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CAPÍTULO III RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA

3.2 Conceito de responsabilidade enunciativa

Culioli é apontado como o ponto de partida para a investigação teórica e empírica sobre a responsabilidade enunciativa (COLTIER et al., 2009). Para Culioli (COLTIER et al., 2009) todo ato de enunciação implica na responsabilidade enunciativa de um enunciado por um enunciador. Ademais, a concepção clássica de Culioli traz para dentro de si a noção de verdade, já que assumir a responsabilidade seria dizer aquilo que acredita como verdadeiro (COLTIER et al., 2009).

Esses dois elementos (enunciação implica responsabilidade enunciativa; dizer aquilo que acredita ser verdadeiro) são centrais, como se verá mais adiante, na discussão sobre o que seria a responsabilidade enunciativa. Contudo, essa concepção de Culioli, apresentada dessa forma e retomada por diversos autores, não aconteceu de forma sistematizada e unívoca ao longo do tempo.

Como ressalta Coltier et al. (2009), o pensamento de Culioli sobre a responsabilidade enunciativa passou por três fases. Na primeira fase, caracterizada como cognitiva, a responsabilidade enunciativa é uma operação mental que precede a enunciação e por isso a

relação de implicação (ou como diz o original em francês, “suposição”), já que só pode haver enunciação se, mentalmente e de forma anterior, há assunção de responsabilidade.

A segunda fase é caracterizada como enunciativa, pois é no dizer que se expressa a assunção de responsabilidade enunciativa, em que a crença sobre o que se diz (o que se pensa como verdadeiro) está naquilo que é assertado. Deve ser esclarecido que verdadeiro nessa concepção teórica é sobre o ato da enunciação enquanto asserção em si e não sobre o conteúdo dessa asserção. É o que é verdadeiro para o sujeito falante e não a verdade enquanto relação do dito por esse sujeito para com o mundo (Ex.: quando alguém diz, “Eu penso que choveu ontem em Natal”, há responsabilidade enunciativa porque o sujeito expressa uma crença que pensa ser verdadeira por meio do dizer, embora o seu conteúdo (chover ontem em Natal) possa ser falso com relação ao mundo ao qual se refere o dito).

Na última fase de Culioli, a responsabilidade enunciativa foi definida como operação de engajamento do sujeito falante sobre seu dizer. O sujeito falante garante a sua asserção enquanto representação do que pensa e posição sobre o que pensa.

Grize retoma a concepção de Culioli, mas entende a responsabilidade enunciativa como uma polioperação dentro de um quadro polifônico e do que ele chama de “lógica natural” (COLTIER et al., 2009). Como Culioli, o pensamento de Grize sobre os constituintes dessa polioperação passa por momentos diversos. Num primeiro momento, a responsabilidade enunciativa é operação que envolve a existência de fonte, atividade e atitude. Num segundo momento, há uma simplificação, sendo apenas dois esses elementos (fonte e modalidade). O último momento da sua concepção indica o maior número de elementos dessa polioperação (asserção, situação no espaço-tempo, modalização, aspecto e responsabilidade) (COLTIER et

al., 2009).

Laurendeau (2009), por sua vez, retoma as discussões iniciadas por Culioli e Grize, considerando a responsabilidade enunciativa como dizer aquilo que acredita ser verdadeiro por meio de uma polioperação (COLTIER et al., 2009). A novidade desenvolvida por esse autor é o conceito de tomar em conta (prise en compte) (LAURENDEAU, 2009), que seria uma forma de compromisso provisório sobre um enunciado por um enunciador. Rabatel (2008, 2009, 2016a) esclarece que tomar em conta é uma operação concernente aos PDV dos outros enunciadores, sendo instável do ponto de vista da responsabilidade enunciativa. Isso ocorre, pois, ao tomar em conta o PDV de um enunciador segundo, pode se passar à responsabilidade enunciativa ou à não responsabilidade enunciativa

Outro autor apresentado nessa discussão por Coltier et al. (2009) é Nølke. A teoria de Nølke faz parte da chamada Teoria Escandinava da Polifonia Linguística (ScaPoLine). A

teoria da ScaPoLine, em termos de linguística francesa, usa o termo responsabilité ao invés do termo prise en charge. A ScaPoLine define a responsabilidade enunciativa como um elo enunciativo entre um ser do discurso e um pdv de acordo com uma atitude desse ser do discurso em relação a um pdv. O uso do termo responsabilité não é gratuito, pois de acordo com essa abordagem deve ser buscado o responsável pelo enunciado (COLTIER et al., 2009). Em outros termos, assumir a responsabilidade é estar na fonte do enunciado, ser sua origem (DONAIRE, 2011; RODRIGUES, 2010).

