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4.1 Noções operatórias da Análise do Discurso

4.1.1 Condições de produção

Retomamos aqui a concepção de discurso como “efeito de sentido” entre locutores, sendo produzido, necessariamente, a partir de determinadas condições de produção que o sustentam. Inicialmente, Pêcheux (2010a) descreve os elementos estruturais das condições de produção a partir da noção de “formações imaginárias”. O autor postula que o esquema dessas formações põe em evidência os protagonistas do discurso e o referente. O termo discurso substitui o de mensagem, mas não se trata apenas uma transmissão de informação (como no esquema informacional de Jakobson) e sim de “efeito de sentidos” entre os sujeitos A (destinador/emissor/locutor) e B (destinatário/receptor/ interlocutor), que ocupam determinados lugares na estrutura de uma formação social dada. São esses lugares sociais assumidos pelos sujeitos que são colocados em jogo no processo discursivo.63

Somente no nível das formações imaginárias, entretanto, as condições de produção não permitem avançar na reflexão sobre o discurso em relação com sua exterioridade, pois do modo como eram concebidas por Pêcheux na primeira fase da AD (AAD69), conforme reflete Courtine (2009), podem provocar um apagamento das determinações históricas que caracterizam o processo discursivo ao

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Nas palavras de Pêcheux (2010a, p. 81): “o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro”. As formações imaginárias são designadas por Pêcheux (2010a, p. 82), do seguinte modo: na perspectiva de A, a imagem de si é correlata à questão “Quem sou para lhe falar assim?” e a imagem de seu interlocutor, correlata à questão “Quem é ele para que eu lhe fale assim?”; na perspectiva de B, a imagem que ele faz de si é correlata à questão “Quem sou eu para que ele me fale assim?” e a imagem de seu emissor, correlata à questão “Quem é ele para que me fale assim?”. Ligado às formações imaginárias têm-se a questão da antecipação das representações do receptor pressuposta pelo emissor, e sobre a qual se funda a estratégia de discurso.

operar uma psicologização espontânea dessas determinações, como se a imagem construída no discurso estivesse presa a estratégias discursivas de um sujeito dotado de intencionalidades. O lugar social é então dissimulado como um jogo de espelhos de papéis do interior de uma instituição.64 As condições de produção eram assim constituídas como estáveis e homogêneas. De acordo com o autor (op. cit.), Pêcheux avança nesse sentido ao incluir em suas reflexões a noção de formação discursiva, a qual permitiu estudar as condições de produção na complexidade do interdiscurso.65

Em textos posteriores, Pêcheux (1997) remete às formações imaginárias a relação da psicanálise com a linguística, gesto que faz a partir da observação de que todo discurso supõe acionar lugares de fala nos quais os sujeitos participantes do processo discursivo serão representados. Esse lugar, que é social, representa a própria subjetividade sendo marcada pela historicidade e pela ideologia e atravessada pelo inconsciente (PECHEUX; FUCHS, 2010). Trata-se de um sujeito atravessado por desigualdades e contradições, o que não condiz com estratégias previamente traçadas, nem com intenções. O lugar social, portanto, não deve ser tomado como uma suposta concretude; ele interfere no processo discursivo, mas não garante o sentido produzido pelo discurso. É no confronto entre o momento que um dos interlocutores diz e o momento em que o outro reconhece que o sentido é produzido. Orlandi (2001, p. 160) esclarece ao afirmar que “o sentido é intervalar: não está em um interlocutor, não está no outro: está no espaço discursivo (intervalo) criado (constituído) pelos/nos dois interlocutores.” Nessa perspectiva, mesmo que o sujeito tenha a intenção de transmitir um determinado sentido, nada garante que o mesmo será percebido/interpretado pelo outro. Fica claro assim que a AD não trabalha com intenções, com um sujeito portador de escolhas, pois além

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Vale salientar que os lugares sociais, no entanto, não são criações livres. Cazarin (1998) explica que quando se diz algo, se diz de algum lugar da sociedade para alguém que também ocupa algum lugar na sociedade. Há um sistema de lugares já existentes, isto é, toda formação social tem regras de projeção para estabelecer a relação entre situações concretas e as representações dessas situações no interior do discurso. Por isso, é preciso considerar o lugar social dos interlocutores do discurso, lembrando que as situações de interlocução são sempre modalizadas por uma negociação do lugar de cada um.

65 Em sua reflexão, Courtine (2009) coloca inicialmente em questão as condições de produção

dos enunciados a partir de uma problemática sobre o corpus. Considerando que os enunciados se inscrevem num conjunto de formulações como “um nó uma rede”, ele postula que tal inscrição deve ser caracterizada a partir de uma pluralidade de pontos. As condições de produção tomadas como referência serão ao mesmo tempo homogêneas e heterogêneas se forem considerados o estudo do processo discursivo no interior da formação discursiva, e a relação desta com a pluralidade contraditória de seu interdiscurso.

deste ser assujeitado à ideologia e atravessado pelo inconsciente, existe a “interface” do interlocutor. É como se o discurso fosse produzido e se esfacelasse, para então, ser reconstituído novamente em cada gesto de interpretação que, dotado de singularidade, é tomado enquanto parte da atividade de produção simbólica do sujeito.

Considerando que as condições de produção se referem aos sujeitos e à situação de enunciação, Orlandi (2001; 2005; 2006) explica que o sujeito é compreendido a partir do jogo das formações imaginárias, pois é a partir delas que se chega à posição-sujeito no discurso: “O enunciador e o destinatário, enquanto sujeitos, são pontos da relação de interlocução, indicando diferentes posições-sujeito” (ORLANDI, 2006, p. 15).

De acordo com Orlandi (2001; 2005), as formações imaginárias comportam ainda as relações de força (entre os lugares sociais dos interlocutores e suas posições-sujeito assumidas no interior do dizer), as relações de sentido (no que se refere à interdiscursividade, isto é, à relação do discurso com outros discursos) e a antecipação (imagem através da qual o locutor representa ao seu interlocutor no discurso e vice-versa). Todos esses mecanismos são constitutivos do dizer e representam as imagens que resultam das projeções que os sujeitos constroem de si e dos outros no discurso. Já a situação de enunciação, enquanto parte das condições de produção discursiva, é entendida em sentido estrito, se referindo ao contexto imediato, às circunstâncias da enunciação – o aqui e o agora do dizer, e em sentido lato/amplo, correspondendo ao contexto sócio-histórico e ideológico. Este é o contexto do sentido e ele traz para a consideração dos efeitos de sentido elementos que derivam da formação social e da formação discursiva trabalhada em relação com a memória e o interdiscurso. Esses contextos – imediato e ideológico – são separados apenas para efeitos de análise.

Teoricamente, é preciso distinguir entre lugar (tomado como projeção imaginária) e posição, pois “não são os sujeitos empíricos nem os lugares empíricos em que estão inscritos na sociedade (...) que funcionam no discurso – são suas imagens que resultam de projeções constituídas a partir de relações sociais que funcionam no discurso” (CAZARIN, 2005, p. 179). “São essas projeções que permitem passar das situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para as posições dos sujeitos no discurso. Essa é a distinção entre lugar e posição.” (ORLANDI, 2005, p. 40). Assim, as formações imaginárias comportam as imagens dos lugares-sociais dos interlocutores do discurso, nos quais os sujeitos imaginariamente se inscrevem, mas apontam para as posições-sujeito assumidas no interior do dizer. São as posições-sujeito

que fazem o discurso significar, e elas significam em relação ao contexto sócio-histórico e pelo trabalho da memória discursiva em relação com a formação discursiva.