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III. A regulação da biotecnologia moderna nos Estados Unidos, na União Europeia e

III.1. a O modelo norte-americano: foco no produto

O modelo adotado pelos EUA para regular a biotecnologia agrícola – conhecido como

modelo com foco no produto, ou baseado no produto – parte do princípio de que a

agricultura, com ou sem modificação genética, já é uma forma de interferir na natureza. Logo, não haveria fundamento para aumentar o nível de cautela na regulação dos alimentos geneticamente modificados. Segundo esta visão,

genetic engineering is nothing more than an extension of traditional selective plant breeding, which is a form of genetic manipulation within one species. In addition, proponents emphasize that genetic engineering is very precise and that it can introduce desirable traits into useful organisms more efficiently than traditional methods (Ramjoué 2008, 3).

O resultado desta percepção, segundo a qual não haveria porque considerar um milho geneticamente modificado como mais artificial que um milho produzido por métodos de seleção experimentais, é a consideração de que “os produtos da tecnologia do DNAr não são inerentemente mais perigosos do que os elaborados por métodos convencionais de produção” (Spohn 1996, 247). Logo, é desnecessário criar “estruturas operacionais diferenciadas” – leis, políticas, agências ou autoridades – para lidar com eles (Oda 2003). Ainda assim, é mandatório avaliar, caso a caso, a segurança dos produtos geneticamente modificados, da mesma forma como é feito com os que não são geneticamente modificados.

A escolha deste enfoque por parte do “país-sede da Monsanto e pátria dos OGMs” (Leite 2001, 179) parece coerente com sua tradição antirregulatória, sua cultura de litígio e, sobretudo, sua confiança na ciência e no mecanismo de autorregulação da atividade científica

103 através da avaliação por pares. Como mencionamos no capítulo anterior, pesquisadores norte- americanos enviaram, em 1973, uma carta à National Academy of Sciences (NAS) expressando suas preocupações com relação ao uso da técnica do DNAr. O teor da carta levou a NAS a criar um grupo de estudos sobre o tema, liderado pelo cientista Paul Berg. A Comissão Berg, nome pelo qual este grupo ficou conhecido, publicou no ano seguinte um relatório conclamando os cientistas nos EUA a adotarem uma moratória voluntária a certos tipos de pesquisa com DNAr, até que os riscos desta tecnologia fossem melhor compreendidos.49 Um ano depois, no entanto, durante a Conferência Internacional sobre

Moléculas de DNA Recombinante, mais conhecida como a Conferência de Asilomar, os mesmos cientistas recuaram, suspendendo a moratória. Como atesta o resumo das resoluções da conferência:

Of particular concern to the participants at the meeting was the issue of whether the pause in certain aspects of research in this area, called for by the Committee on Recombinant DNA Molecules of the National Academy of Sciences, U.S.A., in the letter published in July, 1974, should end (…) The new techniques, which permit combination of genetic information from very different organisms, place us in an area of biology with many unknowns. Even in the present, more limited conduct of research in this field, the evaluation of potential biohazards has proved to be extremely difficult (…) Nevertheless, the participants at the Conference agreed that most of the work on construction of recombinant DNA molecules should proceed provided that appropriate safeguards, principally biological and physical barriers adequate to contain the newly created organisms, are employed (Berg et al. 1975).

A suspensão da moratória, por sua vez, colocou novamente em pauta o problema da regulação, dividindo os cientistas entre os que defendiam que as pesquisas com DNAr deveriam prosseguir livremente e os que acreditavam que seus riscos demandavam certas restrições, mesmo que autoimpostas (Olson 1986, 65). Como era de se esperar, a possibilidade de “regulação compulsória” com envolvimento de “fiscalização pública” foi considerada por muitos pesquisadores um “desperdício de tempo e de dinheiro” (Hindmarsh e Du Plessis 2008, 182). Ainda assim, a maioria entendeu que não seria prudente prescindir

49 O referido relatório foi publicado nos prestigiosos periódicos Science e Proceedings of the National

104 completamente da participação do governo no controle da nova biotecnologia, decidindo-se por recorrer ao National Institutes of Health (NIH), principal patrocinador público das pesquisas científicas nos Estados Unidos (Jasanoff 2007, 47). Mais especificamente, o Comitê Berg sugeriu ao NIH a criação de uma comissão que atuasse no âmbito federal. O resultado foi a formação do chamado Recombinant DNA Advisory Committee (RAC), o qual até hoje regula as pesquisas com DNAr. As diretrizes do RAC, apesar de “mandatórias apenas para pesquisadores de instituições que recebem fundos de pesquisa do NIH”, tornaram-se de fato padrão nos EUA, sendo “voluntariamente seguidas por diversas companhias e outras instituições” (NIH 2011).