Desclés (2009) concorda com a concepção de Culioli sobre a responsabilidade enunciativa, em que essa significa dizer aquilo que acredita ser verdadeiro. Ampliando a concepção de Culioli (especialmente o da primeira fase), Desclés (2009) argumenta que toda enunciação pressupõe a construção “eu digo”, ainda que não explicitada na materialidade do enunciado. Entretanto, há dois tipos de responsabilidade enunciativa: uma sobre o ato da asserção (que sempre existe e é condição da enunciação) e outra sobre o que é assertado. Sobre o que é assertado, pode haver a não assunção de responsabilidade enunciativa, mas, como mostra Guentchéva (2011), ao se reportar ao mediativo, isso não implica que o enunciador pense que é falso o conteúdo proposicional, pois no mediativo há a marcação (linguística, em certas línguas) de que a enunciação é mediatizada a partir de uma percepção, uma outra fonte de saber ou inferência sem que o enunciador se relacione com a verdade ou falsidade dessa enunciação no que diz respeito ao seu contexto originário (GUENTCHÉVA, 1994; 2011).

Donaire (2011) faz uma apresentação e revisão teórica sobre as concepções de responsabilidade enunciativa. Além de tratar das teorias de Culioli e da ScaPoline, a autora discute as noções de responsabilidade enunciativa como atitude qualificadora da assunção ou não por um locutor ao que é posto por um enunciador e como engajamento subjetivo. A principal crítica dessa autora é que todas essas posições apelam para elementos externos ao enunciado. Um desses elementos é o locutor, que para a autora, deve ser pensado não como alguém que no mundo assume a responsabilidade, mas buscar quem assume a responsabilidade enunciativa no próprio enunciado por meio de fatos discursivos.

Donaire (2011) argumenta também que não se deve recorrer à noção de verdade por ser externa ao enunciado. A teoria da responsabilidade enunciativa não tem ligação com o problema da verdade, pois é não-vericondicional.

Blaise (2011) entende que há na responsabilidade enunciativa um conjunto de fenômenos de marcação. Remetendo à perspectiva de Benveniste, há os marcadores dêiticos (lugar do eu/aqui/agora no discurso) e subjetivemas reveladores da modalização. Numa

segunda concepção, esses marcadores revelam o posicionamento linguístico da subjetividade ou marcas de apagamento enunciativo. Ainda sobre a marcação, a enunciação pode ser engajada ou não engajada, bem como pode ser reflexiva ou não reflexiva (a reflexividade concerne às formas de reação modal a uma representação).

Tendo em vista essa variedade de pensamentos, Chanay (2011) propõe uma definição global de responsabilidade enunciativa, caracterizada pela relação de associação entre uma unidade discursiva e uma instância (ou um grupo de instâncias) enunciativa(s). Essa definição global é justificada, na sua visão, por assumir uma neutralidade teórica sobre quem assume a responsabilidade enunciativa (ex.: locutor x enunciador), bem como sobre o conteúdo da responsabilidade enunciativa (Ex.: pdv X PDV), mas principalmente dá suporte à visão particular desse autor: a de que a responsabilidade enunciativa opera em níveis diferentes, e não de forma linear sobre um mesmo fenômeno linguístico. Chanay (2011) assevera a existência de quatro níveis de responsabilidade enunciativa: a) epistémico-dialógico (relação entre enunciado e fonte; ser fonte, autor de um enunciado); b) nível ilocutório (relacionado aos atos de discurso, aos enunciados proferidos conforme modos de representação/apresentação dos enunciados. Nesse nível é situado o problema da atualização enunciativa e o da adesão); c) nível alético (engajamento ou não sobre a verdade dos conteúdos dos enunciados); d) nível argumentativo (relativo às consequências da articulação dos pontos de vista no encadeamento argumentativo).

A apresentação das teorias da responsabilidade enunciativa mostrou que seu conceito não é teoricamente estável ao longo das discussões dos autores aqui apresentados. Entretanto, percebemos que todas essas teorias apresentam os seguintes elementos: a) uma instância, que é dita sujeito, que realiza a operação de responsabilidade enunciativa e é marcada linguisticamente; b) a enunciação e o conteúdo do ato da enunciação, ao qual o sujeito marca linguisticamente uma operação de assunção (ou não) de responsabilidade enunciativa; c) a operação propriamente dita de responsabilidade enunciativa, que une, linguisticamente, a instancia a sua enunciação. A diferença entre as teorias reside no estatuto teórico que cada uma concebe a respeito desses elementos.