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Aspectos gerais de “falência” como objeto de discurso do juiz e dos demais enunciadores

CAPÍTULO V PONTO DE VISTA E RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA EM

5.2 A construção do PDV sobre “falência” pelo juiz

5.2.1 Aspectos gerais de “falência” como objeto de discurso do juiz e dos demais enunciadores

Uma vez que escolhemos o objeto de discurso “falência” para ser o guia de nossas análises textual-enunciativas, foi importante que delimitássemos de forma geral como esse objeto se manifestou no texto das sentenças judiciais. O processo de referenciação relativo à maneira pela qual se apresentam e se modificam os objetos de discurso contribuiu para a construção dos sentidos do texto, bem como para a construção do PDV pelos enunciadores em torno desse objeto de discurso selecionado.

O primeiro aspecto notado em relação a esse objeto de discurso foi o fato de compor a unidade temática das sentenças analisadas. “Falência” não foi somente um objeto de discurso como outros que aparecem ao longo dos textos estudados, mas o tema e o PDV sobre o qual se desenvolve o texto. Nos termos de nossa pesquisa, evidenciamos que o objeto de discurso ‘falência” foi sujeito a duas construções distintas de PDV: a) como PDV global sob o escopo de responsabilidade enunciativa do locutor / enunciador primário (juiz), relacionado ao

sentido geral do texto, tendo em vista que faz parte da sua unidade temática e, por isso, construído ao longo da trama textual; b) como PDV local, emergente das proposições- enunciados, derivados dos vários enunciadores mobilizados (autor, réu, legislação, doutrina, entre outros), incluindo o próprio locutor / enunciador primário.

Podemos observar essas distinções acerca do PDV referido no quadro a seguir:

Quadro 15: Manifestações do PDV sobre “falência” na sentença judicial

1. S_SE_SP_01 2a-e (“UNISERV UNIÃO DE SERVIÇOS LTDA., devidamente qualificado nos autos, requereu a falência da empresa LIAU GROUP HOTELARIA E

ADMINISTRAÇÃO DE BENS LTDA., nos termos do artigo 94, I¸ da Lei nº.

11.101/2005, em razão de cheques e duplicatas, títulos estes vencidos, não pagos e protestados no valor total de R$ 223.340,33 (fls. 02/06). Juntou documentos. (fls. 07/95)”)

5a 6c-d (“A requerida apresentou contestação (fls. 176/197).”; “(...) prestação de serviço que as ensejam e eventual aceite. Ademais, aduz que a credora está usando a falência como forma de cobrança.”)

45a-e (“Posto isso, DECLARO hoje, as 17:00 horas a falência da LIAU GROUP

HOTELARIA E ADMINISTRAÇÃO DE BENS LTDA., CNPJ n° 07.694.872/0001-46, estabelecida na Av. das Nações Unidas, 11.857, Conjunto 71, Brooklim Paulista, São Paulo/SP, sendo seus sócios: Hai Shih Liau Yeh, residente na Rua Galvão Bueno, 724A, Liberdade, São Paulo/SP; Linda Hailin Liau, residente na Rua Galvão Bueno, 724A, Liberdade, São Paulo/SP”.)

Fonte: elaboração própria

O primeiro excerto possui a função (como já firmamos em tópico anterior nesse capítulo) de servir como unidade temática, uma vez que resumiu semanticamente o tema do texto (falência pedida pelo autor em relação ao réu). O mesmo parágrafo introduziu o objeto de discurso “falência” na sua relação com dois enunciadores segundo (autor e réu) a partir do PDV de e2 (“UNISERV UNIÃO DE SERVIÇOS LTDA., devidamente qualificado nos

autos, requereu a falência da empresa LIAU GROUP HOTELARIA E

ADMINISTRAÇÃO DE BENS LTDA., (...)”, em que a expressão “requereu a falência” implica numa operação de imputação de responsabilidade enunciativa a e2, pressupondo este assumir a existência da falência como verdadeira).

O objeto de discurso em questão compõe a unidade temática e, por isso, foi considerado como PDV global (o PDV do juiz acerca da existência da falência na situação entre o autor e o réu), construído por meio de várias operações de caráter textual-enunciativa. O segundo excerto traz “falência” a partir de e3 (réu), que considera esse objeto de discurso na perspectiva de “forma de cobrança”, fazendo emergir um PDV local (PDV de e3 sobre

“falência” na sua relação com e2: “forma de cobrança”), que pode ou não coincidir com o PDV global do juiz construído sobre o mesmo objeto de discurso.

