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Capítulo 3 – POLÍTICAS LINGUÍSTICAS COMO SOLUÇÕES JURÍDICAS

3.1 O papel de convenções internacionais de direitos linguísticos

3.1.1 O conceito de “língua minoritária”

A Carta inaugura um período em que a Política Linguística se dedica com grande atenção às “línguas minoritárias”, que no documento são definidas da seguinte maneira:

[...] entende-se por “línguas regionais ou minoritárias”, as línguas que: i. Sejam utilizadas tradicionalmente num determinado território de um Estado por nacionais desse Estado que constituam um grupo

numericamente inferior à restante população do mesmo Estado; e ii. Sejam diferentes da(s) língua(s) oficial(is) desse Estado;

A expressão não inclui, quer os dialetos da(s) língua(s) oficial(is) do Estado, quer as línguas dos migrantes (CONSELHO EUROPEU, 1992).

Como se vê, a definição adotada na “Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias” pressupõe a existência de uma comunidade de falantes “numericamente inferior”, além disso de língua diferente ou externa à língua nacional; e exclui os falantes dialetos da língua oficial e migrantes. Para nós, parece essencial, entretanto, propor uma definição mais inclusiva que alargue o conceito de “língua minoritária” para abranger comunidades menores de falantes de uma língua ou variedade vista como diferente (independente de sua origem intralingual ou interlingual, porém percebidas como grupo social com marcas linguísticas específicas).

A expressão “línguas minoritárias” (minority languages) foi amplamente difundida, com o respaldo de documentos internacionais e de pesquisas estadunidenses e europeias. Por isso, para evitar qualquer eventual dificuldade de defini-la com precisão, costuma-se empregá-la do mesmo modo como os modelos recomendam. Assim, em geral, classificar as línguas de “minoritárias” não é sempre motivo de desconcerto. Entretanto, se a existência de línguas depende de que haja quem as fale, podemos pensar tal expressão em termos de “línguas de grupos minoritários” (línguas de minorias), o que seria mais coerente do que entender línguas como entidades com existência autônoma, capazes de estar por si sós – ou numa correlação abstrata de forças – numa condição de minoria.

Assim, entendemos que a expressão metonimicamente se refere aos grupos que as falam. Afinal, personificar as línguas, atribuindo-lhes características que historicamente definem certos segmentos sociais seria útil apenas para isolar questões linguísticas de seu contexto social. É escusado pensar nas causas do fenômeno, se as línguas é que estão em situação de minorias, e não seus falantes.

Assim, para além da questão da distribuição das línguas pelo conjunto da população (uma condição majoritária versus uma minoritária em termos numéricos), há um sentido que evoca uma condição do que é menor, inferior em número, extensão, intensidade, duração ou prestígio (do latim mìnor, -óris: menor). Nesse sentido, se exprime sua relação de poder (de organizar e decidir, por exemplo) em relação a línguas de grupos considerados hegemônicos. Assim, por exemplo, há segmentos historicamente espoliados ou que estão em condição de desvantagem que contrastam com aqueles representados na cultura majoritária, os quais desfrutam de uma situação de mais aceitação, ausência de preconceitos, inclusive por razões linguísticas.

Poderíamos argumentar que a expressão “línguas minoritárias” seria mais neutra do que “línguas de minorias”, se quiséssemos restringi-la a uma questão numérica. Em

vez disso, optamos por ressaltar que ambas as expressões são imprecisas, não só no sentido de que buscam abrigar sob a mesma designação situações muito diversas, como também porque são noções que emergem num contexto de fragmentação da realidade e relativização, como se cada problema pudesse ser abordado em termos de “narrativas”, realizando-se apenas no discurso. Além disso, entendemos que explicar fenômenos através da ideia de inclusão versus exclusão não pode de fato produzir o efeito pretendido, ou seja, tal via pode provocar mais confusão do que elucidação, como afirma A. Oliveira (2007):

O campo das políticas sociais compensatórias é o terreno do planejamento e execução das ações públicas de combate à exclusão. Neste sentido, seu par de oposição é, invariavelmente, a inclusão. Em alguns casos, como projeto intencionalmente deliberado, noutros, por insuficiência teórica, é sempre a própria lógica do sistema que é resposta. Ao construir a negação indeterminada das formas de aparecimento invertido, resulta reafirmada a lógica de fundo do sistema. O que ocorre neste caso é, novamente, que a tomada da exclusão como conceito independente do referencial teórico abrangente faz com que fenômeno e essência sejam percebidos como coincidentes. Deste modo, as formas imediatas de exclusão são compreendidas como quadros patológicos de disfuncionalidade. É esta a perspectiva da maioria das políticas de institucionalização da sociedade civil, dos apelos à cidadania, das políticas inclusivas, da educação inclusiva etc. No nível da conceituação operativa, é preciso superar dialeticamente as antinomias – in/out;

establishment/outsiders; exclusão/inclusão – e instaurar práxis

histórico-sociais de negação da negação. (OLIVEIRA, A., 2007, p. 09)

Apesar de ser constitutiva do próprio sistema, não sendo possível existir o imperialismo sem exclusão, na formação de contingentes enormes de população desempregada que emigra (FONTES, 1997), o Estado liberal, que opera como aparato de legitimação, compreende a exclusão como mera disfuncionalidade a ser compensada através de políticas públicas. Nesse sentido, ocorre uma negação do caráter sistêmico da exclusão. Em nome de sua aceitação como “efeito colateral”, ocorre o apagamento de qualquer possibilidade de pensar as causas do fenômeno. Porém, os “colaterais” são a regra, e não a exceção: “’Excluído’ é uma palavra a caminho da obsolência. [...] Deve ser substituída por “colateral”. No mundo monopolar do sucesso liberal, existem os incluídos e existem os colaterais” (VERÍSSIMO, 1999, p. 03).

