionalizada, pois brotam espontaneamente. Como Zaratustra eloquentemente fala no livro que leva seu nome:

Chama-se estado o mais frio de todos os monstros frios. E, com toda frieza, também mente; e esta mentira sai rastejando da sua boca: “Eu, o Estado, sou o povo!” [...] É mentira! Criadores, foram os que formaram os povos e suspenderam por cima deles uma fé e um amor; assim serviram a vida. [...] Destruidores, são os que preparam armadilhas para muitos e as chamam Estado; e suspendem por cima deles uma espada e cem cobiças (NIETZSCHE, 1983, p. 65).

Reiterando o que foi abordado anteriormente, todas as sociedades que existiram até hoje foram compostas por classes sociais distintas, em que umas se sobressaíam pela liderança, acesso a uma instrução de qualidade e poder econômico. Enquanto outras se colocavam num patamar inferior, de subordinação e aceitação passiva de seu lugar. Esses extremos sociais, a pirâmide valorativa dos seres humanos, se levarmos em conta os testemunhos da história e a incessante luta pelo poder, são insuperáveis e, dentro de uma perspectiva “meritocrata” de progresso humano pelas mãos de seus agentes mais capazes, benéfico. A única reforma social que deveria ser feita, quando for o caso e a necessidade, é acabar com os privilégios diretamente associados

ao sangue e ao poder econômico e permitir a emergência dos indivíduos melhores e mais aptos a ocuparem uma posição de destaque. Qualquer forma de defesa de uma autoridade maior e transcendental em relação às interações sociais, como o comunismo, deve ser combatida, sendo as leis e seus executores escolhidos pelo conjunto dos melhores e mais brilhantes cidadãos (NIETZSCHE, 2005, p. 218-230).

Se analisarmos a gênese dos nossos valores morais e até aquilo que hoje se concebe como direitos e deveres veremos como se estabeleceram através de relações recíprocas entre força e sujeição. Na origem, os direitos foram constituídos quando os homens, após se darem conta de quanta força possuíam e de como essa força se encontrava em relação a seus semelhantes, passaram a conceber poderes uns aos outros, assim como graus de distinção definidos pela hierarquia dessas forças. Bastava que houvesse uma reviravolta e a balança pendesse para outro lado, para que os direitos também se modificassem. Ou seja, “O fenômeno da decadência é tão necessário quanto as elevações e os progressos da vida” (NIETZSCHE apud MANN, 1955, p. 50).

Por tais motivos, Nietzsche se revolta contra os sistemas socialistas, pelo fato deles acreditarem “[...] que poderiam existir circunstâncias, combinações sociais, em que o vício, a doença, o crime, a prostituição e a miséria deixariam de se desenvolver... Mas isso seria condenar a vida [...] A sociedade não tem o direito de permanecer jovem... a idade não pode ser abolida pelas instituições, nem as doenças, nem os vícios” (NIETZSCHE apud MANN, 1955, p. 50). Portanto, na visão de Nietzsche, foram esses momentos de decadência, de destruição de valores e parâmetros morais de aglutinamento, de oscilação de forças os responsáveis por todas as grandes mudanças políticas e sociais30.

2.3.2 Os escolhidos

A natureza, segundo Nietzsche, reservou a poucos homens os dons necessários para atingirem uma cultura superior e uma capacidade visionária de, eles mesmos, contribuírem para a elevação dessa mesma cultura. Por isso, a extensão do ensino a toda a sociedade e a proliferação de estabelecimentos de nível ginasial e universitário seria um atentado desferido por homens medíocres contra os desígnios da ordem hierárquica e natural do mundo, que escolheu a dedo

30

“Hans Heinz Holz, na introdução, agora, ao quarto volume da sua antologia nietzschiana, identifica a posição inicial de Nietzsche, por determinado aspecto, com a de Karl Marx: ambos críticos da alienação e ambos lutando para libertar o homem da alienação que o defrauda da naturalidade do seu ser – a alienação pelo trabalho no regime econômico capitalista, no caso de Marx, alienação pela religião, no caso de Nietzsche” (SILVA, 1983, p. 8).

No documento 2015DioneiMartello (páginas 85-87)