A realização por L1/E1 de um PDV global acerca do objeto de discurso em questão ficou evidente no terceiro trecho a partir da expressão “DECLARO hoje, as 17:00 horas a falência”. Aqui culmina o processo de construção do PDV global sobre “falência”, pelo qual L1/E1 expressou seu PDV sobre a unidade temática do texto por meio de um macroato de discurso do tipo declarativo, em que, na mesma situação, mudou o estado de coisas do mundo (e3 passa a ser considerado falido) e expressou de maneira implícita sua crença de que existência da falência na situação entre e2 e e3 é verdadeira. O juiz assumiu a responsabilidade pela existência da falência por meio do macroato de discurso declarativo referido.

“Falência” é um objeto de discurso faz parte da unidade temática do texto, sendo sujeita a operações textuais pelas quais se desenvolve a progressão temática (relação tema/rema). Koch (2015) discorre sobre as diversas maneiras da articulação tema-rema na progressão temática. A progressão pode acontecer por tema constante (predominante nas sequências descritivas), progressão linear (ocorre em vários textos), subdivisão de tema (ocorre em sequencias argumentativas e expositivas), subdivisão de rema (ocorre em sequencias argumentativas e expositivas) e salto temático (ocorre em vários textos). As formas de progressão temática dependem de vários aspectos textuais, em geral havendo formas predominantes, mas não estratégias exclusivas.

Nos textos analisados, percebemos a predominância de duas estratégias: subdivisão do tema e salto temático. Isso ocorre pelo fato de o objeto de discurso “falência” ter sido construído a partir de outros objetos de discurso. Dessa forma, o PDV sobre falência foi realizado igualmente a partir do PDV sobre esses outros objetos de discurso.

Podemos perceber isso no quadro a seguir:

Quadro 16: “Falência” e progressão temática

1.S_SE_SP_01 2a-e (“UNISERV UNIÃO DE SERVIÇOS LTDA., devidamente qualificado nos autos, requereu a falência da empresa LIAU GROUP HOTELARIA E

ADMINISTRAÇÃO DE BENS LTDA., nos termos do artigo 94, I¸ da Lei nº.

11.101/2005, em razão de cheques e duplicatas, títulos estes vencidos, não pagos e protestados no valor total de R$ 223.340,33 (fls. 02/06). Juntou documentos. (fls. 07/95)”.)

5a-d 6a-c 7a-c (“A requerida apresentou contestação (fls. 176/197). Arguiu, preliminarmente, litigância de má-fé, uma vez que a requerente cobra valores, baseados em títulos já pagos, bem como a não correspondência das duplicadas com o contrato da prestação de serviço, assim aduz a inexistência de comprovação de

prestação de serviços”. Com relação às duplicatas, alega que estas estão desprovidas de liquidez, certeza e exigibilidade, como também que não há documento hábil a demostrar a aceitação da eventual prestação de serviço que as ensejam e eventual aceite. Ademais, aduz que a credora está usando a falência como forma de cobrança. No mérito, alega que o pagamento da dívida já fora realizado integralmente. Por fim, alega juros abusivos ao cálculo dos valores dos cheques arrolados e requer indenização pela c) conduta lesiva da autora em requerer a falência. Juntou documentos (fls. 198/1252)”.)

14a-c 15 a-b (“Conforme dispõe o art. 94, I, da LRF, a falência será decretada quando o devedor, sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em TÍTULO EXECUTIVO protestado. No caso, o presente pedido de falência está fundado em cheques e em duplicatas mercantis não aceitas”.)