Ao assumir uma razão de inclusão e exclusão para pensar sistematicamente os fenômenos que operam no âmbito social, mesmo os que dizem respeito às línguas, estaríamos restritos pela lógica vigente, que atua pela negação. Quando a maioria da

população, em termos numéricos, enquadra-se na categoria de minorias sob algum aspecto do fenômeno da exclusão sistêmica, usar o termo “minoritário” pode provocar fragmentação, indefinição e imprecisão. Há grupos autóctones que habitam o território antes da constituição dos países, ou cuja abrangência não está circunscrita somente a um país do continente, mas que, designados como “minorias”, enfrentam problemas em relação ao direito ao território. Tais problemas, localizados no presente (e não como herança do passado), ameaçam frontalmente sua existência. Há outros, alóctones, também designados por “minorias” cujo povoamento foi subsidiado pelo Estado, inclusive sendo-lhes inicialmente concedida a posse da terra. São, portanto, condições distintas de integração e, portanto, de possibilidades de sobrevivência.

Em geral, a temática da inclusão pretende resolver na aparência problemas de natureza estrutural. Por isso, por mais complexo que seja especificar a situação dos subgrupos sociais designados como “minorias”, considerando o contexto em que estão inseridos, consideramos tal procedimento sempre mais eficaz e seguro. Neste trabalho, sempre que possível, procuramos não usar acriticamente termos que despontam como tendências das correntes de pensamento predominantes. Preferimos substituí-los, sempre que possível, pelas designações mais precisas a que pudermos recorrer. Assim, optamos por “línguas de subgrupos periféricos” em vez de “línguas minoritárias”. Entretanto, sempre que for desejável nos aproximar criticamente da questão, recorreremos aos termos sugeridos por tratados e convenções internacionais.

Nota-se que, ao contrário do que preconiza a Carta do Conselho Europeu (cf. trecho supracitado), as línguas de pessoas em situação de refúgio reúnem condições para ser reconhecidas como línguas minoritárias, nos termos usados na Carta. O documento se posiciona declaradamente a favor do nacionalismo identitário, surgido naquele continente após a Segunda Guerra Mundial, como resposta ao aumento dos fluxos migratórios provenientes das ex-colônias em direção às metrópoles europeias.

O discurso das pautas identitárias e das causas minoritárias é proveniente das teorias chamadas pós-modernas, desencadeadas pelo movimento filosófico de contestação de paradigmas que se manifestou sobretudo em Paris, Berlim e Berkeley a partir de maio de 1968.

Argumentava-se que as rápidas transformações vividas pela sociedade moderna teriam levado à emergência de uma pluralidade de “novos sujeitos políticos”, “novos espaços sociais”, “novas práticas sociais” e “novas falas e representações sociais”, que haviam substituído “velhos”

sujeitos sociais como, por exemplo, a classe operária. [...] Os eventos mundiais de Maio de 1968 tinham trazido à tona a ideia da participação política das chamadas minorias (LOVATTO, 2016, p. 12-13).

Lovatto (2016) conclui que o principal efeito das lutas por pautas identitárias e minoritárias é o da transgressão resignada. De acordo com a autora, embora versem sobre problemas realmente existentes, as pautas identitárias tornam reivindicações legítimas esvaziadas de conteúdo transformador; por isso, são insuficientes para resolver as questões a que se propõem, por tratá-las de forma isolada, sem conexão com a totalidade.

Por exemplo, é possível estabelecer políticas de línguas minoritárias excluindo-se as línguas de imigração, como preconiza a Carta do Conselho Europeu. Em suma, há inconsistências teóricas na formulação de conceitos difusos, excessivamente relativizados e fragmentados, que a cada momento aparecem com um significado diferente. Nesse quadro, o papel das organizações internacionais é incorporar esses termos, defini-los e produzir material técnico para orientar as discussões.

Nesse sentido é que argumentamos que se, por um lado, as declarações e convenções sobre direitos linguísticos têm a virtude de atuar como uma força capaz de agregar reivindicações legítimas da humanidade, como as relacionadas ao modo de atuar sobre línguas e culturas, acabam por reduzi-las, por outro lado, a uma versão parcial de direitos humanos. Tal parcialidade se explicita sempre que essas reivindicações são pensadas tendo como referência (a) o âmbito do que é individual e (b) a razão de patrimônio e de privação de posse e de direitos que norteiam o modelo europeu de Estado.

Através de seu efeito, a questão se encerra em si mesma; as reivindicações são acomodadas a essa explicação que se faz ouvir e sentir nos países ocidentais de forma uníssona, e as inconsistências repetidas tornam-se aceitas: línguas de grupos vulneráveis, como as de refugiados, por exemplo, não estão aptas, segundo o modelo europeu, a serem reconhecidas como patrimônio cultural e linguístico da Europa. Perde-se de vista que o princípio da privação é insuficiente: não é que os direitos de um indivíduo terminem onde começam os do outro; e sim que só há plenitude de direitos quando os do outro efetivamente forem conquistados, o que implica considerar as reivindicações humanas numa dimensão de totalidade realmente libertadora.