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CAPÍTULO 4 – A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes (2013-2017) sob a ótica

4.2 Participação Concreta de um Determinado Coletivo

4.2.1 A Novena

Os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposição morais e estéticos – e sua visão de mundo – o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas ideias mais abrangentes sobre ordem (GEERTZ, 1989, p. 103).

A citação de Geertz (1989) nos esclarece o quanto os símbolos sagrados e o sentimento religioso podem relacionar-se com as características de uma comunidade, assim como expressar dados emocionais, psicológicos, realidade social, econômica, e outros. O autor apresenta reflexões elementares para a compreensão das festas religiosas como expressão intrínseca da sociedade, qualidade de vida, estabilidade de relações, valorização, ou não, da tradição e cultura.

Funari e Pelegrini (2008, p. 83) afirmam que a religiosidade é tão antiga quanto o ser humano e que há teorias que comprovam que é ela o que distingue o homem de outros primatas. A religião é parte essencial da experiência da vida em sociedade44. Estes autores afirmam que o estudo da religiosidade como fenômeno

cultural ocorreu na passagem do século XIX para o século XX. Assim, o estudo da religiosidade busca conhecer o caráter humano, social e cultural das crenças.

A novena da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, conforme visto no capítulo anterior, ocorre há várias décadas, principalmente quando a Matriz São José foi entregue, em 1860. A novena é caracterizada por celebrações, com temas pré-

44 Sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições

e motivações nos homens através de formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 1989, p. 105).

estabelecidos, que ocorrem nove dias antes das festas religiosas, fazendo parte da preparação para o dia da festa. A novena, portanto, enquadra-se tanto na primeira categoria (produção, planejamento, organização, preparo, montagem) quanto na segunda categoria de Guarinello (2001) que é a de envolver a participação concreta de um determinado coletivo. No decorrer da pesquisa, foi possível participar de diversas celebrações e assim interpretar as ações da novena, principalmente em missas. Desta forma foi possível observar a importância desses ritos para quem participa deles, os paroquianos – este é o determinado coletivo que se percebe em participação ativa. Considera-se que as missas da novena são milagrosas, nelas a Virgem Maria concede pedidos, bênçãos, graças.

Antigamente, conforme visto no terceiro capítulo, os festeiros eram do sexo masculino, e também havia a questão da representação (agricultores, pescadores, comerciantes), não era considerada a presença feminina nesta representação. É válido salientar que, atualmente, os festeiros são casais escolhidos mediante indicação dos festeiros do ano anterior, que não participam da preparação das celebrações (até podem, mas não é esta a principal atribuição), sua função principal sendo a divulgação da programação da festa. Se houver muitas indicações de casais de festeiros, é feito um sorteio para decidir quem são os festeiros da próxima edição da festa. Os festeiros também podem ser casais de outras comunidades, não apenas oriundos da paróquia São José (Matriz). Ao todo, são 25 comunidades na paróquia.

A novena é bem frequentada pelos paroquianos. Algumas dezenas destes estiveram presentes na novena em todos os anos da pesquisa. São também essas pessoas as encarregadas de organizar, montar, decorar, aclamar, fazer a liturgia, as compras de alimentos para o dia da festa, cozinhar, vender ingressos, dentre outras atividades. A novena, portanto, também é tempo de últimos preparativos, reuniões, e outras ações de planejamento e organização. É possível aferir que é deste envolvimento e participação concreta de um coletivo a que se refere Guarinello (2001). Conforme dito, anualmente, do dia 24 de janeiro ao dia 1° de fevereiro ocorre a novena, que são nove dias de missas, às 20h, na Matriz São José, organizadas pelas diversas comunidades que compõem a paróquia, congregando as lideranças, os devotos, comunidade em geral e preparando o grande festejo do dia 02. Mesmo estando no mês de janeiro, em período de férias escolares, há intensa participação

nas missas da novena. De acordo com a fala local, o pessoal passa o dia nas praias

e vêm à noite para o centro da cidade, para as missas da novena.

Realmente, podem ser vistos diversos automóveis circulando e estacionados defronte à Matriz São José. Isso pode levar a pensar que as missas da novena são frequentadas por pessoas que têm condições de participar das missas à noite (que costumam encerrar às 21h30), que possuem um veículo, uma condução própria, pois nesse horário o transporte coletivo já não opera.

Uma característica interessante e peculiar, que chamou a atenção pela estética do conjunto, nas missas da novena, foram o altar e as laterais da Matriz São José, iluminados para as celebrações noturnas, conforme a Figura 18 e 19. O conjunto da Figura 18 mostra a qualidade estética na ornamentação do interior da Matriz São José. Ao fundo, colocada no altar, à esquerda da foto, a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes no andor.

Na Figura 19 pode se contemplar os detalhes em dourado do retábulo inteiriço, confeccionado artesanalmente em madeira, as antigas imagens, onde se pode ver também o pároco e um dos músicos. No detalhe da Figura 19, ao centro do altar, logo abaixo do crucifixo, acima do sacrário, um barco em miniatura, enfatizando a importância da atividade pesqueira na região. Esse barco em miniatura não foi disposto ali por ser dia de novena da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, ele passa o ano como um adorno do retábulo.

Figura 18: Novena na Matriz São José, 2015. Fonte: Da Autora.

Figura 19: Detalhe do retábulo iluminado na Matriz São José, 2015. Fonte: Da Autora.