16a 20a-c 21a-c (“Segundo o CPC, será título executivo extrajudicial a duplicata devidamente aceita. As duplicatas não contêm aceite. Junto às notas fiscais emitidas a fls. 89/92 não acompanharam o demonstrativo de prestação do referido serviço e não são suficientes, portanto, a preencher o requisito necessário à caracterização do título executivo a motivar o pedido de d) falência. Assim, uma vez que as duplicatas não estão aceitas e os documentos presentes nos autos não comprovam a prestação do serviço oferecido à requerida, não há título executivo a motivar o pedido de falência, ao menos quanto às duplicatas”)

22a-b 32a-c 33a-b (“Dessa forma, o pedido de falência será fundamentado apenas nos cheques protestados, os quais são títulos. No mérito, estão presentes os requisitos exigidos pela lei para o deferimento da pretensão, uma vez que a Autora comprovou o protesto dos cheques que não foram pagos tudo na forma do artigo 94, I, da Lei nº 11.101/2005. Assim, o pedido é procedente, uma vez que os cheques são títulos executivos que ultrapassam o equivalente a 40 (quarenta) salários mínimos”)

Fonte: elaboração própria

No primeiro trecho “falência” foi introduzido sob o escopo de e2 (autor) relacionado a dois objetos de discurso: “cheques” e “duplicatas”. Vemos que nesse trecho a existência da falência foi considerada a partir dos PDV sobre “cheques” e “duplicatas” por e2. Assim, temos o seguinte esquema: PDV de e2 sobre “falência” em relação a e3: existência (implícita na expressão “requereu a falência da empresa”) em razão do PDV de e2 sobre “cheques” e “duplicatas” (“títulos estes vencidos, não pagos e protestados”). Fica mais clara a ligação entre esses objetos de discurso (“falência” – “cheques” e “duplicatas”) ao longo do texto no terceiro excerto sob o escopo de L1/E1 (“No caso, o presente pedido de falência está fundado em cheques e em duplicatas mercantis não aceitas”.)

A apresentação do PDV de e3 sobre “falência” apresentou uma série de qualificações e redesignações dos objetos de discurso “cheques” e “duplicatas”. Podemos representar nos seguintes termos: PDV por e3 de não existência de “falência” em relação a e2 (implícito no trecho “A requerida apresentou contestação”, em que o lexema “contestação”, em razão do gênero em que aparece, indica contrariedade do réu ao pedido formulado pelo autor, ao

mesmo tempo em que implica em imputação do PDV de contrariedade ao réu) em razão do PDV do mesmo enunciador sobre “cheques” (“títulos já pagos”; “pagamento da dívida já fora realizado integralmente”; “juros abusivos ao cálculo dos valores dos cheques arrolados”) e “duplicatas (“títulos já pagos”; “pagamento da dívida já fora realizado integralmente”; “desprovidas de liquidez, certeza e exigibilidade”).

Os quarto e quinto trechos mostram a estratégia de falar de “cheques” e “duplicatas” em dois blocos temáticos distintos a partir do escopo de L1/E1. No primeiro foi realizado por L1/E1 um PDV sobre “duplicatas’ na forma de causa (“uma vez que as duplicatas não estão aceitas e os documentos presentes nos autos não comprovam a prestação do serviço oferecido à requerida”) e consequência de não poder discutir a existência de “falência” (“não há título executivo a motivar o pedido de falência, ao menos quanto às duplicatas”). Já com relação a “cheques” (discutido no quinto excerto) o PDV do juiz foi realizado no sentido positivo de existência de “falência” (“a Autora comprovou o protesto dos cheques que não foram pagos”; “os cheques são títulos executivos que ultrapassam o equivalente a 40 (quarenta) salários mínimos”).

Um último ponto que ressaltamos sobre “falência’ é sua dimensão referencial. O objeto de discurso “falência” não foi construído apenas tendo como referência sua dimensão intratextual, uma vez que outras situações comunicativas são evocadas a partir de outros textos (intertextualidade), situações essas recuperáveis pela mobilização de enunciadores segundo do campo da legislação, jurisprudência e doutrina.

Ademais, há uma certa “opacidade referencial”, uma vez que o lexema “falência” ora significa o estado de falência de e3, ora o pedido realizado por e2.

No quadro a seguir podemos verificar esses aspectos:

Quadro 17: “Falência” e sua dimensão referencial

1. S_SE_SP_01 2a-e (“UNISERV UNIÃO DE SERVIÇOS LTDA., devidamente qualificado nos autos, requereu a falência da empresa LIAU GROUP HOTELARIA E

ADMINISTRAÇÃO DE BENS LTDA., nos termos do artigo 94, I¸ da Lei nº.

