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CAPÍTULO II SENTENÇA JUDICIAL COMO GÊNERO DO DISCURSO

2.2 A noção de gênero de discurso para Bakhtin

Bakhtin (2015) é apontado como um dos principais responsáveis pela viragem teórica no campo dos estudos do gênero. Sua concepção de gênero insere-se num contexto maior de discussão do estatuto dos estudos da linguagem, tendo como um dos seus interlocutores a linguística instaurada por Saussure e seus seguidores.

Fundamentamos nossa concepção na de gêneros do discurso como proposta por Bakhtin. Em razão das flutuações teóricas e mesmo dos problemas de autoria que envolve a obra do pensador, adotamos como base de nossas considerações o capítulo “gêneros do discurso” da obra “Estética da Criação Verbal” (BAKHTIN, 2015) na sua publicação brasileira pela Martins Fontes. Exploramos as considerações do autor de modo a realizar a direção de nossa análise.

Bakhtin (2015) inicia suas observações explicitando uma ligação entre a linguagem e a atividade social. O autor fala em esferas da atividade humana e que essas esferas estão relacionadas à utilização da língua. Assim, linguagem e atividade social estão interligadas, apontando a direção na qual o autor define sua teoria.

Segundo Bakhtin (2015, p. 261):

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos de atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua.

Esse trecho indica a maneira como Bakhtin (2015) demarca sua investigação no campo dos estudos da linguagem em consideração à proposta de Saussure (estudo do sistema da língua ou do ato individual da fala). O autor vai tomar o caminho da crítica ao estudo da língua como objeto abstrato. Não existiria, para o autor, como “congelar” a realidade da língua e descrevê-la como um sistema autônomo do indivíduo e da história e da sociedade que o cerca. A língua deve ser vista em sua função comunicativa, em sua função num dado contexto, não como abstração. Isso significa que a língua em uso está impregnada do uso ideológico pelos sujeitos que a praticam.

A existência da língua como sistema abstrato não tem substrato teórico por desconsiderar o contexto da enunciação, que confere sentidos precisos. Desconsidera que a evolução da língua está sempre em marcha não havendo um momento de suspensão e que a compreensão não é um ato passivo, mas um processo ativo de resposta.

Com base nessas críticas, Bakhtin (2015) trata a língua numa perspectiva enunciativa, sendo o enunciado a forma viva da linguagem. A enunciação mostra-se como produto da interação entre dois indivíduos num horizonte social e histórico, ainda que o indivíduo seja uma virtualidade. O diálogo passa a ser unidade básica de investigação, significando que o sentido da enunciação é sempre mutável e adaptável ao contexto.

A compreensão é encarada por Bakhtin (2015) como forma de diálogo pela qual a interação entre locutor e receptor estabelece um processo de instauração de sentido. A materialidade da língua adquire significado pela intersubjetividade (processo ativo e responsivo).

Nas palavras do autor:

Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em voz alta. É claro que nem sempre ocorre imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo depois de pronunciado: a compreensão ativamente responsiva do ouvido (por exemplo, de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na ação (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execução), pode permanecer de quando em quando como compreensão responsiva silenciosa (alguns gêneros discursivos foram concebidos apenas para tal compreensão, por exemplo, os gêneros líricos), mas isto, por assim dizer, é uma compreensão responsiva de feito retardado: cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte. (BAKHTIN, 2015, p. 272).

A construção do sentido pela intersubjetividade atribui a palavra tema, significação e valor. A apreciação não pode ser separada da linguagem, havendo uma relação do locutor com o objeto do seu discurso.

A ênfase do “outro” na teoria da enunciação de Bakhtin (2015) está na concepção e metodologia de sua teoria da enunciação. Ela está na base da constituição da linguagem, sendo este princípio teórico depois chamado por ele de dialogismo. O dialogismo orienta o estudo da língua de maneira a submeter as suas formas à enunciação. O “outro” não é somente sujeito; é a palavra que responde a outra palavra; o texto que responde a outro texto; o discurso que responde a outro discurso.

Bakhtin (2015) faz a diferença entre oração e enunciado. A oração é uma unidade da língua e não possui existência concreta, só potencialidade semântica. O enunciado é unidade da comunicação verbal, com existência histórica, realizando a oração. Traz as marcas da possível resposta, da ideologia que remetem aos enunciados anteriores.

O uso da língua nas esferas sociais, portanto, concretiza-se forma de enunciados. O enunciado não é uma forma abstrata da manifestação linguageira, mas uma forma concreta da linguagem, oral ou escrita, que refletem as condições das esferas da atividade humana. O uso da linguagem é marcado pela atividade social e não apenas por aspectos do uso individual e da gramática como uma visão tradicional pode fazer crer.

O enunciado relaciona-se com as esferas da atividade humana refletindo as condições nas quais elas existem e suas finalidades sociais. As atividades sociais afetam o enunciado quanto ao conteúdo (Bakhtin fala em tema), estilo (escolhas lexicais, gramaticais e de construções frasais) e a construção composicional do enunciado. Assim, o enunciado une tema, estilo e composição, cujas marcas se manifestam de acordo com cada esfera da atividade humana.

