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CAPÍTULO 4 – A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes (2013-2017) sob a ótica

4.3 Interrupção do tempo social, suspensão temporária das atividades diárias

4.3.3 Missa Solene das 10h30

A interrupção do tempo social envolve talvez um dos elementos mais constantes da programação da festa de Nossa Senhora dos Navegantes: é a missa das 10h30. Conforme estudado em documentos e fontes primárias, essa missa acontece da mesma forma que ocorria anualmente no passado, de forma mais solene,

com preparação de oferendas e cantos, a presença do bispo diocesano, prefeito municipal, casais festeiros, hierarquias sociais e religiosas, com a igreja absolutamente lotada, conforme pode ser visto na Figura 37.

Figura 37: Igreja São José antes da missa solene da festa de Navegantes, 2015. Fonte: Da autora.

A Figura 37 mostra os fiéis aguardando pelo começo da missa. Nesta missa é preciso chegar alguns minutos antes para garantir assento, quem chega na hora permanece em pé durante todo o rito. Observam-se vários idosos presentes e alguns bancos à frente, reservados para os casais festeiros através de fitas brancas. Os festeiros participam da procissão de entrada, com o bispo e o pároco. Se fazem presentes também profissionais das comunicações, mídias, rádio e televisão regionais, tal como antigamente. Pelo menos uma rádio AM faz a cobertura ao vivo durante toda a missa. De acordo com o depoente, frei Natalino, essa transmissão ao vivo é prestigiada com a audiência de Rio Grande e região. Na procissão de entrada, os casais festeiros do ano conduzem algumas oferendas a serem deixadas no altar durante a missa, como ocorreu nas missas da novena, mas com mais elementos que representam a cultura local, como se vê na Figura 38.

Figura 38: Momento da entrada das ofertas na missa solene da festa de Navegantes, 2015. Fonte: Da autora, 2015.

Figura 39: Objetos no altar da missa solene da festa de Navegantes, 2015. Fonte: Da autora.

Na Figura 38, dois casais aparecem na procissão de entrada da missa solene. O primeiro casal conduz ao altar uma réstea de cebolas, simbolizando a principal cultura da terra em São José do Norte. De acordo com a fala local, a cidade já foi a maior produtora de cebolas do país, o que justifica a réstea na procissão de entrada da missa, muitos ainda plantam e precisam desta colheita. As résteas de cebolas aparecem no contexto da festa de Nossa Senhora dos Navegantes deste 1875, conforme o relato de Fidêncio. O segundo casal em procissão leva uma cesta de

hortifrutigranjeiros, também produzidos na península. Estes e outros símbolos são conduzidos e dispostos na frente do altar, conforme se pode observar na Figura 49.

A Figura 39 apresenta vários objetos, símbolos da cultura local, passíveis de análise principalmente pelo contexto em que se encontram. Se pode ver à esquerda da imagem um peixe fresco, embalado em plástico, perto de um barco e uma rede de pescaria em miniatura. No degrau acima, próxima ao arranjo de flores naturais, uma carteira de trabalho ao lado de um terço mariano. À direita, acima, uma réstea de cebolas e no degrau abaixo um cesto de hortifrutigranjeiros, com tomates, cebolas, bananas, laranjas. Salienta-se que os objetos foram dispostos no altar da Matriz São José, por festeiros no começo da missa solene da festa de Nossa Senhora dos Navegantes do ano de 2015.

Os objetos expostos são representações objetivas para que a Virgem Maria abençoe as atividades laborais da comunidade, e ao mesmo tempo uma forma de agradecimento pelos frutos do trabalho. De acordo com Hansen (2001, p. 738), a “representação significa o uso de signos no lugar de outra coisa: no festejo são roupas,

cores, cenas, personagens e alegorias postas no lugar, por exemplo, de princípios abstratos e posições da hierarquia [...]”.

Importante enfatizar a relação existente na festa de Nossa Senhora dos Navegantes, entre prosperidade da cultura pesqueira e agrária e a grandiosidade da festa. De acordo com a fala local, quando as safras agrárias das diversas culturas locais, agricultura e pescado são boas, a festa é maior, a igreja mais enfeitada, há mais barcos, mais pessoas participando e contribuindo financeiramente para que a festa aconteça. E o contrário, da mesma forma, se os negócios, se a economia vai mal, a situação é refletida na festa onde se verificam-se mais pedidos, a liturgia muda, principalmente para pedir a ajuda divina para a superação das dificuldades. Essa análise preliminar justifica, de certa forma, a disposição dos elementos no altar, pela esperança em um futuro melhor e ao mesmo tempo agradecimento pelo sustento que a terra e as águas lhes dão.

Ainda sobre os objetos ofertados no altar, é possível estabelecer reflexão baseada em Mauss (1924, p. 25), da teoria da dádiva. De acordo com o autor, os objetos têm alma, não são apenas matéria, mas contêm parte de quem os doa, o doador dá algo de si no objeto. Em contrapartida, na teoria da dádiva de Mauss (1924, p. 35), existe a obrigatoriedade tanto em receber quanto em retribuir. Portanto, é

possível pensar que, doando os frutos do seu trabalho, de seu suor, os devotos de Nossa Senhora dos Navegantes de certa forma esperam algo em troca, a retribuição divina, de uma boa safra, um emprego, de acordo com os objetos relacionados ao trabalho, pois a doação pessoal, de entrega da vida, também pode ser retribuída através da boa saúde, da cura de uma enfermidade, da gestação desejada e outros tantos processos (que podem ser chamadas de ofertas) e espera de retribuições para essas dádivas pessoais que podem ocorrer na festa de Nossa Senhora dos Navegantes.

Pode se utilizar a perspectiva da teoria da dádiva, para explicar o que foi dito anteriormente, sobre a relação entre a grandiosidade da festa e a prosperidade econômica das safras. A boa safra é um dom, uma bênção, uma dádiva recebida para o sustento das famílias e que deve ser retribuída. A retribuição pode vir em troca da participação humana ou financeira na festa. Uma outra abordagem, que será vista a seguir, na perspectiva da teoria da dádiva, é o pagamento de promessas em troca de milagres concedidos pela Virgem Maria.

É possível aferir, portanto, que a relação que se estabelece entre os objetos dispostos no altar (lugar da representação do sacrifício de Jesus) e a tradição luso- brasileira trazida, mantida e adaptada pelos açorianos é evidente, devido à marca do catolicismo e às atividades agrárias desenvolvidas. A participação de diversas representações sociais (comerciantes, agricultores, pescadores) fez com que não apenas a festa de Nossa Senhora dos Navegantes se mantivesse, mas também o catolicismo popular e a crença na proteção dos santos, além do modo de vida ligado à subsistência pelos frutos das águas e da terra. Celebra-se assim, na festa de Nossa Senhora dos Navegantes, essas riquezas, esses dons, algo que, conforme visto nos capítulos anteriores, advém também de heranças culturais longínquas, desde os povos da antiguidade.