11.101/2005, em razão de cheques e duplicatas, títulos vencidos, não pagos e protestados no valor total de R$ 223.340,33 (fls. 02/06). Juntou documentos. (fls. 07/95)”)

25a 26 a-n (“Nesse sentido: Apelação. Falência com base na impontualidade derivada do não pagamento de duplicatas mercantis, transferidas à empresa de fomento mercantil. Extinção do processo, sem julgamento de mérito, sob o argumento de que a falência não pode ser manejada com escopo de cobrança e exige pluralidade de credores. Legitimidade de empresa de factoring, na condição de endossatária de duplicatas pedir a falência da sacada/aceitante. Desnecessidade de pluralidade de credores para o pedido de quebra. O credor de empresário impontual tem a faculdade de eleger a via judicial adequada para satisfação de sua pretensão de cobrança:

execução individual ou falência. Extinção do processo, sem julgamento de mérito, afastada, ordenando - se o regular processamento da ação de falência. Apelo provido. (0118180-97.2008.8.26.0000 Apelação / Recuperação judicial e Falência, Rel. Des. Pereira Calças, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, Comarca de Barueri, Dj.: 04/05/2010.”)

27a-b (“Nesse mesmo sentido, a Súmula 42 do TJSP dispõe que: “a possibilidade de b) execução singular do título executivo não impede a opção do credor pelo pedido de falência”.”)

Fonte: elaboração própria

O primeiro excerto mostra a amplitude referencial do lexema no trecho “requereu a falência da empresa LIAU GROUP HOTELARIA E ADMINISTRAÇÃO DE BENS LTDA., nos termos do artigo 94, I¸ da Lei nº. 11.101/2005, em razão de cheques e duplicatas, títulos estes vencidos, não pagos e protestados no valor total de R$ 223.340,33 (fls. 02/06)”. Ao aparecer sob o escopo do lexema verbal “requereu”, “falência” ganhou o significado de pedido, requerimento realizado pelo autor que, em termos jurídicos, é a petição inicial. Além disso, ao falar sobre o fundamento da falência (“títulos estes vencidos, não pagos e protestados”), “falência” remete a um estado de coisas que pode ser objeto de um juízo de verdade ou falsidade. Temos uma situação que é jurídica processual (petição inicial pedindo a “falência”) e jurídico material (estado de coisas que caracteriza “falência”).

“Falência”, enquanto objeto de discurso, foi introduzido nos textos pesquisados dentro de uma situação enunciativa de interação entre e2 (autor) e e3 (réu) descrita por L1/E1 (juiz). A construção do PDV realizada ao longo das sentenças judiciais mostrou a estratégia de remeter o referido objeto de discurso a outras situações enunciativas diversas da descrita no texto, sendo exógenas e referentes a outros textos (intertextualidade). O segundo excerto mostrou uma dessas estratégias de remissão para fora do texto: L1/E1 mobiliza um enunciador segundo (apelação) por meio das marcas de citação (uso de “:” e de recuo de texto). A situação enunciativa mobilizada foi da mesma natureza que encontramos nos textos das sentenças (aplicar o direito a uma situação entre as partes) como pode ser deduzido do uso lexema “apelação” considerando o gênero do discurso e pela especificação do tipo de “falência” (“Falência com base na impontualidade derivada do não pagamento de duplicatas mercantis, transferidas à empresa de fomento mercantil”). Ao se reportar a esse enunciador, L1/E1 invocou uma situação de similitude enunciativa (falência na situação entre um autor e réu) de modo coenunciativo (postura) na construção do PDV sobre “falência’.

Entretanto, o mesmo excerto mostrou que o enunciador segundo mobilizado (apelação) não realizou um PDV restrito à situação enunciativa das partes envolvidas, mas

realiza um PDV considerando ‘falência” numa situação universal, independente de um autor e réu específico, como podemos constatar pelo uso do presente gnômico (“O credor de empresário impontual tem a faculdade de eleger a via judicial adequada para satisfação de sua pretensão de cobrança: execução individual ou falência”). O uso do presente gnômico pode ser encontrado no terceiro trecho ao mobilizar o enunciador Súmula 42 do TJSP por meio das marcas de citação (uso de “:” e de aspas), remetendo a uma situação enunciativa em que o PDV sobre “falência” possui valor universal, independentemente das partes envolvidas.