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4.1 Noções operatórias da Análise do Discurso

4.1.4 A noção de heterogeneidade e o “outro” no discurso

A heterogeneidade é proposta no campo da AD como categoria conceitual, dialogando também com os trabalhos de Jacqueline Authier- Revuz (1990; 1994; 1998; 2004).77 Compreendendo a linguagem como heterogênea, essa pesquisadora procurou descrever fragmentos enunciativos como pontos de heterogeneidade e buscou analisar formas linguísticas e/ou discursivas que operam no discurso, mostrando a presença do “outro” no fio do discurso. A tese proposta por essa autora é a de que as formas de heterogeneidade mostrada (marcada ou não- marcada) são manifestações de diversos tipos de “negociação” do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva.

A obra de Authier-Revuz tem como postulado central a ideia de que “todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos „outros discursos‟ e pelo discurso do „Outro‟” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 69).Assim, a interdiscursividade e a interlocução inscrevem a presença das palavras do “outro” no discurso, constituindo-o. Ao mesmo tempo, a heterogeneidade discursiva tem, na sua essência, a presença de um “Outro” que determina, pela relação com a exterioridade, o sujeito da linguagem descentrado pelo inconsciente. Por isso a autora afirma: “O sujeito não é uma entidade homogênea, exterior à linguagem, que

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Nos trabalhos de Authier-Revuz, a heterogeneidade constitutiva do sujeito e do discurso apoia-se, de um lado, na problemática do dialogismo bakhtiniano, que toma o discurso como produto de interdiscursos fazendo “da interação com o discurso do outro a lei constitutiva de todo o discurso” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 68). De outro, na obra de Freud e sua releitura por Lacan no que diz respeito à abordagem do sujeito em sua relação com a linguagem. Com base na teoria da Psicanálise sobre o inconsciente, Authier-Revuz (1990, p. 28) afirma: “Sempre sob as palavras, „outras palavras‟ são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo o discurso, através da qual a análise pode tentar recuperar os indícios da „pontuação do inconsciente‟”. A autora articula, dessa forma, a heterogeneidade do discurso ao descentramento do sujeito, apresentando-o como efeito de linguagem e, por conseguinte, dividido, clivado, cindido.

lhe serviria para „traduzir‟ em palavras um sentido do qual ele seria a fonte consciente.” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 63). O “outro”, salienta a autora, não é um objeto exterior do discurso, mas uma condição constitutiva do discurso de um sujeito falante que não é a fonte-primeira de sentidos que esse discurso produz. Já a heterogeneidade mostrada é aquela que inscreve visivelmente o “outro” na sequência do discurso, alterando a aparente unidade da cadeia discursiva. Essa modalidade de heterogeneidade apresenta-se sob formas linguísticas, marcadas ou não, de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva ao seu discurso.78

De acordo com Maldidier (2003, p. 73), os trabalhos de Authier- Revuz colocaram “em evidência as rupturas enunciativas no „fio do discurso‟, o surgimento de um discurso outro no próprio discurso”, abrindo espaço para a temática sobre a heterogeneidade constitutiva nos trabalhos de AD. No entanto, na perspectiva pecheutiana, a noção de heterogeneidade discursiva liga-se à noção de FD, pois foi a partir da reflexão teórica de Pêcheux (1997) – ao afirmar que uma FD é o campo em que ocorrem repetições, mas também transformações, o que expõe o caráter intrinsecamente contraditório que regula as condições de produção, isto é, que regula a FD – que se instaurou a tematização da heterogeneidade no seio da AD.

Indursky (1997), por sua vez, nos lembra que o importante em AD é romper analiticamente a aparente homogeneidade discursiva para fazer vir à tona a heterogeneidade fundante/constitutiva do discurso. Nesse processo, é preciso mobilizar a memória discursiva, o já-dito, pois é esta que permite relacionar sequências formuladas no intradiscurso (na materialidade do texto) com sua exterioridade, o interdiscurso.

Ainda, segundo Indursky (2002; 2005; 2009), não é possível pensar a FD de forma dissociada à noção de forma-sujeito e sua fragmentação em posições-sujeito, pois essas questões estão imbricadas na evolução da noção de FD.79 A autora salienta que o fechamento de

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A forma da heterogeneidade “mostrada-marcada” constitui-se num fragmento enunciativo “exterior” ao discurso, vindo a intervir no fio do discurso enunciado sob a forma de um ponto delimitado de heterogeneidade. Têm-se aí, as glosas, o discurso relatado direto e indireto, as aspas. As formas “não-marcadas” da heterogeneidade mostrada tratam do discurso indireto livre, da ironia, das metáforas e jogos de palavras. De acordo com a autora, essas formas põem em evidência a presença do “outro” sem o auxílio do dito. Das formas mais ostentatórias às mais incertas, essas formas jogam com a diluição do outro no discurso, na qual este “outro” pode ser confirmado, mas também “perdido”.

79 Cazarin (2005) nos oferece a leitura de que a posição-sujeito também é marcada pela

uma “maquina discursiva” não é nem desejável, contudo deva-se pensá- lo como um efeito necessário para que o analista possa fazer seu trabalho, sem esquecer-se de levar em conta o encontro entre sujeito, história e linguagem como aquilo que torna possível estabelecer diferentes posições-sujeito e inscrevê-las em uma ou mais FDs.

No presente trabalho, levamos em conta os pressupostos até aqui descritos, considerando os reordenamentos provocados pelo estudo da heterogeneidade. É a partir dela que a AD passa a incorporar novos temas, como as relações entre intra e interdiscurso, o trabalho da memória discursiva, o deslocamento no modo como se entende o sujeito da enunciação e o conceito de formação discursiva. Leva-se em conta ainda os pressupostos de Pêcheux sobre a incorporação, nas análises, de novas materialidades de concretização dos discursos, considerando o real da língua e da história na produção dos sentidos. Pêcheux (2006, p. 53) salienta que toda interpretação “está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar outro.”

É porque existe o outro nas sociedades e na história que pode haver relação possível de ser interpretada. É isso que autoriza afirmar que o sentido está sempre inscrito em redes de filiações históricas. É nesse “espaço intervalar” do sentido que deve trabalhar a AD, justificando-se assim sua existência enquanto disciplina de interpretação.