As esferas da atividade humana comunicam-se pelos enunciados e, pelo seu caráter social, elas tendem a produzir enunciados com características e tipos mais ou menos estáveis. O processo de estabilização dos enunciados gera o que Bakhtin (2015) chama de gêneros do discurso.

Os gêneros do discurso são incontáveis e infinitos em seu número e variedade. Isso se deve ao fato de que a atividade social é dinâmica mudando no tempo e espaço, fazendo com que os enunciados concretos reflitam essas condições. A infinitude dos gêneros vai de encontro com a ideia tradicional de um número específico de gêneros como posto pela tradição retórica e literária. Não é possível a priori classificar os gêneros quando se tem em conta a diversidade das atividades humanas e suas formas efetivas de comunicação.

Quanto a diversidade dos gêneros do discurso, manifesta Bakhtin (2015, p. 262):

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo.

Entretanto, a impossibilidade de apontar todos os gêneros existentes não impede Bakhtin (2015) de propor uma classificação. Sua classificação baseia-se na complexidade das comunicações existentes nas esferas humanas. Ele divide os gêneros do discurso em primários (estrutura comunicacional simples) e secundários (estrutura comunicacional complexa). Os gêneros primários são aqueles relacionados com a comunicação imediata, do tipo verbal. Os secundários estão ligados a formas culturais complexas e evoluídas, provenientes em geral da cultura escrita (Ex.: romance, teatro). Essas formas de gênero relacionam-se, já que os

secundários representam evolução, incorporação e transformações dos gêneros primários, bem como a colocação dos gêneros primários a serviço dos gêneros secundários em situações discursivas específicas (Ex.: uma conversa dentro de um romance).

O enunciado reflete aspectos individuais e sociais quanto ao estilo. Contudo, há gêneros do discurso que permitem refletir mais a individualidade, enquanto em outros a individualidade não ocorre pela existência de formas padronizadas. As formas assumem maior papel na expressão do sentido do que a intenção do sujeito individual Bakhtin (2015) observa, entretanto, que há gêneros que comportam graus de expressão entre o individual e o padronizado. Além disso, o estilo vincula-se ao tema e à composição da enunciação.

Bakhtin (2015) afirma ainda que a intenção do locutor passa pela escolha de um gênero do discurso. Essa escolha está pautada por vários elementos como o parceiro da enunciação, a esfera de atividade, a finalidade buscada e a temática escolhida. A intenção do sujeito é adaptada ao gênero do discurso escolhido.

A adaptação do locutor aos gêneros do discurso é necessária, pois o gênero em si é um fator regulador da comunicação humana. Essa regulação possui suas próprias leis, não se confundindo as regras da língua com as dos gêneros. As regras da língua são mais rígidas enquanto as regras dos gêneros são mais flexíveis. O indivíduo ao realizar um enunciado está sujeito a essas duas ordens normativas (língua e gênero), ainda que as formas dos gêneros permitam maior variação e adaptabilidade para realizar os fins almejados na comunicação.

O gênero também influencia na escolha lexical. A língua pode dispor de várias palavras para um objeto, mas são os enunciados e os gêneros nos quais eles estão inseridos que servem de base para muitas das escolhas realizadas de modo a se adaptar a expressividade do léxico contida num gênero. A força e expressividade da palavra não decorrem da língua, mas do gênero do discurso do qual se vale o falante.

O gênero relaciona-se com a enunciação, como já abordado. Cada gênero do discurso pressupõe um locutor e um destinatário padrões para as formas de comunicação que ele engloba em virtude das esferas de atividade em que ele existe. O gênero do discurso pode, quanto à enunciação, pressupor a “ausência” de um locutor e um destinatário na realização dos enunciados. É o caso dos gêneros que adotam o estilo objetivo-neutro, em que a ênfase recai mais sobre os objetos acerca dos quais o enunciado trata do que a expressão individual.

Percebemos que a proposta de Bakhtin (2015) sobre os gêneros está ligada a uma concepção de linguagem voltada ao seu uso efetivo pelos falantes para realizar diversas atividades sociais. A compreensão dos textos não pode ser realizada como se o falante escolhesse regras abstratas por trás de um sistema de língua desvinculado da situação na qual

está inserido, possuindo plena liberdade no uso dos seus recursos. O gênero em Bakhtin mostra que os falantes não são meros “usuários” da língua, mas constroem a língua pelas atividades que realizam. Dessa maneira, o enunciado reflete a língua viva por meio de um outro conjunto de regras que estabilizam formas específicas de comunicação, regras essas que são as dos gêneros do discurso.

A adoção da concepção bakhtiniana de gênero em nossa pesquisa implicou em enxergar na materialidade textual das sentenças judiciais coletadas as marcas do gênero ao qual pertencem, a língua viva que se infunde na atividade produtora do nosso corpus. Em outras palavras, os textos são manifestações concretas dos gêneros do discurso, refletindo seus diversos elementos na materialidade linguística que os compõem.

Não podemos compreender um texto de forma desvinculada da noção de gênero, uma vez que seu sentido não decorre de regras combinatórias da língua em abstrato, mas da esfera de atividade em que se manifestam, que, no nosso caso, foi a aplicação de um direito ao conflito acerca da existência de falência, conflito esse apresentado por partes qualificadas processualmente.

2.3 A concepção teórica de gênero de Bakhtin em comparação com outras correntes