É importante ressaltar que a fiscalização por parte do RAC não representou uma alteração importante na rotina de trabalho dos pesquisadores, nem a interferência de um fator exógeno, posto que, efetivamente, as decisões no interior desta comissão eram tomadas por cientistas, através do sistema de avaliação por pares.50 A priorização da autonomia dos

cientistas que manipulavam DNAr não constituiu, entretanto, um caso isolado. Aproximadamente nessa mesma época (1975-1980), uma série de controvérsias sobre os riscos provocados por produtos químicos – presentes em alimentos, no meio ambiente e nos locais de trabalho – geraram nos EUA um importante debate sobre a relação entre as agências regulatórias governamentais e a comunidade científica independente (Jasanoff 1990). A despeito de suas singularidades, tais episódios51 seguiram um mesmo padrão: em um primeiro

momento, as próprias agências, com base em estudos científicos, restringiram o uso de certos produtos químicos sob a alegação de que representavam um risco à saúde da população e/ou

50 Como coloca Jasanoff (2007, 47-8), o RAC foi composto, de início, somente por cientistas. Algum

tempo depois, entretanto, passou a incluir alguns membros leigos.

51 Estes episódios, selecionados e estudados por Jasanoff (1990), referem-se à polêmica sobre os

perigos para a saúde humana da adição de nitritos a alimentos (1), a utilização do herbicida 2,4,5-T (2), o despejo de produtos químicos industriais no Love Canal (3) e contato com químicos tóxicos no ambiente de trabalho (4).

105 ao meio ambiente. Invariavelmente, os dados nos quais tais decisões se basearam foram sujeitos a importantes críticas metodológicas, e as políticas consideradas como frutos de análises científicas mal conduzidas e da falta de avaliação por pares. Os pormenores dos casos não são importantes aqui. Interessa-nos, entretanto, mostrar que, de forma geral, as respostas do governo norte-americano deram-se sempre no sentido de buscar alternativas para reforçar que o mecanismo de revisão das análises de risco fosse efetuado por pares, o que culminou na criação dos chamados Scientific Advisory Committees – denominados por Jasanoff de “Fifth Branch”, ou quinto setor do governo.52 Em outras palavras, o governo

enviou uma clara mensagem de apoio ao princípio da auto-regulação da ciência, o qual, como vimos, está em sintonia com o modelo com foco no produto.

Assim como os poderes Executivo e o Legislativo, o Judiciário norte-americano, reafirmando a importância do litígio na formulação das políticas públicas do país, também cumpriu seu papel na consolidação do modelo com foco no produto. O caso da bactéria

Burkholderia cepacia ilustra bem este ponto. Em 1980, o cientista Ananda Chakrabarty,

funcionário da General Electric, entrou com um pedido de patente para uma bactéria geneticamente modificada (a Burkholderia cepacia) gerada com a finalidade de tratar vazamentos de óleo em rios e oceanos. O pedido foi negado pelo parecerista, que alegou que um organismo vivo não se encaixaria na definição legal de um objeto patenteável. Chakrabarty apelou da decisão, a qual foi encaminhada à Suprema Corte dos EUA. Esta, por sua vez, decidiu pela concessão da patente, com a justificativa de que o fato de o objeto estar ou não vivo não teria qualquer relevância, uma vez que o “organismo de Chakrabarty se encaixa no universo dos objetos feitos pelo homem que não existiam previamente na natureza” (Jasanoff 2007, 49).

52 No sistema político norte-americano, o primeiro setor corresponde ao Legislativo, o segundo ao

Executivo e o terceiro ao Judiciário. O quarto setor caracteriza atores que podem influenciar os três setores, tais como a mídia, os grupos de interesse e agências administrativas governamentais.

