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CAPÍTULO 4 – A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes (2013-2017) sob a ótica

4.4 Articulação em torno de um objeto focal, que constitui a motivação principal de

4.4.3 A procissão terrestre

Após o desembarque, ocorre a procissão terrestre pelas ruas do centro histórico da cidade com as quatro imagens. Depois de mais de três horas em pé, navegando na procissão marítima, as caminhadas pelo centro histórico da cidade, durante os anos de desenvolvimento da pesquisa de campo, foram momentos difíceis, pelo esgotamento físico. Com o calor já mencionado anteriormente, a continuidade às homenagens da Nossa Senhora dos Navegantes pode ser considerada um ato de fé extrema, fundamentalmente para os devotos idosos, com dificuldade de movimentação ou crianças. A Figura 62 mostra a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes em 2015, sendo conduzida para a procissão terrestre pelos devotos.

Figura 62: Andor de Nossa Senhora dos Navegantes no início da procissão terrestre, 2013. Fonte: Da autora.

A caminhada da procissão terrestre toma ritmo com músicas entoadas pela banda Democrata, dezenas do terço, oração Salve Rainha, Ave Maria e cantos católicos principalmente em honra à Virgem Maria. Diversos devotos demonstravam exaustão durante a caminhada. Em alguns momentos havia silêncio, ouvia-se apenas os múrmuros e passos. Uns se apoiavam nos outros, de braços, ou se abraçavam. Alguns seguiam de pés descalços, como uma forma de pagar promessas, uma penitência. De acordo com Jurkevics (2005, p. 86) a caminhada em procissão simboliza o caminho percorrido pelos devotos em direção ao sagrado.

Assim, o cortejo é um meio, um instrumento que significa muito mais que o simples fato de um grupo de pessoas marcharem juntas, uma vez que naquele momento estão irmanados. Portanto, a representação é a caminhada espiritual. [...] Os devotos unem-se, afastando-se das trevas e dos pecados (JURKEVICS, 2005, p. 86).

O trajeto não é contínuo, durante a caminhada, há paradas para bênçãos a lugares públicos como a Estação Hidroviária, de onde saem e por onde chegam as lanchas com destino/origem a cidade do Rio Grande, o Clube Social Sócrates, o hospital, posto de saúde e, no ano de 2016, houve uma parada para uma bênção espacial, em frente à casa de uma paroquiana que se encontrava enferma. Nessas paradas, o pároco local, com o microfone ligado em um carro com auto-falantes, fala sobre a importância desses lugares para a sociedade, para as atividades cotidianas e

ele, junto aos fiéis, através da imposição das mãos, os abençoa, em nome de Nossa Senhora dos Navegantes. Durante todo o percurso da procissão terrestre o carro de som transmite as palavras do pároco, orações, dezenas do terço, canções marianas e palavras de motivação como: “Viva Nossa Senhora dos Navegantes!”. E o povo responde: “-Viva!”. Durante todo o trajeto da caminhada observou-se demonstrações de fé e devoção, diversos pagadores de promessas, crianças e bebês vestidos de anjos, pessoas descalças, e outros.

Tinhorão (2000, p. 72) afirma que a origem das procissões católicas vem da procissão do Corpo de Deus, chamada de Corpus Christi, que em Portugal era precedida, na véspera, por solenidades com presença de ilustres cidadãos, espetáculos que agradavam a população. Fatores que tornaram a tradicional procissão de Corpus Christi, em Portugal, um ato religioso-profano nacional e oficial e um paradigma para outras procissões.

Geertz (1989, p. 128) afirma que as atividades simbólicas da religião como sistema cultural, como as procissões, objetivam reproduzir, intensificar e tornar invioláveis as manifestações religiosas. De acordo com Cirlot, citado por Marques e Santos (2004, p. 08), a palavra procissão se refere à ideia de uma marcha, representada no cortejo litúrgico, e toma o significado de uma peregrinação terrena, mas também de um permanente avanço em direção ao divino.

[...] a procissão funciona como um fenômeno simbólico coletivo, de alcance ilimitado, capaz de aglutinar em torno de si pessoas, grupos ou categorias sociais distintas, a partir de um sentimento construído pela e para a comunidade. É por isso um evento social religioso previsto, informal e de reforço que escapa do universo cotidiano por fundir num mesmo espaço/tempo a espontaneidade, a descentralização, a despersonalização e a continuidade. É, portanto, um reflexo da religiosidade popular, fundamentado pela tradição eclesiástica, às vezes resultante diretamente da Igreja, às vezes das Irmandades ou Confrarias que, por muito tempo, foram responsáveis por estes eventos (MARQUES e SANTOS, 2004, p. 08).

Na procissão terrestre de Nossa Senhora dos Navegantes, já com acentuado esgotamento físico, aparentemente os caminhantes encontram forças para continuar na caminhada uns nos outros, de mãos, de braços, se solidarizando. Pode-se aferir que essa simbologia de coletividade, de união entre os devotos, no momento da procissão, é uma característica que reforça os laços, onde se percebe o

companheirismo com o próximo, nas relações entre nortenses. Esse altruísmo, essa relação de hospitalidade, foi percebida nos depoentes e até em desconhecidos, como a senhora que me deu o seu ingresso para o barco de São Pedro, na primeira festa.

