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A noção de “comunidades linguísticas” e “grupos linguísticos”

Capítulo 3 – POLÍTICAS LINGUÍSTICAS COMO SOLUÇÕES JURÍDICAS

3.1 O papel de convenções internacionais de direitos linguísticos

3.1.4 A noção de “comunidades linguísticas” e “grupos linguísticos”

Vimos que a Carta das Línguas Regionais e Minoritárias da Europa (1992) foi elaborada para atender a demandas específicas da conjuntura daquele continente. Porém, seus princípios servem de base para a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996); são ambos documentos que norteiam as políticas linguísticas de países dependentes na periferia do sistema capitalista, como o Brasil. Embora iniciativas como as que serão abordadas a partir das próximas seções apontem para certa “aclimatação” desses princípios do identitarismo nacional europeu às condições e demandas de subgrupos periféricos brasileiros, com certos avanços conquistados por algumas das línguas de imigração, o arcabouço permanece o mesmo, reproduzindo seu ideário no que é essencial.

Ainda que haja similitudes entre os princípios arrolados nesses documentos, a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996) parece buscar se desvencilhar de certos termos presentes na Carta das Línguas Regionais ou Minoritárias da Europa (1992):

[...] O uso de denominações tais como língua regional ou minoritária não é adotado neste texto porque, embora, em algum caso, o reconhecimento como língua minoritária ou regional possa facilitar o exercício de certos direitos, é frequente o uso dos determinativos para restringir os direitos de uma comunidade linguística (UNESCO, 1996).

Explicitamos problemas relacionados ao uso do termo “línguas minoritárias” na da seção 3.1.1 deste capítulo. Vimos que a Carta das Línguas Regionais e Minoritárias

da Europa (1992) postula uma definição de “línguas minoritárias” que declaradamente não arrola as línguas de imigrantes, uma vez que o Conselho Europeu, ao propor a Carta, pretendia fomentar um sentimento de pertencimento a certa identidade europeia ao postular direitos linguísticos, de modo a “proteger” o que seria “patrimônio europeu”. Essa concepção não só reforça a união supranacional europeia – o que em geral é algo positivo em se tratando de regiões que compartilham certas condições históricas e sociais –, mas também exclui o elemento exógeno (como imigrantes e refugiados), desconsiderando o fato de que o processo de composição da população é irremediavelmente atualizado de forma dinâmica ao longo do tempo, pois fluxos migratórios cada vez mais intensos e massivos caracterizam o mundo imperialista79. Além disso, apresentamos outras questões relacionadas ao emprego dessa classificação, tais como:

Usa-se o termo minoritária para caracterizar as línguas. Seu emprego como atributo de “línguas”, além de restringir o universo de possibilidades de significação do substantivo, como argumenta a Declaração, poderia ocultar que a questão possui relação incontornável com circunstâncias sociais e históricas dos grupos sociais que as falam, não se circunscrevendo estritamente ao terreno linguístico.

Emprega-se o termo minoritária sem observar o sentido de “minorias” que ele suscita. Ocorre que, ao classificar as línguas de minoritárias, o conceito de “minorias” acaba por ser usado para classificar toda sorte de grupos sociais que de fato não estão em igualdade de condições. Algumas questões no terreno linguístico e cultural envolvem, de partida, a luta pelo direito de povoar o território (posse da terra), logo o direito de existir; outras, se relacionam, por exemplo, a uma questão de transmissão da língua a novas gerações. Portanto, o conceito de “minorias” é usado para designar situações díspares.

Recorre-se ao termo minoritária sem atentar para as inconsistências teóricas envolvidas. As teorias da pós-modernidade se fundamentam na relativização de

79 De acordo com o relatório “Tendências Globais” (Global Trends), publicado em 19 de junho de 2019 pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), em 2018 cerca de 70,8 milhões de pessoas estavam em situação de refúgio, o maior número registrado pela ACNUR desde que tal agência foi criada, há setenta anos. Disponível em: <https://www.unhcr.org/5d08d7ee7.pdf#_ga=2.23229054. 591378322.1560974969-1499303082.1560974969>. Acesso em: 20 jun. 2019.

conceitos e na fragmentação de reivindicações por direitos, que resultam em disputas no campo discursivo, sem efeitos concretos em relação à solução de problemas. As chamadas “causas identitárias” usam termos que se valem de expressões que estão no mainstream, tais como: “minorias”, “inclusão”, “lugar de fala”, “micro-poderes”, “empoderamento”, “diversidade”; “sustentabilidade” entre outros (LOVATTO, 2016). Tais termos parecem ser usados de forma corrente, porém muitas vezes sem rigor (ou de forma “fluida”), encobrindo a necessidade de uma análise crítica dos fenômenos.

Embora não se refira a esses problemas, a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996) justifica a escolha em não empregar o termo “línguas minoritárias” pelo fato de seu efeito implicar restrições de direitos a comunidades linguísticas. Sua preocupação em evitar ambiguidades tem efeitos bem definidos: definir quem deve ter acesso aos direitos linguísticos.

1. Esta declaração entende por comunidade linguística toda a sociedade humana que, assentada historicamente em um espaço determinado, reconhecido ou não, se auto-identifica como povo e desenvolve uma língua comum como meio de comunicação natural e de coesão cultural entre seus membros. A denominação língua própria de um território faz referência ao idioma da comunidade historicamente estabelecida neste espaço (UNESCO, 1996).

É fato que uma expressão que procurasse abrigar sob os mesmos desígnios diferentes realidades não seria útil para entendermos as necessidades dos que devem ter seus direitos linguísticos assegurados. Entretanto, o critério de historicidade do assentamento, leia-se, tempo de ocupação do território, é apenas um dos quesitos que podem caraterizar comunidades linguísticas, e não, como sugere a Declaração, um fator condicionante para assim defini-las. A Declaração postula uma distinção entre comunidades linguísticas e grupos linguísticos com base no critério do tempo de ocupação do território:

5. Esta declaração entende como grupo linguístico toda a coletividade humana que compartilha uma mesma língua e está assentada no espaço territorial de outra comunidade linguística, mas sem uma historicidade equivalente, como acontece com os imigrantes, refugiados, deportados ou os membros de diásporas (UNESCO, 1996).

Ora, não se trata de negar a necessidade de identificar com precisão as particularidades, similitudes e diferenças, inclusive históricas, dos segmentos sociais que deveriam ser amparados pelas normas de direito linguístico. Ao contrário, é preciso conhecer essas características para atender às suas necessidades específicas, como defendemos. Porém, a Declaração apresenta um viés segregacionista ao estabelecer o critério de tempo de ocupação do território como condição para que um grupo seja contemplado com os direitos linguísticos que se pretendem universais.

Dessa forma, não são propriamente as chamadas “comunidades linguísticas” que teriam seus direitos linguísticos limitados, como afirma a Declaração, e sim os ditos “grupos linguísticos”. Em outras palavras, a Declaração se ocupa do estabelecimento de direitos a comunidades linguísticas, isto é, a grupos de falantes de línguas que ocupam o território há mais tempo do que refugiados, imigrantes, deportados ou membros de diásporas. Essa é uma orientação que, apesar de não ter a força jurídica de leis que vigoram em cada país, acaba por orientar todo aparato político-linguístico do modelo de Estado liberal. Assim é que se forja a frívola discussão sobre quais línguas seriam nacionais e quais não seriam (mesmo que se critiquem as políticas do Estado-Nação). Para isso, usa-se o critério do tempo de assentamento, justamente como orienta a Declaração, num construto que replica a parcialidade de direitos.