Durante os dias de novena, percebeu-se um ambiente de encontro, de congregação, de harmonia e solidariedade dentre os participantes nas celebrações da Matriz São José, o que nos remete à questão da dádiva (MAUSS, 1924, p. 14). O autor afirma que a sociedade complexa teve como base as relações das sociedades arcaicas, onde existiam os encontros, os rituais e festas, onde as trocas não eram apenas de bens e riquezas, mas de amabilidades, de afetos, amizades, camaradagens, perpetuações de dádivas - obrigação em dar, receber e retribuir (MAUSS, 1924, p. 69).

Há participação da comunidade, símbolos e detalhes peculiares do local, como pode ser visto nas Figuras 20 e 21. Na Figura 20 pode-se ver um casal levando uma imagem da Virgem Maria, que pode ser uma invocação da comunidade, a qual representavam naquela missa, e um segundo casal, logo atrás, levando um barco em miniatura, com uma réplica de uma rede de pesca. A imagem da Virgem Maria foi colocada próxima ao altar e, no final da celebração, os devotos fizeram uma fila para tocá-la, para beijá-la. De acordo com Aumont (1993), a disposição das imagens é tão importante quanto sua representação. Estar no altar, próxima ao sacrário, significa a relevância dada àquele objeto. De acordo com o autor, as imagens religiosas, símbolos religiosos, eram vistos como capazes de dar acesso à esfera do sagrado pela manifestação mais ou menos direta da presença divina.

A Figura 21 mostra o mesmo barco, em detalhe, disposto no altar. Este mesmo barco foi utilizado na missa festiva do dia 02 de fevereiro, no momento do

ofertório. É uma importante representação da pesca e em geral das atividades marítimas que se desenvolvem no local, representando ao mesmo tempo a entrega desse labor à Virgem Maria, para proteção.

Figura 20: Momento inicial da missa do último dia da novena da festa de Navegantes de 2015. Fonte: Da Autora.

Figura 21: Miniatura de um barco pesqueiro colocado no altar da missa do último dia da novena da festa de Navegantes de 2015.

O barco que aparece na Figura 32 é um símbolo do significado da festa de Nossa Senhora dos Navegantes com relação aos trabalhadores do mar, principalmente com relação às atividades pesqueiras. A rede disposta no barco demonstra essa relação. As palavras grafadas do barco “Avancem para águas mais

profundas” pode ser interpretada de diferentes maneiras, no sentido de ter fé,

continuar na luta diária pelo sustento através da pesca; no sentido mais religioso, de “pescar homens”, ou preocupar-se com a obra da evangelização católica.

Um aspecto importante a ser enfatizado é a importância dos ornamentos da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, identificados desde as missas da novena, remontando o trabalho, o cotidiano, os artefatos, objetos encontrados na vida diária dos moradores do lugar. Além destes, as bandeirinhas, flores e luzes (nas celebrações noturnas) marcaram a singela homenagem dos nortenses a Nossa Senhora dos Navegantes.

Nas festas, as representações e dramatizações alegóricas não se distanciam dos participantes que, na sua maioria, atualizam o mito original, presentificando-o, realizando a alegoria. Não há passividade: a alegoria não precede à performance, com ela constitui um evento único que se repete, sempre de forma diferente, a cada reatualização. A alegoria permite a comunicação religiosa entre os diversos participantes da festa. De maneira direta e enigmática, revela inteligivelmente para todos a “verdade” do testemunho cristão (LUZ, 2001, p. 712).

A citação acima nos permite refletir sobre a peculiaridade da alegoria nas festas religiosas, sobre a representação que cada ornamento tem no contexto da festa. Há uma atualização do mito, que, no caso da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, é a proteção dos que trabalham no mar. É necessário, da acordo com a citação, comunicar, expressar, representar esse mito. A estética das missas da novena foi a utilização da iluminação na parte interna e externa da Igreja São José. Na Figura 22 vemos a presença de devotos na novena, o altar iluminado com a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes em destaque, sobre um barco-andor, demonstrando, simbolizando a razão principal da festa, da novena.

Figura 22: Momento final da missa do último dia da novena da festa de Navegantes de 2015. Fonte: Da Autora.

A depoente Sra. Maria José comenta sobre a novena realizada especificamente no ano de 2015.

Agora nessa novena por exemplo, eu participei de todas, quase. Essa novena desse ano foi tão concorrida, a igreja cheinha. O padre chegou a dizer que ele nunca viu uma fé tão grande que na hora do canto mesmo ele parava de cantar só para escutar o povo cantando. Os padres que vêm de fora se admiram por que, durante a semana, nas férias, as pessoas lotam a igreja nove dias! Mas é só na Festa de Nossa Senhora dos Navegantes (Sra. Maria José, filha de pescador português, entrevistada no dia 03 de fevereiro de 2016).

A depoente reitera que é apenas na ocasião da festa de Nossa Senhora dos Navegantes que há essa conversão de pessoas demonstrando fé, respeito, participando, se dedicando com um objetivo em comum, e que há o estranhamento, inclusive por parte de integrantes do clero, por essa adesão coletiva em torno da devoção. Esse estranhamento sobre a expressão da devoção em Nossa Senhora dos Navegantes já foi mencionado diversas vezes em documentos e antigos periódicos dos séculos XIX e XX, conforme vimos no capítulo anterior.