106 A lei federal de patentes dos Estados Unidos, de 1793, usualmente atribuída a Thomas Jefferson, define como objeto patenteável “qualquer nova e útil arte, máquina, manufatura ou composição de matéria, ou qualquer novo e útil melhoramento de qualquer arte, máquina ou manufatura ou composição de matéria, não conhecida ou usada antes da aplicação” (United States 1973).53 Segundo a interpretação desta lei por parte da Suprema Corte, não haveria por

que não conceder direitos de propriedade sobre a bactéria de Chakrabarty, posto que, indubitavelmente, tratava-se de um processo “novo e útil”, originado do labor humano. Tal sentença histórica abriu caminho para pedidos de patentes de “plantas transgênicas”, “organismos multicelulares, inclusive animais” e “até mesmo genes ou sequências menores de DNA”; mais importante, ela inaugurou uma nova era de “colonização de um novo faroeste do capitalismo: a vida” (Castelfranchi 2008, 64-65).

A convicção de que produtos geneticamente modificados, apesar de patenteáveis, representam apenas “uma extensão de técnicas mais antigas de manipulação biológica,” ao invés de uma revolução no modo industrial de produção (Jasanoff 2005a, 149), fundamentou, em 1984, a proposta de criação de uma matriz regulatória para a biotecnologia moderna apoiada em agências federais e leis já existentes (Ramjoué 2008, 5; Kinderlerer 2008, 24). Neste ponto, é necessário atentar para dois fatores. Em primeiro lugar, como mencionamos antes, apesar de a RAC estabelecer apenas diretrizes (ao invés de leis), as quais se aplicam unicamente a instituições de pesquisa que recebem financiamento federal, e cuja violação resulta, na pior das hipóteses, no cancelamento do financiamento, tais diretrizes possuem grande influência, sendo voluntariamente seguidas por diversas companhias privadas e replicadas na esfera dos estados da federação. A busca voluntária do aval das agências

53 No original: “any new and useful art, machine, manufacture or composition of matter, or any new

and useful improvement on any art, machine, manufacture or composition of matter, not known or used before the application”. Capítulo 11, Seção 1. Importante ressaltar que o termo “art” foi

substituído pelo termo “process” em 1952. Importante ressaltar que o termo “art” foi substituído pelo termo “process” em 1952.

107 federais está baseada no fato de as indústrias enxergarem no “selo de qualidade” governamental um mecanismo para ganhar a confiança do público (Olson 1986, 68). Também é importante lembrar que, se por um lado os cientistas norte-americanos desfrutam de considerável liberdade para a realização de pesquisas com DNAr, a comercialização de OGMs é regulada por duas agências federais – a Food and Drug Administration (FDA) e a Environmental Protection Agency (EPA) – e um ministério, o United States Department of Agriculture (USDA).54 Ainda assim, esses órgãos optam por “procedimentos de notificação

relativamente simples, deixa[m] as análises de risco pré-comercialização nas mãos da indústria e aprova[m] muito rapidamente a maioria dos pedidos de cultivo experimental e comercialização de produtos geneticamente modificados” (Bernauer e Aerni 2008, 2-3). Tal sistema regulatório contribui para que os EUA sejam o maior produtor de plantas geneticamente modificadas no mundo em termos absolutos, além de o maior mercado consumidor de alimentos geneticamente modificados (ver quadro II).

Quadro II

Milhões de hectares cultivados com plantas geneticamente modificadas por país, no ano de 2009

País (milhões de hectares) Área cultivada (em milhões) População Área cultivada por população Estados Unidos 64,0 307,0 0,2084 Brasil 21,4 191,5 0,1117 Argentina 21,3 40,0 0,5325 Índia 8,4 1210,0 0,0069 Canadá 8,2 34,2 0,2397 China 3,7 1339,0 0,0027 Paraguai 2,2 6,3 0,3492 África do Sul 2,1 49,0 0,0428

54 Segundo Ramjoué (2008, 5), “the legal basis for GM food and crop regulation in the USA consists

of three statutes, which are implemented by three federal agencies. Firstly, the Animal and Plant Health Inspection Service is responsible for protecting US agriculture from pests and diseases under the Plant Protection Act of 2000. Secondly, the Food and Drug Administration ensures that food, feed and food additives are properly labeled and safe to eat for humans and animals under the Federal Food, Drug and Cosmetic Act of 1938 (FFDCA). Finally, the Environmental Protection Agency (EPA) ensures that pesticides used in plants are safe for the environment under the Federal Insecticide, Fungicide, and Rodenticide Act of 1947.”

108 Uruguai 0,8 3,4 0,2352

Fonte: elaboração própria com base em sites governamentais e no sumário executivo n. 41- 2009 da International Service for Acquisition of Agri-Biotech.