O cortejo segue nesta ordem: a imagem da Virgem Maria, de São Pedro, São José e Sagrado Coração de Jesus, conforme a formatação inicial, antes da procissão marítima. A Figura 63 mostra as quatro imagens dos santos durante a bênção do pároco sobre as obras da estação hidroviária da cidade, que na época estava passando por reformas, e a multidão que acompanhava a procissão terrestre.

Figura 63: Imagens dos santos durante a bênção da hidroviária na festa de Nossa Senhora dos Navegantes, 2013.

Fonte: Da Autora.

A Figura 64 registra a bênção ao hospital da cidade. Pode-se perceber que alguns funcionários, pacientes, acompanhantes se dirigem às sacadas, às janelas e à frente do prédio para acompanhar essa bênção proferida pelo pároco. As imagens dos santos são dispostas de frente ao local a qual está sendo feita a bênção.

Figura 64: Imagens dos santos durante a bênção do hospital local na festa de Nossa Senhora dos Navegantes, 2013.

Fonte: Da Autora.

As Figura 65 e 66 mostram vários devotos descalços, seguindo a procissão terrestre de 2015. Em oportunidade de conversar com alguns desses fiéis, foi possível identificar diversas razões para estar descalço na procissão. O mais recorrente é o fato de estar pagando uma promessa, pela recuperação da saúde de um filho, ou familiar, por ter entrado na faculdade pública, por conseguir um emprego, dentre outros. Também há aqueles que estão ali para pedir uma graça: passar de ano na faculdade, pelas pessoas doentes internadas. Neste contexto de devotos pagadores de promessas, é possível novamente estabelecer relação com a teoria da dádiva de Mauss (1924), na eterna reciprocidade e na certeza que dando, se receberá, e se receber, haverá de doar. A doação do fiel é a penitência, assim ele prova aos demais seu respeito à devoção, externa sua fé, e torna-se um exemplo aos que, quando precisarem, saberão que podem contar com Nossa Senhora dos Navegantes. Cerca de vinte devotos descalços foram abordados utilizando a metodologia da observação participante, e todos eles apontaram que seria um ato de sacrifício, de penitência ou agradecimento e não por ser um hábito do devoto andar com os pés descalços.

Figura 65: Devotos de Navegantes caminhando descalços na procissão, 2015 Fonte: Da autora.

Figura 66: Devota de Navegantes descalça, após a caminhada, 2016. Fonte: Da autora.

Hansen (2001, p. 738) afirma que o uso dos espaços no tempo da festa pode revelar um processo simbólico de delimitação deste espaço para a produção do discurso da festa, fazendo incorporar, fora do templo, nos espaços sociais, o discurso da festa e envolvendo a comunidade de forma geral. Esta prática foi utilizada nas festas sociais e religiosas do Brasil colonial, expressando mais um traço da herança luso-brasileira na festa de Nossa Senhora dos Navegantes, desde o século XIX, quando havia, por exemplo, a procissão terrestre percorrendo as principais ruas da cidade, no traslado das imagens dos santos para a igreja nova.

Na época do Brasil colônia, essa prática pode ser significada como tentativa de hegemonizar a tradição cristã católica, parecendo que a cidade inteira “vive” a festa, que ela permeia o paço público. Na pesquisa de campo, foi percebido que a comunidade de São José do Norte realmente “vive”, “abraça” a festa, as casas se abrem, os moradores saem para receber a bênção da Virgem, os barcos percorrem a procissão fluvial, enfim há um engajamento coletivo presente em todos os momentos festivos em honra a Navegantes. É “a festa” da cidade. A Figura 67mostra o andor de Nossa Senhora dos Navegantes sendo levado de costas para a fachada da igreja, para ficar de frente para a multidão nos momentos finais da festa.

Figura 67: Imagens dos santos durante a bênção do hospital local na festa de Nossa Senhora dos Navegantes, 2013.

Fonte: Da Autora.

Neste momento de encerramento da solenidade da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, os integrantes da Banda Municipal Democrata, entoam músicas

mais animadas, menos penitenciais, é um momento de alegria pois encerra-se a festa com sucesso (novena, missas, almoço, procissões marítima e terrestre). A Figura 68 mostra parte da multidão, da banda Democrata (em 2013 vestindo uniforme vermelho, em 2015 uniforme azul), o carro de som que acompanhou a procissão, e ao fundo árvores da praça da matriz São José, vista de cima das escadarias da igreja.

Figura 68: Imagem da multidão no encerramento da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, 2013. Fonte: Da Autora.

A programação, após todos os ritos, missas, procissões marítima e terrestre, homenagens, cânticos e orações, envolveu apresentações artísticas no palco, defronte à Matriz São José. As atrações artísticas variaram no decorrer dos anos de pesquisa: banda gospel, teatro, dentre outros. Em um dos anos, enquanto a procissão marítima acontecia, houve a apresentação da banda dos fuzileiros navais de Rio Grande. O que ocorreu em todos os anos foi a programação de bandas de forró, sertanejo, funk e outros estilos, o que será abordado em seguida.