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CAPÍTULO 4 – A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes (2013-2017) sob a ótica

4.5 Produção social que gera produtos materiais, comunicativos, significativos

4.5.3 A igreja fecha, mas a festa continua

Depois do encerramento das atividades da igreja, a festa de Nossa Senhora dos Navegantes continua na praça, nos bares, nas boates, nos fandangos, nas lancherias. As barraquinhas de alimentação, assim como as de vendedores ambulantes, ficam repletas de clientes. Há filas para embarcar na lancha, para regressar a Rio Grande. De acordo com Del Priore (2001, p. 280), a festa também pode ser um momento privilegiado no qual se pode ultrapassar ou abolir a ordem e a repressão ao desejo individual – é um momento de aspiração popular à subversão social.

Em sociedades como a nossa em que se exige uma renúncia cada vez maior ao hedonismo, a festa seria um parêntese necessário e compensador no esmagador e silencioso processo do apagamento do eu [...] graças à festa cada um sente que está entre todos e ao mesmo tempo reconstituindo e recolhendo-se em sua identidade ameaçada pela vida séria, quotidiana e regrada do mundo social (DEL PRIORE, 2001, p. 280).

A autora menciona acima elementos ontológicos que nos remetem a refletir em como a festa se relaciona com o indivíduo, o íntimo, a sensibilidade, a inserção social, pertencimento, acolhimento, identidade. Nesta perspectiva, o momento de festa é reservado para experiências de prazer, que estão cada vez mais comprometidas nos modos de organização de vida cotidianos. Modos de vida esses que confrontam as identidades, fazendo com que todos sejam iguais, máquinas de produzir e consumir, apreendedores de uma mesma “cultura”, “tradições” e “legados”. Durante o dia da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, no decorrer dos anos que compreenderam essa pesquisa, foram observados espaços e momentos de manifestação de grupos diversificados que se encontravam ali para expressar a sua cultura, sua identidade, como capoeiristas, sambistas, pagodeiros, artistas de rua, artesãos, dentre outros. Alguns depoentes mencionaram isso de forma crítica, no sentido de não haver uma contrapartida para a igreja.

Quem mais fatura com a festa são os bares na volta da festa e as empresas de transporte do canal. Os restaurantes melhores nem abrem por que não vale a pena, não é o público. Os bares ficam cheios, e quando a festa é perto do carnaval então, mais ainda por que vem as escolas, os blocos para tocar, passam o dia bebendo, e ninguém ajuda a igreja [...] (Sr. Jorge Antiqueira, entrevistado em 05 de fevereiro de 2014).

O Sr. Jorge comenta, na condição de antigo organizador, sobre os benefícios econômicos que são gerados com a festa, como não são equânimes, e comenta também sobre a injustiça desse beneficiamento de empresas de alimentação e bebidas em detrimento aos ganhos da igreja. De acordo com o depoente, os bares só ganham por causa da igreja, vez que se não houvesse a festa não teria essa movimentação de clientes.

A Figura 73 apresenta fotografias do dia da festa, à noite, nos arredores da Matriz São José e no cais do Porto. Observa-se a circulação de pessoas, à noite, no dia 02 de fevereiro, em diferentes pontos dos arredores do centro de São José do Norte. Resíduos recicláveis são encontrados nas calçadas, nas ruas. Bares, boates, bailões funcionam não apenas à noite, abrem durante o dia da festa de Nossa Senhora dos Navegantes. A sogra do pescador Rubinho foi encontrada na saída de um desses bailões. Após participar com a família da procissão marítima, fazer suas oferendas junto às filhas, aos netos, ela aproveitou para ir à festa à noite para “dançar uma marca” em um dos bailões e para comprar uma imagem de Yemanjá de um ambulante que estava comercializando na festa. Não há uma divisão, uma separação entre motivações: fé, diversão, devoção, entretenimento. A festa para esta senhora tem significados diversos, múltiplos, sendo uma oportunidade de encontrar a família, os amigos, reunir vizinhos, rezar, oferecer, consumir e também se divertir.

Figura 73: Danceteria, boate, lancheria e rua repletos de pessoas, 2016. Fonte: Da autora.

Alguns depoentes mencionaram e questionaram a diferença de motivação em participar da festa, vezes pela fé, pelo encontro com o sagrado, vezes pela diversão, pela algazarra, por curtir o feriado. A festeira Fátima afirma que seria importante lembrar da motivação religiosa que oportuniza essa festa:

O que vale é a fé de cada um de nós. Para muitos talvez não passe de um dia festivo, mas para nós significa a força, a esperança, a vida, a saúde que a gente pede e nesse dia eu tenho certeza que a gente ganha o que pede e mais a ajuda nos nossos problemas (Fátima Veloso, entrevistada em 02 de fevereiro de 2015).

Seja qual for a motivação dos participes da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, o que deve ser mencionado é que são todos estes que fazem a festa ser essa manifestação diversificada e representativa para São José do Norte. Na seleção de depoentes, não foi delimitada uma hierarquia, como por exemplo apenas organizadores, festeiros, clero, pescadores. Outrossim foi priorizado dar voz a diferentes atores sociais que promovem, que executam, participam da festa, se divertindo, rezando, dançando, criticando, pagando promessas e outras atuações possíveis. O faturamento de bares, lancherias, bailões, boates, danceterias,

restaurantes e de outros, podem ser considerados produtos materiais, financeiros, que afetam diretamente a economia da cidade neste dia, proporcionando a geração de empregos temporários, lucro e possíveis investimentos.

A análise dos dados neste capítulo reitera a hipótese levantada no começo da pesquisa para a elaboração da tese: que a festa de Nossa Senhora dos Navegantes de São José do Norte pode ser considerada um “fato social total” (MAUSS, 1974). O fato social total se revela a partir de duas compreensões do “total”: A primeira refere- se à totalidade no sentido de que a sociedade inclui os fenômenos humanos de natureza econômica, cultural, política, religiosa, entre outros, sem haver nenhuma hierarquia prévia que justifique uma economia natural que precederia os demais fenômenos sociais. Mas totalidade, também, no sentido de que a natureza dos bens produzidos pelos membros das comunidades não é apenas material, mas, sobretudo, simbólica (MARTINS, 2005, p. 46).

Esta concepção não é recente na historiografia de festas. De acordo com Jancsó e Kantor (2001, p. 09), nos anos 1960, Affonso Ávila estudava festividades públicas numa perspectiva análoga à do conceito de fato social total. O historiador afirmava que a festa barroca representaria um fato civilizacional, uma forma mentis49 que se expressaria através de uma cultura lúdica, sensorial e persuasória, colocando em evidência a complexidade sociopolítica dos fenômenos festivos como momentos de reiteração da ordem política e interações, como por exemplo a integração de diversas etnias.

O capítulo a seguir é composto por fotografias antigas e depoimentos sobre a festa de Nossa Senhora dos Navegantes de São José do Norte, objetivando costurar as interfaces, entre o que foi visto no estudo histórico da festa (Capítulo 3) e no estudo etnográfico da festa como ocorre atualmente (Capítulo 4), usando-se para isso de fragmentos de memória de depoentes, em que a memória oral é estimulada pela memória visual.

49 Locução latina que significa forma, ideia, cenário da mente. Uma estrutura mental, especialmente no que diz

respeito à maneira de pensar e de compreender a realidade, que é determinado no indivíduo, por natureza e educação (Dizionario Treccani. Disponível em: http://www.treccani.it/vocabolario/forma-mentis/).